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24/08/24

Teclado Novo, Mente Antiga


 O escritor Cory Doctorow, que eu não conheço e nunca li, em seu belo ambiente de trabalho.

Depois de um bom tempo de abstinência, fiquei com saudades de escrever usando o teclado do notebook - essa coisa deliciosa que faço agora (num teclado novo vagabundíssimo e maravilhoso). 

Escrever no teclado físico é bem diferente de escrever no teclado virtual do celular. Usualmente, pela praticidade, recorro ao celular para escrever notas curtas, registrar ideias, referências, dicas, auto conselhos e pensamentos diversos. Porém, é com o teclado físico que eu me sinto mais confortável e mais disposto. No celular eu só escrevo pela necessidade, ou quando tomado da "febre da nota", o sentimento de urgência originado de alguma ideia que parece proveitosa e que, caso não anotada naquele momento, pode ser perdida para sempre.

Já quando uso o teclado físico, num sábado pela noite, geralmente ouvindo música, eu sinto que posso escrever mesmo sem nenhuma ideia prévia na cabeça; escrever pelo exercício de escrever. É como se a presença do teclado e da tela em branco no notebook formassem o ambiente visual adequado para engrenar minha escrita. 

Suspeito que isso aconteça por que a imagem  mental que tenho do escritor contemporâneo inclui o elemento teclado físico (seja ele de máquina de datilografar ou de computador doméstico). Por algum motivo - talvez por não existirem "celulares espertos" quando eu era adolescente - não tenho na cabeça a imagem de um escritor que usasse apenas o celular para escrever. Bom, não tinha, até me surgir agora essa ideia terrível. Mas foi só pensar nela e já reagi com careta, considerando-a esteticamente horrorosa. 

Um dia, num futuro distópico não tão distante, as revistas e sites de literatura mostrarão a foto de algum escritor hipster (tatuado, minimalista, barbudinho, nômade digital) sentado num barzinho gourmet paulistano e digitando um micro-romance a ser publicado em micro-capítulos nas redes sociais. Quando este dia chegar, eu, ao defender os notebooks, as bibliotecas físicas e os grandes romances, serei considerado ainda mais reacionário e demodé... 

21/12/22

10 Brasileiras Notáveis Para Conhecer e se Orgulhar

Pensei em listar ao menos 10 grandes mulheres que, por motivos variados, me parecem de grande importância científica, cultural, intelectual ou histórica - ou tudo isso- para o nosso país. E mesmo que algumas não estejam mais entre nós, diria que seu legado continua atual.

Sempre advogando que precisamos de menos bundas e mais cérebros, considero que o brilhantismo, os talentos e as conquistas das mulheres abaixo jamais deveriam ser esquecidos, mas alardeados aos quatro ventos para mostrar a inteligência das nossas mulheres e assim, quem sabe, gerar um verdadeiro Efeito Scully a nível nacional.

Como qualquer lista, não é definitiva e inclui alguma dose de subjetividade, já que selecionei aquelas que, ao longo da minha vida intelectual, mais me impressionaram e impressionam.

Preparados? Então vamos lá:

  • #1-Maria Cristina Abdala Ribeiro

Quando se vai falar dos grandes nomes da Física e da Matemática produzidas no Brasil, todo mundo pensa em Cesar Lattes, Newton da Costa, Marcelo Gleiser e Jacob Palis. E sem dúvidas cada um deles, com seus trabalhos de alto nível, chamaram a atenção do mundo científico e acadêmico.

O que pouca gente sabe, contudo, é que andando junto dessa turma - e tirando onda entre ela - estava, também produzindo ciência de altíssimo nível, uma das mentes femininas mais inteligentes, discretas e penetrantes que o Brasil já produziu: Maria Cristina Abdla Ribeiro.

