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12/02/24

A Socialização Com os Iletrados

 



Os brasileiros de hoje são tagarelas e preguiçosos:não estudam nada e opinam sobre tudo… A importância da humildade no aprendizado já era enfatizada, na Idade Média, por Hugo de São Vítor, um dos maiores educadores de todos os tempos. Humildade significa, no fundo, apenas senso do real. O culto universal da juventude obscureceu essa verdade óbvia ao ponto de que todo mundo já acha natural esperar que, aos quinze ou dezoito anos, um sujeito tenha opiniões sobre todas as coisas e, miraculosamente, elas estejam mais certas que as de seus pais e avós.”
                                
Olavo de Carvalho  em "Jovens Paranaenses" 


Ao deparar-se com os primitivos hábitos mentais do povo brasileiro, o homem intelectualizado há de sofrer com os sérios entraves que encontrará em sua jornada. Pela experiência minha e de amigos, posso dizer que o primeiro e mais persistente desses problemas é, certamente, o da socialização. Como, afinal, obter a paciência necessária para interagir com a infinidade de iletrados, incultos e ignorantes populares, as vezes em posições de poder, que compõe a maioria da população do país?

Como responder, sem ser ofensivo, a quem fala de tudo sem ter estudado nada? Como respeitar as pretensões de sapiência de quem nenhuma afinidade tem com os livros, a pesquisa intelectual, o pensamento organizado, a reflexão ponderada e a cultura letrada? Como tolerar a doxa compulsiva de quem nunca se empenhou naquela atitude de humildade fundamental a qual os filósofos chamam epoché? Que fazer diante da pretensão desmedida de quem se mostra incapaz sequer de definir os conceitos e os termos que emprega? Pois, infelizmente, são esses os tipos que mais se julgam no direito de opinar sobre temas complexos e difíceis. Pior, porque, arrogantes e vaidosos, enfurecem-se quando corrigidos.

Eu, quando me relaciono com esses tipos pretensiosos e sem substância intelectual, entro sempre num dilema. Corrijo-os ou não? Se é  amigo, faço um teste: indico, para elevá-lo, algum livro e autor importante, e geralmente vejo, sem surpresa, que ele é incapaz de o ler. Ou seja: não tem real interesse em desenvolver seus raciocínios sobre o assunto. Se não manifesta nenhuma disposição em se informar adequadamente, a sua tomada de posição não pode ser encarada como uma posição intelectual, mas como uma performance social derivada de alguma necessidade psicológica; seja ela a de participar da conversa, de demonstrar uma opção política para sinalizar virtude ou outra razão qualquer que não se confunde com atividade intelectual.

Todos nós conhecemos, por exemplo, a divertida figura do “esquerdo-macho”; o sujeito que afeta ideias de esquerda para ter acesso às moças que circulam nesses ambientes. Lembro-me de um caso. Respondendo indagações minhas, um amigo boêmio falou-me das moças fogosas de uma universidade federal aqui da região. Uma de suas frases foi inesquecível. Com os olhos arregalados, ele me disse: “John, lá você não pega ninguém se não for de esquerda”. Sendo um safado de marca maior, ele confessou: chegou a andar com camiseta do Che Guevara e tudo. Eu caí na risada. Compreendo, e não o condeno. Qual é o homem que, numa situação dessas, não defenderia as ideias de Karl Marx com um malicioso sorriso no rosto? Eu, por um rabo de saia, defenderia até o Bolsonaro, com direito à camisa da seleção e gesto de arminha com as mãos. Esse tipo de dissimulação, muito humano, é antigo e, já nos anos sessenta, foi denunciado por Nelson Rodrigues. "É o golpe!", dizia o Palhares, o canalha sincero, personagem inesquecível das crônicas rodrigueanas.

São dificuldades como essas - as pretensões dos iletrados e seus joguinhos psicológicos - que infernizam a vida social dos tipos intelectualizados. Para o homem de letras o discurso é o principal meio de transmissão da verdade, e por isso deve ser levado a sério. Quando é jovem e inexperiente, o tipo intelectualizado não sabe que essa mentalidade não existe, ou é rara, nas outras pessoas. No Brasil o falar é visto como meio de socialização vazia ou como meio de obter vantagem social. As pessoas dizem o que julgam necessário dizer para fomentar as relações, os afetos ou as vantagens que desejam obter. Isso é precisamente o contrário da conduta do homem letrado, para quem a palavra é expressão de sua personalidade, de suas reflexões, estudos, dúvidas, angústias e verdades interiores.

Por esse motivo, quando não está com seus pares, quando é obrigado a interagir com populares, iletrados e ignorantes, o homem intelectualizado se sente horrorizado, solitário, incompreendido e deslocado. Ao usar o discurso para manifestar-se, prezando pela reflexão sincera e informada, é visto com estranheza, fascínio e, a depender do que diz, com animosidade. Fica estupefato ao constatar a dificuldade de encontrar interlocutores conscientes, articulados, bem informados, maduros, racionais e moderados. Tem a impressão de que os falantes estão imersos em caos mental e linguístico, em emocionalismo infantil e incoerências lógicas insuperáveis.

A resposta dos homens letrados a essa realidade diverge. Alguns intelectualizados, depois da experiência com os populares, desiludem-se. Cientes da fragilidade intelectual dos iletrados, passam a considera-los como subcivilizados, ralés que devem ser tutoreadas pelo Estado, com auxílio das classes intelectuais. É a teoria do Estado como agente civilizador. Para quem pensa assim, muitas das condutas equivocadas e viciosas do homem comum devem ser toleradas ou relativizadas, inclusive alguns crimes, porque, afinal, não se trata de um homem livre em sua expressão digna e saudável, mas uma anomalia, um homo ferus, animalizado pela barbaridade de sua condição mental e social. Mentalidade frequentemente associada ao esquerdismo, essa tem sido, há duas décadas, a corrente cultural majoritária no país.

Outros acreditam que o dever número um dos homens e mulheres de cultura é capturar a atenção do público e elevá-lo, mostrando que além da vida instintiva e civil, de hábitos precários consolidados, existe uma vida espiritual, de cultura, de imaginação, de racionalidade, de beleza e de aspiração à virtude. Mentalidade frequentemente associada ao chamados classicistas, “conservadores culturais” e aos poucos artistas que ainda acreditam na Arte como expressão do que há de universal e transcendente nos dramas humanos.

E há, finalmente, aqueles que se rendem ao mais deslavado cinismo. Se pudessem expressar com sinceridade seus pensamentos, diriam: “Que me importa o povo? Não é responsabilidade minha resolver um problema que eu não criei. Darei ao povo o lixo que ele quiser consumir, assim enriquecerei e, com minha família, desfrutarei da mais vasta sofisticação cultural que o dinheiro pode comprar”. Esses são os de mentalidade liberal. São os Sílvios Santos e Robertos Marinhos deste mundo.

