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29/02/24

Notas de Leitura: O Discurso Sobre a Servidão Voluntária





Bons amigos costumam nos encaminhar aos bons livros. Ou, pelo menos, colaboram para nosso regresso a eles. Pois, dando mostras de amizade, Wanderson Duke intimou-me a ler e comentar o "Discurso sobre a servidão voluntária". Fez isso sem saber que eu já conhecia e já apreciava o opúsculo. Tenho-o na estante e por duas vezes já me detive em sua leitura. Como eu já pretendia relê-lo, acatei sem demora a proposta do amigo. 

Agora, cumprida a tarefa da leitura, venho cá registrar meus comentários. Por didatismo, julguei oportuno antecedê-los com contextualizações, fazendo as ideias acessíveis a quem ainda não leu a obra.

O autor do Discurso

Etienne de LaBoetie foi um humanista francês que viveu no século XVI. De família rica, La Boetie, assim como outros humanistas do Renascimento, foi latinista, grande conhecedor dos clássicos antigos, das vidas e das ideias dos povos gregos e romanos. Sabe-se que escreveu seu opúsculo ainda muito jovem, talvez antes dos dezoito anos. Faleceu cedo, aos trinta e três. Dos textos que nos deixou, o mais traduzido, importante e conhecido é o Discurso Sobre a Servidão Voluntária. 

Foi amigo próximo do filósofo Montaigne, tanto que, em seu testamento, legou a ele os seus escritos. Anos mais tarde, para honrar a memória do amigo, Montaigne publicaria o Discurso. E desde então, geração após geração, ele vem sendo republicado.

O gênero literário do Discurso

O gênero da obra de La Boetie é o Discurso Escrito, uma modalidade de exercício retórico e ensaístico comum aos eruditos franceses de outrora. Gênero que seria muito usado por filósofos iluministas. Jean Jacques Rousseau, por exemplo, escreveria um dos discursos mais famosos, garbosamente intitulado: "Discurso Sobre as Origens e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens".

Existe, portanto, na obra de La Boetie, uma sensibilidade retórica. Nota-se nela a eloquência que tanto marcou o estilo da época: os parágrafos são longos e densos, com muitas inversões sintáticas e ostentação erudita no manejo dos pronomes.

As principais ideias do Discurso

O caráter retórico do texto não lhe retira o caráter ensaístico; isto é: o autor deseja apresentar um conjunto de questões, problemas, ideias e categorizações que julga relevantes.

Quanto as ideias apresentadas, são três as maiores realizações do Discurso Sobre a Servidão Voluntária: primeiro, expõe o que autor entende por servidão voluntária; segundo, estabelece suas principais causas e consequências; e, terceiro, traça a relação do tirano com sua corte. Essas três operações intelectuais formam o triângulo mestre do esquema de raciocínio do autor, e é em torno desse triângulo que orbitam suas outras reflexões. O resto do que se discute na obra tem feição de digressão ou complemento (prova disso é que o autor, por duas vezes, reconhece ter escapado ao tema).

Eis, a seguir, um resumo da obra:

La Boetie começa demonstrando perplexidade diante da tirania monárquica, situação política em que milhares de homens se dobram aos caprichos de um só. Se liberdade é melhor que sujeição, como explicar que tantos homens tenham se rendido aos mandos de um só?

O autor argumenta que, para tantos súditos, seria muito fácil obter a liberdade. Bastaria que cessassem de obedecer ao tirano. Caso o povo optasse pela recusa à obediência, o tirano não teria mais poder algum, nada podendo fazer contra ele. A não desobediência indicaria, portanto, algo errado: revelaria uma estranha aceitação. O povo, por algum motivo, aceita o tirano, sendo a sua servidão voluntária.

Procurando explicar as origens dessa servidão voluntária, La Boetie diz que os povos nascem livres, mas, geralmente por força da guerra, são obrigados a organizar exércitos e seguir a voz de comando de um líder. Após a guerra, esse líder terá adquirido tanto prestígio entre o povo que se fará rei, prometendo ser, como rei, mais protetor do que era como general. Estruturado o reino, criam-se as leis e as dinastias. O povo acostuma-se a obedecer as leis, e com o passar das gerações vai perdendo a memória dos tempos em que era livre. Quanto mais obedece, mais tirânicos e poderosos se tornam os reis.

O primeiro motivo da servidão voluntária seria, então, o costume. O povo obedece porque seus antepassados obedeciam, porque assim lhe foi ensinado. Não haveria no homem instinto de liberdade que não pudesse ser mitigado pela educação.