Fluente em seis idiomas, tendo recebido bolsa para fazer doutorado em física na Alemanha, é doutora em física pela USP, tem um pós-doc pelo Instituto Niels Bohr, foi convidada para trabalhar no LHC, o maior colisor de partículas subatômicas do mundo (sim, exatamente aquela máquina que aparentemente cria buracos negros ), que funciona no CERN, na Suíça. Ela tem ainda outro pós-doc, e mais outro e…Acho melhor parar por aqui mesmo, afinal suas realizações acadêmicas de qualidade constituem um currículo bastante extenso e impressionante. Não iria dar para citar nem a metade aqui.

Sendo uma profissional tão gabaritada no campo da física das partículas, supersimetria e teoria das cordas, com passagem por instituições tão respeitadas internacionalmente, justamente numa época em que a Física é tão popular, acho estranhíssimo - e até criminoso- que a Maria Cristina passe como anônima para a maior parte do povo brasileiro.

Como é que se fala tanto do Lattes e dos outros e tão pouco dela, hein?

Nessas horas, não consigo evitar a questão: onde estão as feministas para exaltar o trabalho e fazer a boa publicidade de uma das mulheres mais inteligentes e qualificadas do país, justamente numa das áreas mais machistas, difíceis e historicamente dominada por homens?

Como é possível que, numa breve pesquisa no Google, se encontre "feministas" defendendo apaixonadamente o direito de balançar as tetas em nome da liberdade ou de ficar seminuas para "combater o patriarcado" (não me perguntem a lógica disso), ou mesmo exaltando figuras ridículas e vulgares como Anitta e Valesca Popozuda, enquanto aparentemente ignoram a existência de uma mulher fenomenal que, com sua inteligência e trabalho, é a prova viva de que as mulheres em nada perdem para os homens quando se dedicam a algo com seriedade e afinco, mesmo algo extremamente difícil e exigente em termos cognitivos, mesmo numa área aparentemente masculina.

Alguém aí pode conceber um feminismo que troque a exaltação da inteligência feminina pela exaltação da sexualidade feminina? Peraí: mas isso não seria justamente o tal do machismo? Bom, deixo essa questão para vocês…

Perdoem-me pela digressão, mas confesso que essa negligência cultural aos nossos gênios me deprime, amigos. Vocês sabem: temo que a existência e a grandiosidade dessa mulher brilhante seja embaçada pelo mar de futilidade e tolice que parece ter contaminado nossa cultura. Na certa, nossas jornalistas e intelectuais "feministas" vão esperar ela morrer para descobrir o quão grande ela foi.

Mas espero que isso não seja necessário.

Seja como for, a Maria Cristina segue como exemplo e inspiração para qualquer pessoa, mas especialmente para aquelas mulheres que são apaixonadas por ciência e conhecimento.

E então, caro leitor, já tinha ouvido falar sobre ela? Ou a desconhecia e ficou curioso?

Para quem quiser saber mais sobre a Maria Cristina, que em termos intelectuais é nosso "Einstein de Saias", recomendo seu trabalho de divulgação científica, que é relativamente acessível para leigos (embora sempre tenha aqui e ali aquelas frases e conceitos meio incompreensíveis - coisa típica dos físicos).

Você pode entrar em contanto com a mente dessa mulher genial pelas seguintes obras e produções:

Por último, preciso dizer que enquanto escrevo estas palavras (28/06/2019) ela continua extremamente ativa em seu campo. E só para fazer inveja, vou revelar que tenho contato com ela. Aliás, posso dizer, com todas as palavras, que longe de ser "apenas" uma mulher genial, ela também é divertidíssima e incrível como pessoa, uma mulher extremamente inspiradora.

  • #2-Nise da Silveira

Filha de um professor de matemática e de uma pianista, minha segunda escolhida foi Nise da Silveira, a médica psiquiatra brasileira que foi discípula de Carl Jung, um dos maiores psiquiatras e psicólogos do século passado.

Acima uma fotografia com mestre e discípula, tirada no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique, em de 1957.

Sendo uma das introdutoras da Psicologia Analítica no Brasil, Nise da Silveira também combateu durante toda a vida as atrocidades cometidas nas instituições de saúde mental , como eletrochoques, torturas e lobotomias.