Assim o problema da ignorância pública, infelizmente, continua e se agrava, de modo que não é fácil a socialização do homem culto. Quanto a mim, que mesclo a sensibilidade social esquerdista com a filosofia moral conservadora, o desafio é manter a fé de que a elevação do povo é possível, ou ao menos a dos indivíduos que ainda se importam com suas almas, sem jamais ceder ao cinismo. Conseguirei? Convivendo com a plebe, é difícil. É provável que eu fracasse. Mas, ao menos moralmente, é uma luta que vale o esforço. Nem aceitar os tolos, nem os odiar, antes, o caminho da serenidade: procurar compreendê-los e ajudá-los no que me for possível. Mas de preferência à distância, sem precisar ouvir suas tolices mais que o mínimo suportável.


Notas:

1-  A tirinha exibida é do cartunista Laerte.

2 - Aqui o texto "Jovens Parananeses", do Olavo de Carvalho

3- E aqui a crônica de Nelson Rodrigues sobre o Palhares

02/08/23

Como é a vida de um vagabundo

 

[Novos Baianos - A face da vagabundagem artística]


Embora seja verdade que ando procurando emprego, não posso, não devo e não tenho a mínima pretensão de negar que sou, em espírito e em ideologia, um vagabundo.

"Vagabundo Intelectual", "Ocioso Profissional", "Vagabundo de Elite" são alguns dos termos que poderia usar para me descrever. O que mais gosto, no entanto, é o sonoro e retumbante "Elite da Escória" (Será, se tudo der certo, título de algum livro ou conto futuro).

A vida de um vagabundo profissional, dentro dos seus limites, é boa - provavelmente melhor que a vida de muitos de vocês. Certamente não é para qualquer um, já que exige um nível de desapego e de distanciamento social considerável; junto da permanente instabilidade financeira, é claro.

Contarei já tudo o que é necessário saber sobre esse estilo de vida. Mas antes, como me é típico, trarei alguns esclarecimentos prévios. O amigo leitor, caso queira, pode pular para a segunda parte.


[Colin Wilson - o vagabundo literato]

  1. De como me tornei um vagabundo profissional

Ao contrário do que se pensa, não é fácil se tornar um vagabundo. Não estou considerando aqui aqueles casos em que não houve escolha, onde o processo foi consequência de fracassos pessoais e de uma certa maré de azar. Não foi o meu caso, nem o dos meus amigos. O nosso processo foi ideológico/ filosófico: está totalmente atrelado a um sistema de crenças e valores que desafia os modelos e as imposições sociais da civilização atual.

Sofri influências diversas. Literárias, cinematográficas, filosóficas. A ideia de uma vida simples e contemplativa, do Thoreau; a sugestão de uma vida boêmia e calorosa, do Jack Keruac. Um modelo mais próximo e contemporâneo, Eduardo Marinho, outro; o Alexander Supertramp. A história do Leonardo Maceira; viajar sem dinheiro pelo Brasil tirando fotos de belas mulheres nuas em meio à natureza. Contagiante. Qual artista aventureiro não gostaria de uma experiência dessas? E a base filosófica mais profunda veio do Bertrand Russel em seu Elogio ao Ócio. Também os relatos de Orwell sobre seu tempo de vagabundo - Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios - e o ensaio de Tocqueville sobre a pobreza me cativaram. Tolstoi, com seu cristianismo anarquista naturalista, uma influência mais distante. Thomas Merton, com sua apologia da solidão, também.

Enfim, modelos não me faltaram. Fossem aristocratas, burgueses, intelectuais, drogados, monges ou pobretões.

Entendam: sou um sujeito livresco, artístico, cultural e contracultural, com certa admiração pelo que foge à regra. O que as pessoas normais acham absurdo, fora do comum, coisa de maluco, acho interessante, faz parte do meu imaginário. Então viajar de carona, levar uma vida boêmia ou ser um tanto vagabundo sempre foram ideias bastante aceitáveis para mim, pois me lembravam as experiências de pessoas que eu admirava.

No entanto, perceber que o modelo de vida vagabundo era, para mim, psicologicamente mais saudável do que uma vida integrada ao sistema foi algo que só aprendi com o tempo. Já fui um agente do sistema. Já estive em suas entranhas, vi seu funcionamento torpe e corruptor por dentro. Estive nas forças armadas, convivi com autoridades, tinha uma carreira estável. Estive numa das melhores universidades públicas do país, tive acesso à nossa elite, seja a intelectual seja a econômica. Em todos esses lugares, sempre me impressionou a mesquinharia, o imaginário débil, a preguiça intelectual, a burrice, o medo da superioridade alheia, a hipocrisia, o corporativismo tacanho, a sujeição bovina aos símbolos de status e autoridade, a burocracia kafkaniana, as leis sem sentido, o fuzuê geral que se instaura em cada instituição, em cada debate, em cada círculo do funcionalismo.

Com o tempo, foi ficando claro que eu tinha uma forma de pensar, um tipo psicológico, um certo sentimento filosófico - outsider - que não era comum. Fui percebendo que nessa sociedade, nessa cultura, as pessoas como eu acabavam enlouquecendo. Alguns dos meus amigos, iguais à mim, foram parar no hospício. Outros, no caixão. Eu iria pelo mesmo caminho, não tenho dúvidas. Já tinha até carta de suicídio pronta.

Por outro lado, minha vocação em escrever e ter uma vida contemplativa, em ser um observador da loucura do mundo, em pôr o dedo nas feridas, se fazia cada vez mais pujante. Até que uma série de tragédias - incluindo o suicídio de alguns bons amigos - me fez perceber que minha sanidade estava também indo para o ralo, e logo eu teria que - como a maioria de vocês- viver à base de psicoterapia, remédios de tarja preta, sessões de auto-hipnose na igreja evangélica e conselhos do Dráuzio Varíola e do Flavio Gikovate. Então, apreensivo, optei por um período de isolamento com a tríade: eremistismo urbano + misticismo cristão + vagabundagem filosófica.

Pôr a mente no lugar, deixar a vocação fluir. Encontrar Deus no Silêncio, nas Trevas e na música de Wagner. Foda-se o resto.

Inteligência, orientação e sanidade sempre foram importantes para mim. Se o único jeito de mantê-las era me afastando da sociedade e frustrando as expectativas dos meus pais, tudo bem; era um preço que eu podia pagar. Aceito bem a infâmia.


[Renton e sua trupe de vagabundos junkies - Trainspotting]

2. Aspectos da vida de um vagabundo.

Tempo

O vagabundo tem tempo, não tem pressa para quase nada. A únicas grandes preocupações são com o mínimo de comida, de saúde e de moradia (E, no meu caso, com o caminhar da vida intelectual e espiritual).

Se o vagabundo acorda e diz: "Declaro hoje feriado pessoal. Está proibido trabalhar." É a Lei e não se fala mais nisso.