Porém, por mais obediente que fosse o povo, sempre haveria riscos de sublevação de alguns de seus membros. Para evitar isso os tiranos utilizariam o incentivo aos jogos, ao sexo, às festas e a outros entretenimentos populares, prazeres baixos que entorpecem, hipnotizam e distraem as multidões. O povo é facilmente manipulado e o tirano sabe disso. O segundo motivo da servidão seria, assim, a permanência do povo num estado de distração fútil, prazerosa e festiva, que levaria, segundo La Boetie, à covardia e efeminação.

A terceira e mais importante causa da servidão voluntária é atribuída aos interesses egoístas dos estratos que orbitam o poder e com ele se beneficiam. La Boetie exemplifica dizendo que seis conselheiros cercam o rei, apoiando-o em troca de favores; e esses conselheiros, por sua vez, são cercados cada um por cem oportunistas que os apoiam em troca de favores; e cada um desses cem é cercado por outros mil subalternos, que reproduzem o mesmo padrão. Essa pirâmide de sujeição e apoio em troca de favores termina sempre por legitimar o poder do rei, mas ao custo de gerar muitos conflitos de interesse, visíveis nas intrigas da corte, onde todos fingem respeito, mas, pelas costas, conspiram e tramam uns contra os outros. Assim a tirania seria aceita porque, para muita gente, ela é lucrativa.

Ao expor as causas da servidão o autor intercala considerações sobre o comportamento dos tiranos. Diz que se diferenciam quanto a forma de obter o poder: uns o alcançam pela eleição, outros pela dominação bélica e outros pela sucessão hereditária. Mas se há diferença na origem, não há na condução do poder, de modo que, ao exercerem a tirania, assemelham-se todos. Fala também das relações entre o tirano e sua corte, demonstrando que aqueles próximos ao rei aceitam uma vida miserável regida por desconfianças, incertezas, suspeitas e paranoias, pois nem o tirano confia neles e nem eles no tirano. O comum é que os amigos do rei de hoje sejam os enforcados de amanhã, e o rei paparicado hoje seja o tirano emboscado amanhã. A vida na corte seria, assim, um verdadeiro inferno.

La Boetie conclui dizendo que as classes que sustentam o tirano deveriam despojar-se de sua mesquinhez, e que o tirano, se não for punido pelos homens, será por Deus.

Os Comentários Deste Leitor

É fácil ver nas palavras de La Boetie aquele espanto que jovens idealistas demonstram ante as injustiças do mundo. Ao escrever contra a principal forma de organização política de seu tempo, analisando e questionando a sujeição do povo, parece ter ele inaugurado a tradição do humanismo social politizado que, nos séculos seguintes, marcando a cultura letrada francesa, produziria grandes mobilizações e mudaria para sempre a França, a Europa e o mundo.

De fato, os temas do opúsculo, e outros relacionados ou derivados, foram calorosamente debatidos e politizados após La Boetie. No plano filosófico, Rousseau criticaria a desigualdade; no econômico, Saint Simon criaria o Socialismo; na ação política, a emergente burguesia destronaria a nobreza na Revolução Francesa (inaugurando a Idade Contemporânea e toda sua idolatria pela República); e com Marx e seu comunismo o povo ganharia uma teoria revolucionária radical, que prometia, se efetivada, eliminar toda opressão entre classes. Todos esses esforços posteriores, além de reafirmar a importância das questões colocadas no opúsculo, aprofundaram as análises propondo soluções políticas.

Mas tudo isso é passado e história feita. Se é fácil ver a importância de suas ideias no curso da História, que dizer sobre essas ideias  nos dias de hoje? Qual a utilidade delas na realidade brasileira? A quem, e em que, elas seriam úteis? 

O leitor informado sabe que, nos meios politizados de hoje, especialmente na esquerda contemporânea, fala-se muito sobre a opressão ao povo ou a certos subgrupos do povo. O grave defeito dos que costumam defender tais ideias é a extrema demagogia com a qual raciocinam e se manifestam. O povo, ou o subgrupo escolhido, é tratado como cordeiro imaculado, ente sacralizado, isento de pecado e da possibilidade de erro, privado de qualquer responsabilidade sobre seu próprio destino. Toda crítica que recebe é encarada como fruto de preconceito, ódio ou mal sentimento. Pois os que assim raciocinam, supondo que possuem mesmo algum pensamento crítico, são os que mais deveriam ler o Discurso Sobre a Servidão Voluntária. La Boetie demonstra que além de ser possível criticar a conduta do povo, é apenas fazendo isso que conseguiremos compreender como se dá a perpetuação do poder.