Por ter sido uma das primeiras mulheres a se formar em Medicina no Brasil (foi a única mulher numa turma de 157 homens!); por sua vida militante, tanto no sentido político (tinha ligações com os comunistas de sua época e chegou inclusive a ser presa) quanto no sentido da saúde mental; por ter tido uma vida compromissada com seus ideais (preferiu não ter filhos para se dedicar inteiramente à psiquiatria); e, finalmente, por sua contribuição intelectual, não posso deixar de considerá-la uma das mulheres mais impressionantes e inteligentes que o Brasil já produziu.

  • #3-Lilia Moritz Scwarcz

Historiadora, antropóloga e fundadora da Companhia das Letras, Lilia é, no campo das ciências sociais, uma das nossas intelectuais mais sérias e competentes.

Sua vasta erudição lhe permite um olhar abrangente e profundo sobre os problemas culturais e históricos que maculam a teia social na qual operamos nossas relações.

Qualquer livro dela é um bom livro.

  • #4-Hilda Hilst

Há muitos motivos pelos quais prefiro Hilda Hilst à Clarice Lispector. E há muitos motivos pelos quais sua obra literária é mais revolucionária e importante.

Hilda se mostrou genial, mas depois de algum tempo, decepcionada com o mercado literário, cuspiu na cara de editores e críticos compondo uma obra tão satânica e provocativa que seria capaz de fazer corar até o Marquês de Sade.

Leiam Hilda Hilst! E vejam, nesta saudosa entrevista, que mulher inteligente, provocante e afiada ela era:



  • #5-Sônia Guimarães

Doutora em física e professora do ITA, uma das instituições mais prestigiadas e cognitivamente elitizadas do país, Sônia Guimarães é mais uma que, em termos de representatividade, fez mais pelas mulheres negras do que qualquer feminista de DCE que eu conheço.

O caso dela é outro que, creio eu, deveria ser muito mais divulgado e noticiado. Pela questão da representatividade, sua importância para a Ciência , para a Academia e para a nossa Cultura, em minha opinião, chega a ser maior que a o do finado Milton Santos.

  • #6-Suzana Herculano

Confesso que sou tão apaixonado por essa mulher que minhas mãos chegam a tremer enquanto escrevo sobre ela!

Perdoem-me, amigos! Tentei escrever sobre ela, juro que tentei. Mas não consegui. E não consigo: meu teclado vai estragar se eu continuar babando em cima dele.

Uma das nossas maiores neurocientistas, Suzana Herculano é simplesmente uma deusa. Assistam:



  • #7-Dilma Rousseff

Confesso que não foi fácil pôr aqui esta senhora. Nutro tanta simpatia por ela quanto Ferdinand Lassalle nutria por Karl Marx, ou seja: zero.

Mas é claro que isso não me impede de reconhecer seu importante papel em nossa História e Cultura, já que, bem ou mal, Dilma representa um tipo específico de intelectualidade feminina; tipo que, em minha opinião, é mil vezes superior as atuais mocinhas afetadas de classe média que acreditam que com posts no Facebook, Twitter, palavras de ordem e eventos parafílicos vão combater o capitalismo opressor e todo o mal no mundo.

A verdade é que você pode discordar de todas as ideias defendidas pela ex-"presidenta", mas precisa reconhecer que, se estivesse numa guerra, iria querer do seu lado uma companheira forte e determinada como ela. Afinal de contas, quantas mulheres se permitiriam passar por tantos sacrifícios e privações para defender seus ideais?

Sobre ela, há quem diga que o que lhe falta em carisma lhe sobra em competência técnica. Faz sentido. De outra forma ela não chegaria onde chegou.

Dilma é uma verdadeira intelectual militante, uma revolucionária de coração e espírito. Sua história e seus feitos são importantes e inspiradores para qualquer mulher de espírito político e guerreiro. E também para qualquer brasileiro que tenha o mínimo interesse pelo próprio país.