Podemos passar horas sentados, descompromissadamente, observando o ambiente ao redor, refletindo, comparando nossa vida livre com as das outras pessoas, cheias de compromissos, presas a todo tipo de senhores, padrões, comportamentos, relações e ideias.

A noção do tempo dos vagabundos, obviamente, não é das melhores. O vagabundo pode demorar muito para fazer as coisas. Hoje é quinta? Sexta? Sábado? O vagabundo não sabe. E nem se importa.

Stress

Em decorrência dessa liberdade de ação, o vagabundo não tem stress, ou o tem em pouquíssima quantidade. Pode ficar ansioso quando se aproxima o dia de pagar o aluguel, ou temerário depois do segundo dia sem comer, mas a vida lhe ensinou que há, quase sempre, alguma resolução, que a Providência não abandona os justos, nem aqueles que tentam sê-lo. O vagabundo tem fé, tem fé em Deus, tem fé no Destino, tem fé em milagres, tem fé na bondade humana.

Ele é, a um só tempo, um homem só, abandonado, e um exército de resiliência.

Renda

O vagabundo sabe, mais do que todos, que dinheiro, por mais importante que seja, está longe de ser a coisa mais importante. Ele consegue as coisas, muitas vezes, na base da lábia, da amizade e da boa fé. Ele não teme se expor. Sabe de sua condição e não pretende negá-la. Mesmo não sendo apegado ao dinheiro, sabe que deve honrar seus compromissos financeiros quando são com pessoas. Como o vagabundo entende que pessoas jurídicas não são pessoas, ele se permite furtar algumas coisas do supermercado e dar alguns calotes institucionais aqui e ali.

Mas sempre há algo que o vagabundo sabe fazer. Eu, por exemplo, escrevo - mal, mas escrevo. Também desenho - mal, mas desenho. Eu sei hipnose - pouco, mas já impressiona. Também sei falar, dar aulas, entreter. Quando o vagabundo não é bom em obter dinheiro com seus talentos (meu caso), ele sabe ao menos onde ir e obter recursos de graça ou a preços irrisórios. Vai recorrer, evidentemente a caridade dos bem afortunados, sejam parentes, sejam amigos, sejam desconhecidos. Ou aos órgãos públicos destinados ao serviço social. Aqui em Brasília há, por exemplo, o "Rorizão", Restaurante Comunitário cujas refeições (café da manhã e almoço) custam apenas dois reais cada.

Os caridosos, por sua vez, amam o vagabundo, especialmente quando é esclarecido. A maioria das roupas que tenho, ganhei. Perfumes, ganhei. Relógios, ganhei. Livros, também.

Saúde

O vagabundo conhece os melhores métodos de sobreviver às intempéries e privações. Ele sabe o que comer para manter a imunidade elevada, sabe como se exercitar, conhece as receitas mágicas, passadas de geração em geração, para curar as moléstias. Conhece as plantas, sabe onde obtê-las. E se ele não sabe de nada disso, conhece quem sabe.

Vida interior

Não dispondo de muitos recursos externos, o vagabundo se volta para si mesmo. É um homem cuja vida interior é invejável, de imaginação aflorada, com uma memória vívida do passado. A prática da reflexão, pelo tempo, fez dele um filósofo, naquele sentido kantiano do termo, segundo a qual a maior característica do filósofo está na reflexão aprofundada e não necessariamente no conteúdo da reflexão.

O vagabundo pode conversar sobre qualquer assunto que envolva aspectos humanos. Ele desenvolveu uma capacidade incrível de separar o que é realmente importante na vida e o que não é.

Amizades

Está aí o que talvez seja a maior fonte de prazer para o vagabundo. Ele pode ficar sem comer, sem pagar o aluguel, sem atualizar seu vestuário, mas não pode ficar sem beber com seus amigos. Muitas vezes, os amigos acabam o induzindo a se entorpecer além do álcool, o que ele faz, embora vá se arrepender depois.

Há momentos em que a rabugem lhe toma conta e então ele se torna agressivo e desdenhoso. Mas logo se arrependerá e recorrerá, novamente, aos amigos. De onde sempre extraí ânimo de viver e alguma força. Por isso o vagabundo é extremamente fiel aos amigos, como um cachorro. Está disposto não só a fazer o bem, mas mesmo a fazer o mal para defender os seus.

Tragédia Existencial

O vagabundo tem muito claro para si a dimensão trágica da vida. Ele não nega suas dores, seus sofrimentos, nem os alheios. Mas nada disso o faz fraco, pelo contrário. Encara a morte de um amigo, por mais que o ame, como encara a morte de uma borboleta ou a imprevisibilidade geográfica dos raios: são fatos da vida, inevitáveis, inescapáveis.

O vagabundo é, sobretudo, um estoico. Jamais se incomoda ou se revolta com aquilo que não pode mudar. Longe de se rebelar contra a Natureza, ele a respeita profundamente.


E há, certamente, muito o que poderia ser dito. Mas creio que pude lhes dar ao menos uma breve dimensão desse estilo de vida. Não recomendo. É só para os doidos.

"As únicas pessoas que me interessam são as loucas, aquelas que são loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas; as que desejam tudo ao mesmo tempo. As que nunca bocejam ou dizem algo desinteressante, mas que queimam e brilham, brilham, brilham como luminosos fogos de artifícios cruzando o céu."

Jack Kerouac


01/02/23

O Artista e Sua "Loucura"

Há quem pense que os artistas são, quase sempre, pessoas instáveis, de mente fértil, porém perturbada, estando a apenas alguns passos de distância dos loucos.  Acontece que, apesar das aparências, isso não é bem verdade. Não é que artistas possuam maior tendência a ter transtornos mentais, a realidade é outra: artistas são corajosos o suficiente para expor sua alma via arte. Quem olha para dentro de si, por tempo suficiente e com a profundidade devida, sempre encontra imperfeições, transtornos, traumas, vieses. O artista trabalha isso, depura a si mesmo por meio de sua arte. Trata sua psique ferida com ela, que pode ser, entre outras coisas, uma forma de terapia espiritual. Tratando a si mesmo, expondo-se, ele se aprimora, podendo exorcizar seus males, enriquecer a cultura e o imaginário da humanidade. Colabora consigo e com o mundo.

Por isso, em geral, bons artistas se conhecem bem mais do que as pessoas comuns. Eles não são "mais doidos" que as pessoas normais (ao menos não todos, e certamente não a maioria). Ocorre que, diferente das pessoas normais, os artistas foram tão fundo dentro de si mesmos que perceberam o que neles era totalmente diferente, perceberam sua loucura, ou desajuste particular. Perceberam sua singularidade, e então, num segundo passo, a aceitaram. Depois deixaram de se intimidar com isso e pararam de fingir. Assim puderam abraçar a si mesmos e expressar isso sendo autênticos.