A idolatria ao oprimido é um fenômeno oposto ao antigo padrão da esquerda. Na esquerda clássica, marxista, a alienação do povo, sua passividade e docilidade eram bem conhecidas. O pilar do projeto político marxista era a conscientização da classe trabalhadora. Apesar da simpatia aos pobres, sabia-se que, para o progresso, era preciso educa-los. Não havia, de modo algum, a adulação inconsequente que domina hoje entre os nossos progressistas. Os comunistas soviéticos chegaram a debater se a classe trabalhadora seria realmente capaz de conduzir a revolução, com alguns comunistas considerando que não, que seria a classe intelectual o agente revolucionário por excelência.

A esquerda brasileira hoje parece apostar nas duas visões ao mesmo tempo: por um lado seus intelectuais procuram influenciar os universitários pregando a existência de meia dúzia de teorias críticas que, segundo eles, elevam a consciência e a inteligência; porém, por outro, negam apaixonadamente que um homem culto é mais inteligente que o padeiro, dizem que a cultura erudita (aquela mesma que estudam e na qual seus heróis, Marx, Freud e Foucault, foram buscar suas bases) é opressão eurocêntrica, e chegam a sugerir que oferecer ao padeiro uma educação clássica, como a que o intelectual teve, é uma forma de opressão ou eurocentrismo. Trata-se de uma duplicidade esquizofrênica e indigesta. Quero crer que a leitura do Discurso Sobre a Servidão Voluntária, que ficaria ainda mais fortalecida com a leitura das obras do contemporâneo Theodor Darymple, vá produzir algum movimento crítico na cabeça de quem se deixou levar pela demagogia tão em voga.

Lembremos, pois, das palavras de La Boetie

"...Na realidade, a natureza do povo, cujo número é sempre maior nas cidades, é ser desconfiado com quem ama e sincero com quem o engana... É uma coisa maravilhosa que cedam tão logo, mas somente se os elogiarem. Os teatros, jogos, farsas, espetáculos, lutas de gladiadores, animais estranhos, medalhas, quadros e outros tipos de drogas, eram para os povos antigos os atrativos da servidão, o preço da liberdade, as ferramentas da tirania. Os antigos tiranos possuíam este meio, esta prática,estes atrativos, para iludir os súditos sob seu jugo."

26/08/23

Breve guia de dicas e referências para começar a desenvolver habilidades na escrita



Tenho um amigo jovem que anseia melhorar suas habilidades na arte de escrever.  Por isso resolvi publicar aqui alguns conselhos, sugestões e indicações. Explico que as dicas abaixo são úteis para qualquer pessoa que esteja começando a escrever, mas são ainda mais úteis para aquelas que estão começando "na lanterna"; isto é: aqueles que ainda não possuem o núcleo básico de habilidades - clareza, coesão, gramaticidade e senso estético- que um escritor deve ter.

Recomendo que, antes de prosseguir com o texto abaixo, o leitor leia este texto, este e este também, pois explicitam noções importantes e complementares que não exploro aqui (como o nível gramatical, a eloquência e expressividade de ideias, organização do pensamento e a função da leitura literária). O raciocínio manifestado nas considerações abaixo pressupõe que o leitor já saiba o que foi dito nos textos anteriores em que tratei sobre assuntos correlatos. Por isso a sugestão é que eles sejam lidos antes deste.

Pode ir lá ler os textos.

Pois bem. Leu os textos? Não, né? Vai deixar para depois (eu sabia!). Você é mesmo um preguiçoso. Mas, tudo bem, porque eu também sou. Se você não reclamar de mim, juro que não reclamo de você. Sendo assim, talvez você considere o texto abaixo demasiado incompleto (o que só  mudará quando ler os anteriores). De qualquer modo, você é quem sabe.

Como progredir na escrita dos gêneros literários?

A minha primeira sugestão é começar escrevendo registros memorialísticos em primeira pessoa, o que em linguagem leiga é conhecido como "escrever um diário". Em verdade, a frequência da coisa não precisa ser diária, pode ser semanal ou mensal. Contudo, é preciso ter em mente o seguinte: quanto mais frequente, maior o treino, e quanto maior o treino, melhor. Eu sugiro que o meu amigo comece escrevendo semanalmente. Separe um tempo no sábado, pela manhã ou noite, para escrever um texto que inclua, de forma resumida, os principais eventos da semana, reflexões pessoais, crises, tensões, reclamações, angústias, impressões sobre as pessoas, ideias, lugares, comentários sobre mulheres, etc.