  • #8-Petra Costa

A intelectualidade nem sempre se manifesta por livros, cálculos avançados e discursos meramente literários. Quem estudou Cinema e Artes Gráficas sabe muito bem disso. Na verdade, muitas vezes a arte imagética acaba sendo a melhor forma de transmitir uma ideia ou uma dada visão de mundo.

Há em nosso país uma grande tradição de intelectuais documentaristas, que passa por Jorge Furtado, Walter Salles, José Padilha e desemboca no pernambucano dissidente Josias Teófilo.

Seria também essa uma área dominada por homens? Não mais! Com seu belíssimo, intimista e profundo documentário "Helena", Petra Costa se afirmou como uma das intelectuais e artistas mais relevantes do nosso tempo.

"Democracia em Vertigem", seu mais recente documentário, uma peça política repleta de nostalgia utópica e bastante criticável, tem dado o que falar.

Contudo, mais uma vez eu digo: discorde ou concorde com suas ideias e visões de mundo, não dá para negar a importância cultural e intelectual da moça.

  • #9-Luz Del Fuego

Alguém hoje em dia ainda se choca com nudez feminina? Nós estamos tão habituados à sensualidade e ao erotismo, e até mesmo à pornografia - recursos promovidos e exaltados pelo cinema e publicidade - que chegar a ser pueril a crença de que posar pelada hoje em dia seja "um ato crítico de emancipação feminina". É mais um ato de emancipação financeira, isso sim.

Contudo, se tal crença é anacrônica para o nosso tempo, era totalmente válida e realmente revolucionária para os anos sessenta do século passado. E justamente nesse período foi realizada com muita graça, estilo, irreverência e inteligência pela naturista, strip teaser, intelectual e atriz Luz Del Fuego.

Sobre feministas eu lhes digo: Socialista Morena? Credo, passo. Lola Abramovich? Deus nos livre! Luz Del Fuego? Aí sim!

  • #10-Cora Ronái

Filha de ninguém menos que Paulo Ronái (um dos maiores homens de letras que nosso país já teve), amante de ninguém menos que Millôr Fernandes, Cora Ronái teve e ainda tem importância ímpar para o jornalismo brasileiro, especialmente em sua expressão virtual e tecnológica.

Foi a primeira jornalista brasileira a iniciar e manter um blog e foi editora de vários cadernos de tecnologia de jornais influentes. Pelo eterno bom humor, simpatia, inteligência, pela prosa natural, sem pedantismos, Cora Ronái se destaca como uma das nossas maiores profissionais do jornalismo, merecendo assim seu lugar nessa lista.


                                                                      ***


Nota do editor: como outros textos abrigados neste blog, a lista acima foi originalmente publicada (em Junho de 2019) no site Quora.

26/10/22

A Importância da Literatura

 

[Raul Seixas, meio mulambo, lendo Orwell. De onde você acha que saiu a inteligência irreverente do Raul? E aquelas letras profundas e geniais? O cara lia de tudo.]

                          [Metamorfose, hein? Que sujeito mais kafkaniano!]

Vejamos o que o próprio Raul diz sobre a Literatura :

O Pasquim – Você poderia explicar sua formação literária, como você chegou a esse texto?
Raul Seixas Isso aí é uma coisa interessante. Antes de eu vir pro Rio eu pensava em ser escritor. Eu sempre escrevi. Antes de cantar, eu pensei em escrever. Eu tenho alguma coisa escrita guardada no baú que eu penso em publicar algum dia. Eu sou muito dado a filosofias, eu estudei muito filosofia, principalmente a metafísica, ontologia, essa coisa toda. Sempre gostei muito, me interessei. Minha infância foi formada por, vamos dizer, um pessimismo incrível, de Augusto dos Anjos, de Kafka, Schopenhauer. Depois eu fui canalizando e divergindo, captando as outras coisas, abrindo mais e aceitando as outras coisas. Estudei literatura. Comecei a ver a coisa sem verdades absolutas. Sempre aberto, abrindo portas para as verdades individuais. Assim, sabe? E escrevia muita poesia. Vim pra cá pra publicar.