O que a maioria das pessoas chama de loucura na classe artística é apenas expressão da individualidade, singularidade e da autenticidade. É um abandono do fingimento. Como a nossa sociedade estimula o fingimento e o comportamento de manada, o homem comum estranha e acha esquisito quando alguém se permite ser autêntico e foge dos padrões.

Raramente conheci um artista que não tivesse consciência da sua loucura e dos seus dramas pessoais. Por outro lado, o que mais conheço é gente normal cheia de traumas e problemas mentais, mas sem consciência nenhuma disso; gente que vive na base do fingimento, do remedinho para camuflar as ansiedades e do autoengano. Gente que é incapaz de ser sincera até consigo mesmo. Essa é a tal da gente normal. Credo! Eu tenho até medo...

Aliás, sempre bom lembrar: normalidade não é exatamente algo saudável, pode ser uma doença. Se você é normal demais, por favor, vá se tratar:

Salvador Dalí manda lembranças:

Nota do Editor: como outras publicações deste blog, a primeira versão deste texto foi originalmente publicada como resposta no site Quora

23/11/22

A Aventura Espiritual de Alexander Supertramp

Christopher Mcclandless, mais conhecido como Alexander Supertramp

Quem nunca pensou em se afastar da sociedade, da loucura e da violência dos homens, e ir morar na roça ou no mato?

O caráter patológico e a falta de sentido dominante na vida moderna são tão intensos e onipresentes que, em consequência, não há quem não viva depressivo, angustiado e ansioso. Aliás, a depressão foi considerada pela OMS como o Mal do Século.

A vida na cidade - e no mundo "civilizado"- só é possível com sérios prejuízos a saúde mental, produzindo variadas neuroses, psicoses e tic-tics nervosos. Exatamente como naquela famosíssima e tragicômica canção dos anos 80.

Pensou que era só uma canção bobinha? Nem tanto: era praticamente uma análise clínica da vida moderna! Bem humorada, mas certeira.



Estou preso no trânsito com pouca gasolina
O calor tá de rachar e lá fora é só buzina
Perdi o meu emprego, que já era mixaria
E ontem fui assaltado em plena luz do dia!

Isso me dá tic tic nervoso
Tic tic nervoso, tic tic nervoso
Isso me dá tic tic nervoso
Tic tic nervoso, tic tic nervoso

[…] Encontro uma garota,

um tremendo avião

pergunto o seu nome

ela me diz que é João!

Isso me dá tic tic nervoso

Tic tic nervoso, tic tic nervoso

Isso me dá tic tic nervoso

Tic tic nervoso, tic tic nervoso[..]

O mundo moderno, com suas cidades, prédios de arquitetura horrorosa, buzinas, carros, fábricas e tons de cinza variados e onipresentes; não é apenas feio, poluidor, fedorento e barulhento: é enlouquecedor também.

Em vista disso, algumas pessoas se sentem extremamente motivadas a mandar tudo para a p%$@ que o p&#$l e ir viver sossegadas em algum cantinho isolado perto da natureza, do canto dos pássaros, do ar puro.

As histórias sobre pessoas que, por esses motivos e outros, se afastaram da sociedade são muitas. Contudo, existe uma em especial que me marcou muito, visto que exerceu sobre mim uma grande influência.

É claro que irei falar aqui do Christopher Mccandless, ou, para os íntimos: Alexander "Supertramp" ("Supervagabundo").


[ Mccandless, na faculdade]

A vida que Christopher levava, para muita gente, seria considerada uma vida perfeita. Filho da alta classe média norte-americana, jovem, bonito, formado por uma das melhores universidades norte americanas, culto e inteligente.

Mas tinha um defeito: uma sensibilidade moral e crítica aguçada, que lhe fazia rejeitar profundamente as hipocrisias e artificialidades da civilização. Considerava que o afastamento humano da natureza havia sido um erro. A vida humana, pensava, era mais saudável quando o homem estava melhor integrado ao mundo natural.

Não podendo mudar o mundo, mas podendo mudar a si mesmo, Christopher se meteu no que chamou de sua "Revolução Espiritual". Doou todo o dinheiro de sua conta bancária - 24 mil dólares- para a caridade e saiu a viajar em busca de aventura e de um contato profundo com a natureza.

[Mccandless, na natureza]

Um breve resumo de sua aventura pode ser encontrado no artigo da Wiki:

Devido a um problema com o seu velho Datsun amarelo, Chris foi impelido a abandoná-lo junto ao lago Meade, no Vale Detrital, mas isso não o impediu de continuar. Encarou a situação como um sinal do destino e, abandonando junto ao carro grande parte dos seus pertences e queimando todo o dinheiro que trazia consigo – cerca de cento e vinte e três dólares –, Chris McCandless partiu a pé em direção ao Oeste, adotando um novo estilo de vida, no qual era livre e assumia o nome de Alexander Supertramp, seguindo os ideais de Henry David Thoreau, Leon Tolstói e Jack London, em busca de experiências novas e enriquecedoras.

Foi à boleia que chegou a Fairbanks, no Alasca, fazendo amigos e conhecendo lugares magníficos pelo caminho. Entre as suas aventuras destacam-se uma descida do rio Colorado em canoa. Walt e Billie McCandless, pais de Chris, ainda tentaram encontrá-lo, mas em vão. Apenas a sua irmã Carine recebia uma carta de vez em quando, e mesmo ela não sabia a sua localização. Os anos foram passando, e Chris continuava sozinho, algures na América, passando por Carthage, Bullhead City, Las Vegas, Orick, Salton City, entre outros, até chegar finalmente ao destino pretendido: o Stampede Trail. Conheceu Jan e Bob Burres, Wayne Westerberg, Ronald Franz (nome fictício), que se tornaram seus amigos inseparáveis a quem se ia correspondendo por cartas; permaneceu em alguns sítios durante meses, mas partia de seguida para outras aventuras.

Por onde passou, Chris alterou as vidas das pessoas que o conheceram. A sua personalidade forte, muito inteligente e simpática deu uma nova vitalidade a Jan, Franz e Westerberg. Raramente falava de Annandale e de casa, e eram muitas as vezes em que era reservado e ponderado. Mas o rapaz de vinte e quatro anos, que todos conheceram como Alex, cumpriu o seu destino e partiu de Fairbanks em direção ao Monte McKinley, dois anos depois de ter iniciado a sua viagem.

Gallien deu carona a Chris até o Parque Nacional Denali, através do Stampede Trail, um caminho que levava ao interior do Alasca. Também ele simpatizou com o rapaz, que gentilmente lhe contou os planos de permanecer alguns meses na floresta. A única comida que levava era um saco com cinco quilos de arroz, e o seu equipamento era inadequado para quem planejava fazer o que ele se propunha. Ainda assim, o rapaz parecia determinado, e nada o podia dissuadir. Partiu assim para o desconhecido, ignorando a hora e o dia, numa quinta-feira de abril, sem deixar rastro.