Quanto ao estilo: comece com uma forma de escrita simples, compacta, direta e elegante; assim como o estilo de Albert Camus em O Estrangeiro. Perceba que esse livro de Camus não é mais que um diário: o diário de Meursault, o protagonista. Eu até admito que a obra não me agradou como romance, mas reconheço que sua prosa é simples e clara, o que lhe torna um bom modelo de registro memorialístico para iniciantes.

Uma vez dominado o básico da escrita memorialística, faz-se necessário dar um passo à frente. Agora o aspirante a escritor deverá treinar crônicas (onde ele pode aplicar elementos do gênero anteriormente aprendido). E então, finalmente, depois de algum treino, quando já se houver transmutado num hábil cronista, poderá partir para outros gêneros.

Tal ordem de estudo,  e de prática,  é didática e progressiva: caminha do mais fácil para o mais difícil. Para um sujeito sem prática  na escrita é muito mais difícil escrever um artigo, resenha ou um conto do que uma crônica. E é mais fácil escrever um texto memorialístico simples do que uma crônica. Além disso, cada gênero anterior da sequência prepara seu praticante para o gênero seguinte. Quero dizer: é mais fácil escrever uma crônica quando você já sabe escrever um registro memorialístico e é mais fácil escrever um conto, artigo ou resenha quando você já sabe escrever uma crônica.

Entendendo a Crônica

A crônica é um texto de tamanho curto¹,  maior que o poema e menor que o ensaio. Pode ter o tamanho de um artigo de jornal, mas geralmente é um pouco menor. Durante muito tempo, a crônica foi um dos gêneros literários mais lidos no Brasil, e ainda hoje ela é muito popular.

Uma crônica manifesta sempre a visão e reflexão do autor sobre alguma coisa. Dispondo de uma linguagem pessoal e artística (portanto, literária) ele compartilha com os leitores uma vivência sua e as reflexões que ela lhe inspirou. Também pode contar uma história sobre um amigo, comentar os fatos políticos ou culturais da semana, compartilhar memórias, criticar uma obra literária ou um filme. O mais importante, como traço característico da crônica, é que seja um texto leve, fácil, sem muita pretensão, algo como se fosse uma conversa escrita com o leitor. O objetivo do cronista é entreter o leitor com suas reflexões, ou seja: fazê-lo pensar, rir, lembrar,  apreciar a estética da linguagem, e, enfim, se emocionar.

De Machado de Assis à Luís Fernando Veríssimo, quase todos os nossos grandes literatos escreveram crônicas, e pelo menos dois deles - Rubem Braga e Ivan Lessa - foram majoritariamente escritores de crônicas.  Naturalmente, pela leveza e pelo caráter lúdico, a crônica é o gênero textual que tem maior e melhor recepção por parte do leitor comum. Isso a torna um excelente gênero para ser praticado por escritores iniciantes.

A Crônica na coluna de Jornal ou Revista

Alguns escritores recebem um espaço fixo - em jornais e revistas - para escreverem periodicamente sobre o que quiserem, ou, as vezes, a respeito de um determinado tema. No início esse espaço era limitado a uma coluna de texto nos jornais, e por isso recebeu nome de "coluna". Com o tempo o espaço aumentou, mas o nome permaneceu. Numa revista moderna esse espaço pode chegar a uma página inteira com duas, três ou mais colunas de texto ( esse era o caso, por exemplo, da coluna da atriz Fernanda Torres na revista VEJA).

A coluna  é o palanque do escritor. É também a vitrine onde ele expõe suas crônicas. A rigor, nem todo texto de uma coluna é uma crônica, mas é grande a intimidade entre uma coisa e a outra. Assim, o termo "colunista" e "cronista" estão quase sempre associados; afinal, antes da internet, os cronistas só escreviam em alguma coluna de jornal ou revista, e as melhores crônicas eram posteriormente publicadas em livros.

Os Escritores e as suas Crônicas

É importante conhecer os grandes cronistas, e, pelo menos no início, imitar suas virtudes e técnicas literárias. Por isso aqui vão algumas referências essenciais.

Indico especialmente três autores. O primeiro ainda vivo, o segundo muito contemporâneo (falecido ano passado) e o terceiro apenas contemporâneo (falecido nos anos noventa). Todos eles são divertidos, engraçados, polêmicos e apresentam vozes literárias mais próximas ao português do leitor moderno, o que os torna autores mais acessíveis aos iniciantes. São eles:

Diogo Mainardi.