Assim como o Raul Seixas, em muitos aspectos a literatura foi crucial para minha formação, a tal ponto que não consigo me imaginar, como ser humano, sem ela.

O caráter formativo, expansivo, educativo, os mistérios insolúveis, a riqueza psicológica, geográfica, as sutilezas e ambiguidades humanas, quase tudo o que aprendi de relevante sobre a vida, sobre o mundo, sobre Deus, sobre eu mesmo e sobre os homens, vi exemplificado nas narrativas literárias.

De todos os meus professores, os grandes autores da literatura foram os melhores, os mais honestos e os que menos negligenciaram minha inteligência e minha curiosidade. Diria até que não conseguiria ter atingido o nível de maturidade e estabilidade psicológica ao qual cheguei não fosse a literatura.

Poderia dizer que a Filosofia me ensinou a ter profundidade crítica, a História me ensinou a ser justo com os tempos e a Psicologia me esclareceu sobre as contradições humanas. Mas foi a Literatura que fundiu tudo isso em casos e contextos mais amplos, cheios de vitalidade, pessoalidade e transcendência, tão ricos de significados, interpretações, lições e possibilidades quanto a própria vida.

Mas dizer isso não é explicar. E para que se entenda como tudo isso ocorreu, especialmente aos não iniciados em literatura, convem explicar.

Eis, a seguir, um esforço explicativo. Uma tentativa de tornar inteligível a utilidade prática da literatura. Vou falar apenas sobre um aspecto, para o texto não ficar grande demais. Depois (me cobrem) desenvolvo sobre os outros aspectos.


Modelos Superiores

Todos os estudiosos do desenvolvimento humano estão de acordo que os jovens precisam de bons modelos. Na vida doméstica, na escola, na vida cultural e na vida religiosa. Tão pior será a sociedade quanto mais degenerados forem os modelos nos quais ela se inspira.

Pense agora nos modelos que inspiram os brasileiros do nosso tempo. Pois é! Trágico, não? Numa cultura que produziu gênios universais como Machado de Assis e Padre Landell, as pessoas só conseguem se emocionar com… Neymar. (Um sujeito cuja grande contribuição para o espírito humano foi: nada, absolutamente nada).

Assim, cresci numa cultura destroçada, carente de modelos superiores. Tinha ao meu redor, como símbolos de sucesso, funkeiros, pagodeiros, atores pornô, jogadores de futebol analfabetos e todo tipo de monstruosidade moral e estética disponível.

Como se orientar nesse caos?

Meus primeiros modelos, fora da realidade imediata, vieram da Bíblia. Mas eram modelos que não me atraiam, modelos muito arcaicos, nada tinham a ver com meu mundo. Alguns me pareciam modelos retardados, tolos. Matar o filho a mando de Deus? Não, obrigado. Abraão me parecia um idiota, e eu temia que meu pai realmente acreditasse naquilo, afinal eu era seu filho - situação perigosa!


[Machado de Assis. Quantas pessoas você conhece com uma visão tão profunda, realista e ao mesmo tempo divertida e engraçada dos defeitos e incongruências humanas?]

Vocês já leram Machado? Nunca? Meu Deus, que crime! Dá só uma olhadinha em quão divertido, revolucionário e genial ele era (em Memórias Póstumas..):

CAPITULO LV - O VELHO DIÁLOGO DE ADÃO E EVA

O velho diálogo de Adão e Eva

Brás Cubas
. . . . . ?
Virgília
. . . . .
Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . .
Virgília
. . . . . . !
Brás Cubas
. . . . . . . .
Virgília
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . .? . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Virgília
. . . . . . . . . . . . . .
Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . !
Virgília
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ?
Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . !
Virgília
. . . . . . . . . . . . . . !

[Agora olha nos meus olhos e diz: é ou não o melhor e mais divertido capítulo de toda a Literatura Universal?]