Através de um diário que manteve na contracapa de vários livros, com cento e treze entradas, podemos compreender o que realmente aconteceu a Chris McCandless na sua viagem ao interior do Alasca. O seu diário contém registos cobrindo um total de 113 dias diferentes. Esses registos cobrem do eufórico até ao horrível, de acordo com a mudança de sorte de McCandless.

Alimentou-se do que trazia e de algumas bagas que colheu na natureza, tal como de alguns animais que caçou, com sucesso; leu vários livros, rabiscando-os com pensamentos próprios sobre a vida; passeou por diversos bosques, mas o local onde permaneceu mais tempo foi logo abaixo da Cordilheira do Alasca, onde ainda hoje se encontra um ônibus abandonado. O veículo, de número 142 do sistema municipal de trânsito de Fairbanks, foi a residência do Chris nos meses em que se encontrou na floresta. Em seu interior ele escreveu algumas frases, como:

“ Sem jamais ter de voltar a ser envenenado pela civilização, foge e caminha sozinho pela terra para se perder na floresta. ”

Infelizmente, a história termina de forma mais ou menos trágica: o jovem romântido, espiritual e idealista acaba como todos os idealistas: morre em consequência de seus ideais.

A história foi contada no livro:

E no emocionante filme homônimo (com trilha sonora espetacular):



Algumas fotos:


Essa última ficou tão famosa, provavelmente devido ao filme, que dezenas de pessoas a reproduziram (o ônibus ainda está lá):



"Society man, society!"


                                                                        ***

Assim como outros textos publicados neste blog, a primeira versão do texto acima foi originalmente publicada como resposta no site Quora.

07/09/22

O Homem Que Perdeu a Mulher Amada



O amor conjugal, quando verdadeiro, só pode culminar em angústia, dor e intenso sofrimento. A união baseada nessa forma de amor engendra no espírito humano uma profunda e irrecuperável dependência. É pesado, é agonizante, é comovente e é trágico o sofrimento do homem que perdeu sua amada, que perdeu sua outra metade, sua razão de viver. Ele chorará com a facilidade de uma criança, mas sofrerá como se o próprio ar lhe aviltasse, como se cada inspiração o envenenasse; e a vida para ele figurará como equívoco, lástima, desvario. 

Desejaria aceitar o capricho divino, mas seu coração não pode, seu amor não permite. Quer a amada a seu lado. Queria antes, quer agora, quererá depois e sempre, sempre, sempre. Mas ele não passa de criatura humana, não tem o poder de ressuscitar os mortos, e a sua fé, mesmo quando grande, não lhe serve senão como consolo. A dor, a intensidade do sofrimento, o fará descobrir que não é verdade que a fé move montanhas, não é verdade que ressuscita os mortos... Descobrirá que não é mais forte a fé do que o fato, de tal modo que lhe consumirá o sofrimento, o sentimeno de perda, o amargor. Para continuar a viver, precisará acostumar-se com o vazio, com a saudade e com o sofrimento. 

Sabemos que o gênero humano, para o bem ou para o mal, é do tipo que se acostuma. Assim, o mais provável é que o homem que perdeu a amada, depois de intenso sofrimento e desilusão, um dia deixará de chorar; e se não deixar de sofrer, ao menos se acostumará a viver com o sofrimento. 

Amar, viver, sofrer... A tudo o homem se acostuma.

02/09/22

Com Família, com Música, com Coragem



Mamãe e eu no hospital, alguns meses antes...


Hoje, sexta feira, 02 de Setembro de 2022, dez dias antes do meu aniversário, mamãe morreu. Foi hoje, sei bem. Aconteceu às 16:35. No quarto do hospital, durante a partida, mamãe estava acompanhada por quatro dos membros mais próximos da família- Eraldo (papai), Juliane (minha irmã), Thiago (meu cunhado) e eu. Os outros dois - Eliseu e Lorena (meu irmão e minha cunhada) - estavam a caminho. 

Chorávamos, nós quatro, e ao mesmo tempo a confortávamos expressando nosso amor. Papai a abraçava, Juju lhe segurava as mãos em um momento, eu em outro. Thiago lhe beijava a testa. "Estamos com você"; "Te amamos"; "Não tenha medo" era o que dizíamos. Embora tudo nela fosse fraqueza e decadência física, mamãe pareceu sentir algo. Mudou o semblante e também a posição. Antes deitada, inclinou-se a frente e tirou a máscara de oxigênio. Papai tentou repor, mas por três vezes ela o repeliu. Ele a questionou: "-mas, meu bem, não queres a máscara? É isso mesmo?" Ela fez que sim com a cabeça.

Sem máscara, abraçada pelo esposo, assistida pelos filhos e genro, mamãe, segurando as mãos de papai, revirou os olhos e depois aquietou-se. Assim, enquanto nós chorávamos, o seu elevado espírito deixou o seu debilitado corpo. Partiu sem dor, sem violência, sem medo. Naquele momento, tocava a versão instrumental, em sax, de "Alvo Mais Que a Neve". Choramos, nos abraçamos, choramos, oramos. O momento derradeiro finalmente chegara, e mamãe foi de peito aberto, preparada, sem medo. 

Estava consumado. Agora mamãe não mais sofreria, agora; ficaria em paz. O corpo padece e fenece, mas eu acredito que a alma é imortal. Eu sei que vive a alma de minha mãe, Julia Ramalho Barbosa, que foi professora, esposa, filha exemplar, anjo doméstico, cuidadora, fiel devota, ativista social, artesã, excelente cozinheira e amiga leal.

Sei que ela partiu preparada. Sei que foram feitas as suas vontades. Despediu-se dos parentes amados, inclusive dos pais. Passou alguns dias em casa, recebendo pessoas, despedindo-se. Contou aos filhos os seus desejos. No fim, ela, que não se achava forte, foi muito mais forte do que todos nós imaginávamos.

Registro que mamãe foi um anjo que, muitas vezes, de muitas formas, salvou-me a vida. Viveu para e pela família, e - não poderia ser diferente - durante o momento de maior sofrimento de sua vida, sua família esteve literalmente a seu lado, dia após dia, impressionando médicos e enfermeiras pela união ativa e altiva (nós enlouquecíamos os burocratas do hospital que tentavam limitar as visitas). 

Mamãe viveu uma vida repleta de honestidade, generosidade, responsabilidade, caridade, amor e fé. Odiava mentiras. Era inocente, de uma pureza infantil, muito meiga, tímida, não sabia receber elogios, e era sempre muito preocupada com os entes queridos. Mulher de outros tempos - eu nunca a vi dizer um palavrão.  Era daquele tipo raro de gente que a feiúra do mundo não conseguiu macular. 