Odiado por muitos devido à suas opiniões políticas reacionárias, Mainardi tornou-se famoso pelo estilo - satírico e mordaz - de suas crônicas publicadas na revista VEJA. Era o tempo do primeiro governo Lula e enquanto grande parte dos intelectuais estavam animados por terem um presidente de esquerda no poder, Diogo Mainardi via em Lula pouco mais do que um bebum semianalfabeto, e descia o sarrafo nele, em seus ministros, secretários e intelectuais. Muitas das crônicas dele dessa época são verdadeiras pérolas; causando grande impressão, raiva e alguns sorrisos. Uma boa coletânea, com crônicas selecionadas pelo próprio autor, você encontra no livro "À Tapas e Pontapés" (leia online pelo Scribd, baixando o aplicativo, ou compre pela Estante Virtual ou pelo aplicativo da Shopee). Ainda hoje circulam na internet alguns trechos de crônicas dessa época. 

Arnaldo Jabor

Figurão da cultura nacional, Jabor participou do Cinema Novo, ajudando a fazer história num período de grande efervescência da cultura brasileira. Como colunista, antes de se focar no mundo político, entreteve e ilustrou milhares de leitores durante décadas. Chegou a ser publicado semanalmente em 23 jornais. Com razão, pois esbanjava crônicas culturais engraçadas, inteligentes e enriquecidas com referências à dramaturgia, cinema, pintura, música, quadrinhos, literatura e história. Há em sua prosa o olhar desiludido de um ex-militante comunista, mas também a confissão cínica de quem viveu nossa história; e, para não enlouquecer, fez tragicomédia com nossos personagens e enredos quotidianos. Certo ou errado, sempre culto e opinativo, era uma mente instigante. O livro dele que eu indico é o "Sanduíches de Realidade e outros escritos" (sem e-book disponível, mas o livro está à venda na Estante Virtual e também  na Shopee, e com frete grátis se comprado pelo aplicativo).

Paulo Francis

É provável que nem Diogo Mainardi e nem Arnaldo Jabor fossem possíveis  como cronistas se antes deles não tivesse existido Paulo Francis. Isso porque Francis foi um dos maiores e mais influentes jornalistas brasileiros. Sua coluna na Folha de São Paulo, nos anos oitenta, era a mais lida do país. Francis vinha de uma família de classe alta - os Heilborn, de origem germânica - e, por meio da biblioteca da família, teve uma sólida formação literária e intelectual através dos clássicos europeus. Em cultura, era um elitista. Apesar disso, detestava o português empolado e, segundo ele, escrevia em "Português de gente"; quer dizer: um português mais próximo da linguagem falada de sua época. Era um homem muito sincero, que não escondia o que pensava. Naturalmente, incomodou muita gente de esquerda e de direita. Indico para leitura as crônicas contidas em seu livro "Diário da Corte" (baixe o e-book aqui)

Curioso é que os três autores indicados acima são de direita² e possuem um traço muito característico do intelectual brasileiro: são viciados em política.

Referências Digitais

O Portal da Crônica Brasileira, mantido pelo Instituto Moreira Salles, faz um bom trabalho resgatando e disponibilizando crônicas de autores consagrados.

O site Conto brasileiro, apesar do nome, inclui também várias crônicas de grandes escritores.

O site Digestivo Cultural é  um dos melhores e mais longevos sites brasileiros sobre Cultura e Literatura. Vários escritores possuem colunas nele, e alguns cronistas famosos já passaram por lá - como Millôr Fernandes, Paulo Polzonoff, Yuri Vieira e Alexandre Soares Silva (os textos continuam lá, acessíveis).

Grandes jornais

É possível acessar as colunas dos cronistas dos maiores jornais do país (Folha, Globo, Estadão, etc. ) usando um burlador de paywall³. Recomendo este aqui. Para burlar o bloqueio é só copiar o link do texto bloqueado e colá-lo no site que desbloqueia. No site do link você pode escolher se quer ler o artigo em pdf ou em página web usual (http).

Por fim, para que se tenha uma noção vívida do poder expressivo da crônica, eu sugiro a leitura das seguintes:





- Caça-níqueis (nesse caso, se trata de ouvir, já que é uma crônica de Nelson Rodrigues lida magistralmente pelo mestre em teatro Rodrigo Mallet).


 
                                                              ***

Notas:


1- O que significa que ela raramente passa de 18 parágrafos, sendo que a crônica média fica entre 8 e 14 parágrafos.