Logo depois, encontrei variedades de modelos em outros clássicos da literatura, Gulliver e suas ácidas observações me marcaram para sempre, depois Poe, com seu caráter sombrio e excessivamente analítico. Oscar Wilde me deixou meio degenerado, confesso. Todos me trouxeram uma amplitude de espírito, de visão, de entendimento de aspectos diversos da sociedade, mas, fundamentalmente, me trouxeram modos de conduta e referências que exigiam de mim grande esforço para serem compreendidas e mimetizadas. Eu precisava de constante superação para que, de fato, pudesse ser como meus modelos literários, fossem os personagens, fossem os autores. Eu queria utilizar a linguagem que utilizavam, resolver os problemas que resolviam, ter amigos como os deles, fazer tudo com tanto charme, inteligência e perspicácia. Deixar diários e mistérios interessantes para a posteridade, ter lendas a meu respeito.

No mundo real, quem eu tinha para me inspirar? Dois ou três modelos!

Meu melhor modelo acessível no mundo real só fui conhecer aos 13 anos. Era um tio, muito erudito, bem informado sobre todos os assuntos, demonstrava uma grandeza moral, uma razoabilidade, um senso estético e uma apreciação da realidade que jamais encontrei nos círculos neopentecostais (macumbaria pseudocristã) nos quais fui criado. O tio era judeu. Diferente de todo mundo que havia conhecido até aquela idade, ele foi a primeira pessoa sobre quem pensei:

"Esse sujeito é como os personagens e os autores de livros, ele entende como o mundo funciona".

As respostas que as pessoas me davam, na maioria das vezes, não respondiam absolutamente nada, não me explicavam o mundo com clareza e distinção, só me deixavam mais confuso e produziam mais perguntas - que eu fazia, deixando as pessoas irritadas. Mas ele não, ele era realmente diferente. Contava toda a origem de um conceito, as refutações, as diversas possibilidades interpretativas, os eventos históricos que haviam sido influenciados pelas ideias, os erros da comunidade humana ao longo dos tempos... Tinha um vocabulário rico, sabia dizer quem fez o que na História. Em suma: não estava perdido no tempo e no espaço, sabia se situar na grande dimensão da aventura humana, sabia falar das conquistas e das contradições humanas, muito diferente das pessoas que só viviam por viver ou para sobreviver.

Em suma: ele nem parecia brasileiro. As pessoas que eu conhecia tinham só corpo, emoções e instintos. Mas ele tinha mente, tinha inteligência, profundidade psicológica, cultura universal, tinha alma. Meu tio, para usar aqui uma metáfora do Alexandre Soares Silva, "era um membro do clube".

Enquanto a maioria dos parentes o achava estranho pois não era igual a todo mundo, eu pude vê-lo grande, pois pensava e falava com a clareza dos grandes homens do passado, os quais conheci via Literatura. Tenho certeza que se não tivesse a formação literária prévia, só teria reconhecido a superioridade intelectual do meu tio tarde demais, e a teria ignorado como todo mundo fazia.


[Oscar Wilde. Quantas pessoas com um apuro estético tão fino e sofisticado você conhece? Quantos dândis estão em seu circulo de conhecidos?]


Experiência parecida me aconteceu muitas vezes ao longo da vida. Encontrei algumas pessoas sobre as quais eu podia facilmente compreender o comportamento, a lógica afetiva, o imaginário, porque já havia conhecido seus tipos psicológicos na literatura. Logo, já podia antever seus gostos, suas formas de pensar, etc. É basicamente como se eu tivesse à minha disposição um mapa de modos de pensar e de se comportar, com os quais eu podia calcular as consequências lógicas e práticas de determinadas condutas no mundo real (e comparar com as dos livros).