Quanto menos eu merecia, mais me amava. Quanto menos eu acreditava na vida, mais insistia que eu não deveria parar. Tudo o que tenho de qualidade moral, de amor às artes e ciências, tudo que tenho de fé, devo a ela e a meu pai. 

Apesar da tristeza, e do luto, não me permito tragificar o que é fenómeno natural. Mamãe viveu, e viveu bem, como mulher honrada. Partiu, e partiu bem, sentindo a mulher amada que era, com família, com música, com coragem. Sua vida foi bela, e seu derradeiro momento também. Sou imensamente grato pelo que com ela vivi, sou grato de ter seu sangue, seus traços, seu temperamento caseiro e letrado, sua cor, seu conservadorismo. Foi uma grande mulher, uma grande mãe, uma esposa fiel e cuidadora, uma inconformada com a pobreza e a injustiça social (cursava Direito quando descobriu a doença...). Não deixou inimigos e não há neste mundo quem a maldiga. Por tudo isso, deixará imensas saudades e jamais será esquecida pelos que a amam. 

Obrigado por tudo, mamãe. 

01/09/22

Como Escandalizar os Doutos


John Ramalho meditabundo


Ontem cometi o crime de sair de casa. Fui até a UERJ para participar de uma inovadora pesquisa que põe a física a serviço da parapsicologia; buscando responder uma pergunta velha e intrigante: pode a intenção humana influênciar as probabilidades dos acontecimentos?

Os voluntários: um grupo de professores universitários, sete universitários e eu. Depois de conversar com os professores, esbanjando carisma e erudição, ficaram admirados com o fato de eu parecer bem informado sobre tudo (conversei com o físico, com a professora de artes e a de cinema). Alguém me perguntou: você é professor de que? E depois outro: você é jornalista, né? Respondi, claro, a verdade: blogueiro. Humilde blogueiro. Sempre blogueiro. Blogueiro blogspot. Blogueiro que escreve textinhos. Escrevinhador, croniqueiro.

E aí as caretas de incompreensão. A dúvida no olhar. O escândalo. Não entendem. Como ele sabe tudo isso sem um curso superior, sem um diploma, sem uma posição social de autoridade? Serei sempre um tormento para os seus corações, amanhã esquecerão que existo: espírito livre de vaidade, pobretão e vagabundo, sou para eles uma anomalia.

A resposta é simples: o conhecimento não está nos títulos, está nos livros, nos vídeos e na internet. Basta ser curioso, saber pesquisar, ter boa curadoria e ter um bocado de amigos inteligentes para te auxiliar e inspirar no processo. E, claro, é bom aprender a lembrar do que estudou. Escrever ajuda.

Não é a primeira vez que me acontece isso, de impressionar doutos, autoridades. Na marinha, a minha prosa cultural e filosófica angariou as simpatias do meu capitão. E mesmo marujo, eu era convidado a almoçar com ele, o que na marinha é quase quebra de hierarquia, pois oficiais e praças não podem comer juntos.

Marginal, quando me metia em encrencas com a lei, meu juridiquês criava a ponte com meus defensores, que por me crerem estudioso, melhor me defendiam. E houve algumas ocasiões em que me passei por bacharelando em Direito para evitar a má vontade de algumas autoridades.

Também me acontece com o homem comum.Outro dia, na rua, depois de comprar cerveja, um senhor que estava no bar me elogiou: disse que eu era educado porque ao entrar dei boa tarde a todos os presentes. Outra vez, na fila de um caixa, eu sai da fila para pesquisar na internet como fazer a operação que eu queria, um senhor reparou minha saída e, curioso, pediu explicação. Contei a ele que eu não queria atrasar ninguém e que me parecia melhor aprender primeiro e fazer depois. O velhinho imediatamente me acusou de "não ser brasileiro". Disse que em seus 60 anos de vida experimentada, raramente vira um brasileiro sensato. Eu não soube o que dizer, mas sorri, meio sem jeito.

Eu não sou ambicioso. Tenho alguma vaidade intelectual, é verdade. Mas não ligo muito para o mundo material. Não sustento cinco minutos numa conversa sobre casas, roupas de marca, restaurantes chiques, carros e viajens a lugares impressionantes. E menos ainda numa conversa sobre futilidades. Um óculos elegante e uma combinação de roupas charmosa e com personalidade me encanta muito mais do que a pessoa ter passado as férias em Dubai. E, claro, as leituras e as referências culturais, e a personalidade, e a prosa, e as virtudes, as habilidades, e as paixões e anseios superiores, a história de vida, os dramas, é isso que olho antes de decidir se vou ou não me relacionar com alguém.

Naturalmente, por ser criterioso, vivo numa bolha, e boa parte dos meus amigos comungam do meu espírito ou, ao menos, compreendem essa minha disposição existencialista, humanista, bucólica, contemplativa, quase anarquista, certamente anarcodidata, vulgarmente literária, intelectualóide e um pouco cristã. Mais do que isso: sabem os amigos dos meus problemas mentais, da minha frágil sanidade, do demônio que me domina, e compreendem a minha reclusão, a minha autoproteção, o meu medo de perder o equilíbrio.

Disse-me o senhor: amai o teu inimigo; e para cumprir o mandamento tive que amar a mim mesmo. E amar-me significou querer-me melhor, e querer-me melhor significou renunciar aos prazeres do mundo, às glórias banais. Como poderia eu me integrar perfeitamente a um mundo que abomino, a um sistema social que me embrulha o estômago e me afronta a inteligência? A maioria dos que conseguem fazem-no com severos prejuízos no desenvolvimento moral e espiritual. São ansiosos, depressivos, vivem à base de pílulas.

O homem médio de nosso tempo é infantil, imaturo, desorientado, inculto, fútil e tolo. Pior: porque tamanha inépcia existencial vem coroada com a absurda certeza de que é ele o ás da evolução, a culminância do progresso, o ser mais avançado de todas as épocas. Terrível e fatal ilusão!

E assim, ao sair de minha bolha, encontro as vezes o homem comum, as vezes os doutos. Os dois me elogiam e se admiram do que sou...

Mas nenhum deles me compreende.

Ser como eu - apaixonadamente autodidata e cinicamente plebeu - é ser um manual de como escandalizar os doutos.

...

A versão original desta crônica foi publicada no Facebook

03/08/22

Um Óculos Para Mersault


Um simples óculos evitaria o homicídio mais idiota da Literatura.

Agonia ao reler O Estrangeiro. Que bem faria a Mersault um óculos de sol! (já existia em 1942...)E que mania horrível aquela de "tanto faz", uma indiferença cuja origem só pode ser a apatia ou um germinal niilismo. Sugere o segundo quando, várias vezes, inclusive diante da proposta de casamento, reage com "isto não significa nada", negando o valor das convenções.