2- Como eu não me considero uma pessoa "de direita", o fato de eu ler e gostar desses autores talvez requeira uma explicação. O que posso dizer? Apenas a verdade. E a verdade é que o único motivo pelo qual leio e indico esses autores é porque eles são, de fato, bons cronistas. Isto é: escrevem bem e conseguem ser honestos em relação às suas opiniões, mesmo quando elas parecem meros preconceitos (ou mesmo quando são). Eles escrevem com humor as vezes maligno, autoironia e uma sinceridade - uma verdade pessoal - que é muito difícil encontrar nas opiniões dos esquerdistas modernos. O esquerdista moderno é hipersensível a tudo que soe preconceituoso. Ele morre de medo do julgamento de seus colegas militantes, e estes, por sua vez, estão sempre a buscar preconceitos nos outros. O resultado é que o cronista de esquerda, muitas vezes, acaba modulando as próprias opiniões para que sejam politicamente corretas ao invés de autênticas.

O cronista de classe média, quando é de direita, se permite dizer ou sugerir ideias impopulares. Ele pode dizer ou sugerir que desdenha dos pobres, ou que os bairros pobres são feios, sujos, desorganizados e fedidos (muitos, de fato, são), e é aí onde está o interessante: ele dirá tudo isso se assim pensar, ou talvez porque queira provocar, e o fará se expressando de forma engraçada e irônica. Já o cronista de classe média, quando é ligado à esquerda moderna, jamais pode dizer uma coisa dessas, mesmo que esse pensamento lhe venha à cabeça todas as vezes em que sobe numa favela para participar de ações sociais. O esquerdista impõe a si mesmo a regra de não se permitir pensar algo assim, porque lhe ensinaram que é "errado, incorreto e preconceituoso" atribuir características negativas aos pobres. Assim, se tais características existem, o esquerdista não pode mencioná-las.

O resultado é uma vantagem literária para os cronistas da direita, que ganham maior liberdade de ideias, uma liberdade expressiva maior, mais autenticidade e menos neuroticismo. O efeito natural é que sejam mais polêmicos também. É claro que isso não é uma Lei, no sentido de que é sempre assim; trata-se apenas de uma tendência. Vale notar que essa neurose anti preconceito dos esquerdistas modernos não se aplica a esquerdistas das antigas, como Lima Barreto ou Luís Fernando Veríssimo.

Seja como for, e seja qual ideologia for, a posição política de um autor é a menor coisa com a qual o leitor deveria se preocupar. O que importa é conhecer o estilo, reconhecer o talento, apreciar e aprender com o autor. A Literatura deve estar acima de nossas preferências políticas. 

3 - Paywall, para quem não sabe, é o bloqueio que jornais e revistas fazem em alguns dos seus artigos. Teoricamente serve pra forçar os leitores a pagar uma assinatura, e, de fato, a maioria paga. Porém, alguns anarquistas, terroristas, cybercriminosos e pobretões como este autor procuram métodos escusos de leitura como usar sites que desbloqueiam paywalls ou extensões que desabilitam o JavaScript da página do jornal.


                                                                 ***

Caso você tenha gostado e aprendido com o texto acima, sugiro que leia esta importante recomendação.

12/07/23

Preciso conhecê-la

 



Contaram-me de uma donzela das Letras que tem por qualidade roubar livros na Bienal.

Eu, ladrão desavergonhado de livros, imediatamente apaixonei-me. Não sei ainda a verdadeira identidade da moça, que minha fonte preferiu preservar, só sei que a amo e a quero.
Já roubastes em bibliotecas públicas, meu bem? Já roubastes de autoridades? Já deixastes bilhetinhos em lugar dos volumes? Ela e eu, quando nos conhecermos, teremos muito o que conversar, e muitas técnicas de furto a desenvolver. Creio até que juntos roubaremos melhor que ciganos e judeus. Seremos como Lampião e Maria Bonita, Bonnie e Clyde, Sid e Nancy, Tyler Durden e Marla Singer, etc, etc.
Torço, portanto, para que eu a conheça.
Aquele entre vós, amigo ou inimigo, que porventura souber o paradeiro da moça, ou de outra parecida, que tenha a gentileza, a decência, o brio moral - e mais do que ele - o compromisso de me avisar.