Tudo isso foi particularmente importante porque, com esse mapa, eu pude estabelecer critérios sobre quem me interessava no mundo e quem eu preferia manter distância. E por isso - só por isso - hoje posso me gabar de ter amigos incríveis, que me proporcionam vivências magistrais. Para dar apenas um exemplo, eu poderia citar minha amizade com uma senhora que é provavelmente uma das mulheres mais inteligentes do país.


[Nietzsche peladão com seus amigos. Quantos amigos realmente espirituosos, poéticos e irreverentes você tem?]


Uma boa analogia sobre esse aspecto tipológico da literatura pode ser feita com o jogo de xadrez. Perceba: um enxadrista é tanto melhor quanto mais preparado está para o estilo do seu rival. Quanto mais conhece o comportamento e as tendências do outro, maior é a capacidade do enxadrista de prever os movimentos, de se antecipar. A boa literatura, os clássicos literários, de Dante à Machado, te dão justamente "um mapa" dos estilos dos jogadores. É um mapa de arquétipos e também de situações possíveis. Daí o caráter universal da Literatura, daí sua relevância ao longo de toda a História humana.

O que você leu ontém, você vive amanhã.

Ter utilizado esse mapa me ajudou, por exemplo, a não ter experienciado tanto do racismo que dizem existir em nossa cultura. Afinal, já que eu conseguia entender como as pessoas pensavam, pude me precaver, agindo da melhor forma possível.

E esse é só um dos benefícios da Literatura, ainda há vários outros.


             [ A inspiração da juventude de hoje. Sem mais comentários.]


***


Noda do editor: o texto acima foi originalmente publicado como resposta no site Quora.

17/08/22

Lima Barreto: Sangue Nobre e Esquecido


 [Manuel Feliciano Pereira de Carvalho]      [Lima Barreto]

                              

Mulata livre, filha de escrava alforriada, a mãe de Lima Barreto - Amália Augusta - era originária da família Pereira de Carvalho. Segundo boatos, filha (bastarda) de algum dos varões da família.

Quem eram esses tais Pereira de Carvalho? Tratava-se, na verdade, duma importante e tradicional família carioca. Destacava-se o patricarca: o renomado cirurgião Manuel Feliciano Pereira de Carvalho. De ascendência portuguesa, Manuel Feliciano presidiu a Academia Imperial de Medicina e foi professor do médico espírita Bezerra de Menezes. Era tido como justo, caridoso e solícito; conhecido por seu tratamento humanista aos negros e mulatos. Os Pereira de Carvalho muito apoio concederam ao pai de Lima Barreto, o culto e jovem tipógrafo João Henriques. (Tanto apoio que foi da casa deles que veio a sua esposa, Amália).

Então, vejam, meus caros: de tal modo são as coisas neste mundo que, para nossa surpresa, o famoso escritor Lima Barreto, a quem conhecemos por anarquista, humilde e desafortunado, muito provavelmente tinha em suas veias o sangue da alta burguesia carioca - embora por vias bastardas.

A comparação entre suas feições e a de seu possível bisavô, Manuel Feliciano, é bastante sugestiva.

...

03/08/22

Um Óculos Para Mersault


Um simples óculos evitaria o homicídio mais idiota da Literatura.

Agonia ao reler O Estrangeiro. Que bem faria a Mersault um óculos de sol! (já existia em 1942...)E que mania horrível aquela de "tanto faz", uma indiferença cuja origem só pode ser a apatia ou um germinal niilismo. Sugere o segundo quando, várias vezes, inclusive diante da proposta de casamento, reage com "isto não significa nada", negando o valor das convenções.

Tipinho hedonista e sem ambições, Mersault é motivado sempre por ideias de jerico e pelo seu caráter morno, sem sangue e sem sal. Tipinho que dá nos nervos. Homem sem drama, sem dor, sem paixão. Tem o espectro emocional resumido em duas sentenças: "isto me aborrece" e "isto me agrada". Se lhe cortassem os bagos, era capaz de reagir com:"Tanto se me faz" ou "Aborrecia-me viver sem os bagos".