Tipinho hedonista e sem ambições, Mersault é motivado sempre por ideias de jerico e pelo seu caráter morno, sem sangue e sem sal. Tipinho que dá nos nervos. Homem sem drama, sem dor, sem paixão. Tem o espectro emocional resumido em duas sentenças: "isto me aborrece" e "isto me agrada". Se lhe cortassem os bagos, era capaz de reagir com:"Tanto se me faz" ou "Aborrecia-me viver sem os bagos".

Mesmo o crime que comete não lhe é fruto da vontade, mas antes de equívoco. Evento descrito numa cena que, aliás, é mal escrita e deficiente em credibilidade: como é que se explica que Mersault, desnorteado e cego pelo calor excessivo, a nove metros de seu inimigo, acerte-lhe nada menos do que cinco tiros?! Falta coerência nesse arranjo: a cena não convence. Ora, àquela distância, nem a navalha do árabe oferecia ameaça e nem Mersault lhe poderia acertar os cinco tiros, visto a sua condição ser a de um fotossensível cego pela luz solar. O mais cabível na cena era que este atirasse aos céus e que o outro, assustado, fugisse.

Ante personalidade tão mequetrefe, entende-se bem o incômodo da sociedade julgadora: que mais se admira da falta de emoção do homem do que propriamente de seu crime.

É dito que essa obra de Albert Camus - considerada indevidamente um clássico - trata da filosofia do autor, que explora o conceito de Absurdo. É explicação leviana e equivocada, uma coisa nada tem a ver com a outra. O Mito de Sísifo é interessante e bem escrito. Em O Estrangeiro, exceto pela cena mal escrita de homicídio, nada há de absurdo no que acontece à Mersault.

Absurdo, absurdo mesmo, é que uma obra tal, tão tímida na forma e tão baixa no conteúdo, seja tão recomendada e tão lida por aí.

A minha vontade de leitor era a de aprender magia negra, ressuscitar Camus, pegar os meus volumes de Celine e Victor Hugo e dar-lhe incessantes bordoadas aos berros de: "Está vendo? É assim que se conta uma história, desgraçado!";"Tome! Sinta! Sinta, desgraçado! Sinta na pele a Literatura de gente!"

Concluo com o meu preconceito: quem nasce argelino, jamais chega a ser francês. Nasce pobre e faz pobre a literatura. Uma literatura assim, sem o L maiúsculo.

22/06/22

Notinha #6: Contra Gigantes

Ocorre, vez ou outra, de encontrar pessoas que parecem voar níveis acima dos meus em desenvolvimento moral, espiritual, artístico, cultural e intelectual. Falam sobre assuntos difíceis e complicados, de modo que nunca as compreendo na totalidade. Por vezes, sinto que emanam uma sapiência - poderia dizer uma superioridade - que não apenas surpreende, mas paralisa. Diante delas, envergonho-me de meu tamanho e tudo quanto sei ou fiz parece raso e sem valor.

Que fazer diante de quem em tudo se mostra superior? Que fazer com o brilho alheio que ofusca e cega?  Uma tragédia que haja no mundo qualquer criatura melhor e maior que eu! A mera ideia de olhar ao alto, de precisar erguer-me para alcançar outro ser, ofende-me demasiado. Que desigual e cruel batalha é a luta contra gigantes!

Não podendo jamais me elevar, seja por insuficiência de força moral ou de inteligência, só posso desprezar os que se elevam. A verdade é que primeiro senti a inveja, depois, o ranço; agora, rumino vingança. Vingar-me-ei do sentimento de mediocridade, de inferioridade, de nada, ao qual me condenaram. Zombarei dos ideais elevados, caluniarei seus nomes, desmentirei suas conquistas. Com a pena que empunho, tramarei para que sigam na história como fraudes e paspalhos.

Um mundo no qual eu não possa reinar é um mundo que não merece existir. Que caiam os gigantes, para que este pequenino seja rei.

20/04/22

Esquizofrenia Afetiva e Impermanência


JHN NES
John Nesh e seu grande amigo imaginário. Cena do filme Uma Mente Brilhante.

 

Ao contrário do que normalmente se supõe, a perda do senso de realidade não é o que distingue os loucos dos sãos, mas justamente o que os aproxima.

Usualmente, o louco é caracterizado pela total ou quase total perda do senso de realidade. O homem comum, contudo, é caracterizado pela  perda sempre pontual e parcial desse senso; perda essa que - diferente do caso do louco - não chega a impossibilitar as atividades do dia à dia, mesmo produzindo grandes angústias e confusões no espírito.

Vejamos: o homem comum é levado, pelo hábito ou pela inércia, a crer na realidade dos laços afetivos que cria tal como é levado a crer na realidade do vento ou das árvores. Na infância, se bem educado, ele aprendeu que o destino das coisas naturais é a finitude. Ele sabe que os ventos mudam de direção, sabe que as árvores morrem. Contudo, por algum motivo, quando os laços afetivos parecem fortes e poderosos, ele quer, ele deseja, ele espera que durem para sempre. Pior: ele conta com isso. Diz frases tolas e, inadvertidamente, em discursos apaixonados, faz uso do "para sempre" ou "de até que a morte nos separe". Ele faz  planos. E sonha. De tal modo que a ilusão se agiganta, tornando-se alucinação. Ele alucina na intenção de fazer perene um estado de coisas que, assim como tudo o que existe, está fadado a destruição.

É quando o laço subitamente se rompe, por um jorro qualquer de realidade inesperada - não é preciso a morte para separar, a realidade já basta - que ele vê a ilusão esquizofrênica ir pelos ares. O que parecia real e perene já não é mais. A realidade concreta, cruel, imprevista, atual, golpeia, viola, zomba do que ele julgava a realidade efetiva. E pela primeira vez o homem comum se sente obrigado a indagar-se sobre a natureza das coisas, sobre a natureza da realidade, das relações, dos afetos. Ao refletir sobre o contraste entre a realidade esperada e a realidade vivida, chega, enfim, à metafísica. Levanta questões: "Que é, afinal, a realidade? Que devo esperar dela? Como posso ter me iludido tanto, julgado real o que era imaginário, julgado perene o que era momento?"

Se bem educado, ele se lembrará de Heráclito, lembrará a máxima da impermanência, lembrará que "tudo flui". Ou talvez - mais provável- vá lembrar da canção de Lulu Santos: "...nada do que foi será/ do jeito que já foi um dia/ Tudo muda/ Tudo sempre mudará...". Se for dado a narrativas orientais, lembrará do princípio do "Tao". E talvez, como Proust ou como todos os grandes memorialistas, ficará obcecado pelo tempo, pelas interações humanas, pela natureza ilusória das coisas. Dará algum sorriso de suas tolas pretensões de juventude, quererá ter aproveitado melhor determinados momentos, dito certas coisas a certas pessoas.