21/06/23

Um Morto Muito Louco

 


O primeiro Jorge Amado a gente nunca esquece. Pois bem, no exercício de ler e conhecer ao menos uma obra dos grandes prosadores brasileiros, depois de me impressionar com a prosa do Carlos Heitor Cony, resolvi conhecer alguma coisa do nosso grande populista Jorge Amado. Populismo esse que para o crítico Wilson Martins era um pecado e que para mim não é - ao menos não necessariamente...

A escolha pelo livro foi inspirada no fato de um dos meus gurus intelectuais, o professor Uriel Irigaray, mestre em Letras e doutorando em Antropologia, ter escrito sua monografia sobre rituais iniciáticos de morte e renascimento; na qual, para minha surpresa, citava essa obra do Jorge Amado. Como eu não tinha lido a obra, parei a leitura da monografia e resolvi voltar apenas depois de ler e assimilar a narrativa do Quincas Berro Dágua (sobre a qual eu não tinha a menor ideia).

Sem saber do que tratava a obra, o nome me parecia muito peculiar. "A morte e a morte?... Como assim a morte e a morte?... O que ele quer dizer?" Também o nome do protagonista me soava estranho, enigmático: Quincas Berro Dágua!? Que nome esquisito!

Por todos esses motivos, era um livro que eu me sentia obrigado a ler. E como eu não tenho pressa pra nada, foi neste ano de 2022 que aconteceu. Li e a experiência foi de puro deleite.

A primeira surpresa agradável foi descobrir a prosa gostosa e fluida do Jorge Amado, uma prosa que não oferece dificuldade, que tem ritmo fácil e que pela leveza - aqui eu me arrisco a sugerir- parece uma atualização ou "abrasileiramento" do estilo mais direto de autores populares ingleses e americanos do século XIX, como Robert Louis Stevenson e Jack London. Teria que reler Stevenson e conhecer as influências literárias do Jorge Amado para saber até onde essa minha aproximação tem sentido, mas, ao menos foi essa a minha impressão. Falando de outro modo: Jorge Amado escreve menos como um literato - por literato leia Machado de Assis e Camilo Castelo Branco - do que como um contador de histórias. Ele não põe nenhuma grande firula sintática ou estilística na prosa, o que lhe interessa não é a grande retórica ou o rebuscamento ou o Português belíssimo e castiço, mas a narrativa, ato a ato, gesto a gesto, acontecimento por acontecimento. Não me admira saber que tantas das suas obras foram adaptadas para Cinema e Teatro. Faz sentido. Por focarem na narrativa elas são facilmente roterizáveis. Jorge Amado é, portanto, um autor de estilo "leve", fácil, muito bom para formar leitores, para indicar a adolescentes e iniciantes em Literatura. Faz sentido que seja autor importante no currículo escolar.

Mas isso não é tudo, e nem é o melhor. A cereja do bolo, para mim, está na boa ironia e no saboroso humor com os quais Jorge Amado vai tecendo a sua trama. Eu dei muitas e boas risadas durante a leitura do livro, diverti-me como há tempos não me divertia numa leitura. Até emprestei o livro ao meu irmão, que nem é grande leitor literário, e ele teve ótima recepção; chegou a agradecer-me pela indicação.

Outro elemento do estilo e da narrativa que merece destaque é a dimensão simbólica da obra, pois ela pode ser vista como metáfora para a ideia de que a nossa vida, identidade e autopercepção é determinada pelo meio social, pelas relações sociais; de modo que, ao alterarmos drasticamente nosso comportamento e status social, podemos simultaneamente morrer para um grupo e viver para outro. Enquanto essa interpretação (de que a primeira morte seria apenas simbólica, erro da família de Quincas, que o queria morto) é uma leitura possível e talvez provável, resta uma outra que ainda está no quadro de possibilidades: teria Quincas Borba realmente morrido na primeira vez? Se sim, a história ganha então contornos fantásticos, e aqui a figura do morto-vivo celebrando e festejando ganha ares de um mórbido carnaval, uma festa grotesca e ao mesmo tempo hilária. Acho que essa segunda interpretação é a que vem sendo adotada pela crítica, o que acaba por aproximar a obra do assim chamado Realismo Fantástico. Lembrando agora: bem que a monografia do mestre Uriel falava algo sobre Bakhtin e a ideia de "corpo grotesco"...

Concluo dizendo que gostei um bocado. Livro para reler e indicar aos amigos.

Ah, e antes que eu me esqueça: o livro oferece uma ótima e divertida explicação para esse nome tão esquisito!

OBS: está nos meus planos escrever um comentário melhor e mais organizado a respeito dessa obra. Se você gostou dessa resenha, que não é bem uma resenha, siga meu blog e veja se alguma coisa lá te desperta a curiosidade. Tem lá um bocado de crônicas, algumas notas, comentários sobre blogs, filmes, causos culturais e até alguns downloads.