Mais tarde, com o passar dos anos, vacilará em suas memórias. Voltará a duvidar do que foi real, do que pareceu real. "Ela me amou?" "Foi minha amiga?" "Era tudo ilusão?", "O que não existe mais, existiu algum dia?". Mas já não dá mais para saber. É tarde demais para saber. Nunca foi possível saberNunca será. Ele então aprenderá que a realidade nunca é óbvia e que sempre há algo de esquizofrênico nos afetos: no início você acredita neles, julga poder provar que  existem. Mais tarde, contudo, sabe perfeitamente bem que são ilusões, tudo coisa da sua cabeça.

Nas palavras dos Titãs "...Eu aprendi/ A vida é um jogo/ Cada um por si/ E Deus contra todos...."

Quando se trata das relações humanas, a única certeza que se pode ter é a da impermanência. Todo o resto é ilusão e esquizofrenia afetiva.

27/02/22

Passado, Presente e Futuro deste Blog

 


Quando comecei este blog eu queria duas coisas. A primeira era fugir do Facebook; fugir da dinâmica dos debates perpétuos, pois desanimava-me a ideia de ter que justificar uma opinião logo depois de publicizá-la. Tenho pouca fé no debate racional e nenhuma vontade de convencer as pessoas -  ainda mais quando sei que estou certo e melhor informado.

O segundo objetivo era criar uma área de produção literária  pública e livre, mas descompromissada, ou apenas compromissada com minha dispersão cultural. Uma área para escrever sobre o que eu quisesse, com o texto que eu quisesse, do tamanho que eu quisesse, mas inicialmente orientada para crônicas e textos em formatos mais fáceis, do tipo que caberia bem num blog, coluna de jornal ou newsletter pessoal. Isso porque eu já havia constatado minha inclinação para a crônica e, coerente, desejava um meio adequado para fomentar minha produção.

Depois eu julguei que seria boa ideia aglutinar aqui meus textos espalhados em blogzinhos, redes sociais e cantos diversos da internet, fazendo desta página não apenas um blog pessoal, mas também um repositório dos textos interessantes que escrevi e publiquei online desde 2012, ano em que pela primeira vez um texto meu foi publicado em um blog (projeto feito com amigos literatos mas que acabou incipiente). Publicando os textos aqui eu posso editá-los e catalogá-los, assim ganho maior clareza sobre as temáticas e os estilos que marcaram minha produção literária até agora. O ritmo de publicação tem sido o de um texto por semana, a frequência mais fácil para manter uma rotina literária básica. 

Escrever é fundamental para minha saúde e organização mental. Não que eu seja muito são escrevendo, mas, sem escrever, eu provavelmente enlouqueceria. Há, portanto, uma orientação terapêutica neste meu vício, e o lado bom é que posso recorrer a ela sempre que um leitor mais culto e refinado praguejar contra a má qualidade de minha prosa. Acusado de mau escritor, escuso-me dizendo que não escrevo por talento, mas por necessidade. Conto sempre com a complacência do leitor.

Mas escrevo e, escrevendo, sinto também alguma ambição. O problema é que conforme a literatura perde prestígio e lugar na cultura, sendo a cada dia mais substituída pela vídeomania, meu pouco interesse em produzir alguma forma mais elaborada de literatura vai pelo ralo, e as ideias que tenho para contos  e ensaios já sofrem com o mofo resultante da pouca exposição ao sol. 

Além disso, minha vida está uma bagunça. Escrever exige recursos: concentração, livros para consultar e ambiente adequado. O meu perene desemprego me impede de comprar os livros e de dedicar-me a estudá-los. As contas e as mesquinharias burocráticas do quotidiano acabam se impondo, então, até que eu resolva essas questões mais práticas da vida, atuarei na crônica e em formatos mais leves, o que, aliás, já venho fazendo. É pouco, mas é melhor que nada, e ao menos me impedirá de enlouquecer.

23/02/22

A Besta Que Subiu do Mar

 



Ouvi dizerem que uma grande besta destruiria este planeta. Ouvi que ela surgiria da água e que dominaria, com o passar do tempo, todas as outras formas de vida. Foi dito que empregaria uma magia  tão poderosa que a levaria a alturas e profundidades impossíveis.

Disseram-me que tal besta seria tão astuta quanto a serpente e tão cruel quanto o Demônio. 
Todavia, disseram-me também que ela, a grande e terrível besta, não teria consciência de sua perversidade, que seria vítima de si mesma. Disseram-me que tal criatura, em sua miséria e ignorância, julgar-se-ia inocente dos males que traria ao mundo.

Mas isso foi apenas o que me contaram - uma estória

O que não me contaram é que a besta, de fato, é real, e que já nos dias de hoje anda a dominar o mundo. 

O que não me contaram é que a besta, a terrível besta, não seria chamada "besta" ou "aberração", mas , vaidosa, reconheceria-se em  um curioso e inusitado nome: homo sapiens sapiens.

16/02/22

O Que Mais O Amedrontava

   


A verdade era uma só: ele tinha medo. Era isso o que sentia todas as vezes quando saia às ruas. Tinha medo deles. Tinha medo de suas leis, de seus chefes, de suas mentiras, de seus exércitos, de suas religiões, governos e ciências. Por isso pensou em ir para as montanhas, para as cavernas, para o mato. Mas o procurariam lá, ele sabia. Trariam holofotes e iriam fotografá-lo, fariam reportagens, contariam sua historia em jornais e logo ele ficaria famoso. Então iriam visitá-lo, tratá-lo como aberração e talvez alguns até o seguissem.

Ele pensava nestas coisas e seus olhos lacrimejavam. Os homens, que doença os teria dominado? Que loucura era esta a deles? não sabia. Só sabia que era de todo cruel e perturbadora. Ele pensou que não se poderia fugir deles, por que tinham tomado todo o globo para si. Assustava-lhe a natureza virótica que a raça emanava. Haviam chegado aos 7 bilhões, ele bem sabia. Vejam só, criaram números para medir seus bens e riquezas mas não haviam números para medir sua ignorância, para a sua miséria, para a sua vergonha. Lembrou-se daqueles por quem nutria alguma admiração e respeito. Aqueles que ousaram ensinar, que ousaram pensar, aqueles que foram por eles reconhecidos como sábios e iluminados. "Sempre idolatrados mas nunca escutados" disse de si para si. E pensou no quanto isto era assustador.

De certo modo, isto o enchia de medo, de pavor. Então ele continuava, como há muito, cabisbaixo e deprimido, com Deus e com os homens. Olhava a si no espelho num impulso qualquer de autopiedade e ali detinha-se e se assustava ainda mais. Era talvez aquilo que mais lhe causava sofrimento, pesar e amargura. Olhar-se no espelho, ver a si e saber que todos aqueles que tinham feito de um mundo maravilhoso um mundo que só se podia expressar com lamúrias e prantos, todos aqueles que se poderiam em perfeita coerência chamar de 'virus humanidade' eram, cada membro, exatamente como ele. Isto o fazia chorar. Isto lhe fazia por inteiro amedrontado.