Neste link a monografia do erudito Uriel (finalmente poderei terminá-la!)


                                                                 ***

       Resenha originalmente publicada na rede social SKOOB em 27\07\2022

07/12/22

Quais são os efeitos negativos da leitura de livros?



Todo mundo sabe que a prática da leitura pode ser muito positiva e enriquecedora, mas e quanto a seus aspectos negativos? Existem? Quais são? Vejamos os possíveis efeitos negativos da leitura e como lidar com eles.

1. Quebra de expectativa. As pessoas dos livros raramente são como as pessoas da vida real. E as mulheres dos livros então, nem se fala. Isso, claro, pode mudar se você lê obras de brasileiros como Rubem Fonseca ou se ler autores trágico-realistas. Mas, no geral, há uma grande distância entre a mediocridade das pessoas que conhecemos na vida cotidiana e daqueles personagens notáveis dos livros. Depois de ler muito, invariavelmente, você vai achar a maioria das pessoas chatas e desinteressantes.

2. Produção de Pensamento Acrítico. Se o livro é de um autor muito assertivo, pouco autocrítico e cheio de verdades, você pode acabar ficando muito convencido de coisas questionáveis e para as quais o conhecimento humano atual não é capaz de fornecer uma resposta definitiva. Sabe aqueles religiosos que SÓ LEEM livros sobre religião e só sabem falar o que a Bíblia diz sobre a Bíblia, num loop autoreferencial diabólico? Pois é. Não queira ser um deles. E o mesmo acontece pra ateus militantes como Dawkins e Sam Harris, que tentam usar a Ciência para provar o que ela não é capaz de provar.

3. Desorientação. Alguns livros podem te deixar com mais dúvidas do que respostas, especialmente os livros de Filosofia. E isso pode realmente te deixar desorientado por um tempo (especialmente se você se focar apenas em autores com sistemas destrutivos, como Nietzsche, Foucault e o bizarro Zizek). Um exemplo notável é que a maioria das pessoas que tem algum interesse básico em Filosofia são facilmente atraídas pela falácia do Relativismo .

4. Ser enganado. Intelectuais mentem que é uma beleza. E sempre usam joguinhos linguísticos, retóricos e erísticos para convencer o leitor. Você ficaria terrivelmente chocado se fizesse uma checagem de fontes de cada livro que lê. O Noam Chomsky, por exemplo, considerado um dos maiores intelectuais do século XX, foi pego várias vezes (250 - pra ser preciso ) com a boca na botija.

E então, como enfrentar esses problemas? Bom, algumas dicas podem ajudar;

Para evitar 1) Leia livros sobre a realidade e não apenas ficção.

Para evitar 2) Leia livros sobre pontos de vista DIFERENTES sobre o mesmo assunto e veja debates de intelectuais e filósofos, não de youtubers. Isso vai te ajudar a a entender como o outro lado pensa. Mesmo que você discorde de uma ou outra premissa da pessoa, é mais fácil respeitá-la quando você entende o pensamento dela. Eu, por exemplo, leio tanto sobre Religião quanto sobre Ciência, e amo as duas áreas.

Para evitar 3) Leia livros de orientação pessoal e emocional, mesmo que pareçam auto-ajuda. Leia biografias de pessoas admiráveis e vai ver como elas lidavam com as coisas para ter sucesso. Quando a abstração torna um problema muito difícil, a prática costuma ensinar como esse problema pode ser resolvido. E quando na prática um problema parece ser simples, a abstração pode mostrar como ele é complexo.

Para evitar 4) Nunca acredite 100% no que você lê, ESPECIALMENTE SE HOUVER POLÍTICA ENVOLVIDA. Entenda - lembre-se sempre disso- que um autor SEMPRE fala mentiras e verdades. Ninguém sabe tudo. Por isso, vai ser preciso peneirar e separar o joio do trigo. E sempre que gostar demais e se sentir “crente” em um autor, trate de ler a críticas à obra e ao pensamento dele.

Pronto, seguir essas dicas vai te ajudar a ser um leitor mais maduro. Você tem sorte, eu tive que aprender na marra. Queria que alguém tivesse me dito antes.

Foto: Chomsky mentindo para uma plateia de universitários inocentes.



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Nota do editor: assim como outros textos publicados neste blog, a primeira versão do texto acima foi originalmente publicada como resposta no site Quora.