Mesmo o crime que comete não lhe é fruto da vontade, mas antes de equívoco. Evento descrito numa cena que, aliás, é mal escrita e deficiente em credibilidade: como é que se explica que Mersault, desnorteado e cego pelo calor excessivo, a nove metros de seu inimigo, acerte-lhe nada menos do que cinco tiros?! Falta coerência nesse arranjo: a cena não convence. Ora, àquela distância, nem a navalha do árabe oferecia ameaça e nem Mersault lhe poderia acertar os cinco tiros, visto a sua condição ser a de um fotossensível cego pela luz solar. O mais cabível na cena era que este atirasse aos céus e que o outro, assustado, fugisse.

Ante personalidade tão mequetrefe, entende-se bem o incômodo da sociedade julgadora: que mais se admira da falta de emoção do homem do que propriamente de seu crime.

É dito que essa obra de Albert Camus - considerada indevidamente um clássico - trata da filosofia do autor, que explora o conceito de Absurdo. É explicação leviana e equivocada, uma coisa nada tem a ver com a outra. O Mito de Sísifo é interessante e bem escrito. Em O Estrangeiro, exceto pela cena mal escrita de homicídio, nada há de absurdo no que acontece à Mersault.

Absurdo, absurdo mesmo, é que uma obra tal, tão tímida na forma e tão baixa no conteúdo, seja tão recomendada e tão lida por aí.

A minha vontade de leitor era a de aprender magia negra, ressuscitar Camus, pegar os meus volumes de Celine e Victor Hugo e dar-lhe incessantes bordoadas aos berros de: "Está vendo? É assim que se conta uma história, desgraçado!";"Tome! Sinta! Sinta, desgraçado! Sinta na pele a Literatura de gente!"

Concluo com o meu preconceito: quem nasce argelino, jamais chega a ser francês. Nasce pobre e faz pobre a literatura. Uma literatura, assim, sem o L maiúsculo.

20/07/22

George Orwell Continua Indispensável

George Orwell foi, sem dúvidas, um dos escritores políticos mais importantes do século XX. Seus livros mais famosos, “1984” e “A Revolução dos Bichos”¹, são leitura obrigatória para quem deseja se instruir sobre os complexos dilemas enfrentados pela civilização ocidental no alvorecer do século passado. 
Considerado um clássico contemporâneo, 1984 é um livro sofisticado que expõe a maneira pela qual sistemas totalitários manipulam a linguagem a fim de manipular as mentes de suas vítimas. Orwell imaginou o que lhe parecia a forma mais terrível de totalitarismo, na qual toda a vida doméstica e até mesmo os pensamentos são vigiados. O termo Big Brother e a ideia de ausência quase total de privacidade (que acabou virando uma forma grotesca de entretenimento) vem do livro. O termo Polícia do Pensamento também. Saber disso já dá uma certa noção do clima opressor que permeia a obra.

Não vá o leitor pensar que é um livro fácil. Devo confessar que 1984 é um livro perturbador. Lê-lo te fará compreender como 2+2 = 5, e como, enfim, as ideologias podem destruir nosso bom senso, nossa moralidade e nossa civilização.
Obama com certeza leu Orwell.

Ao falar de 1984, não posso deixar de citar um outro, que é irmão e ao mesmo tempo contraponto. Me refiro ao famoso “Admirável Mundo Novo”² de Aldous Huxley, outro livro e outro autor indispensáveis para compreender o século passado e também o nosso. Os dois livros descrevem distopias e indicam um futuro sombrio para a civilização. Os dois livros são clássicos e tiveram grande influência. O que gera, nos meios intelectuais, o vício de compará-los de modo asaber qual deles mais se aproximou das possibilidades totalitárias de hoje. Quem teria sido, afinal, o profeta mais preciso? Questão estimulante, mas é discussão pra outro texto. Por ora, fiquemos com Orwell.
Enquanto 1984 é um livro denso, A Revolução dos Bichos, uma fábula, é obra mais amena. Pode ser lida em um dia. De fato, se o leitor a pega pra ler, dificilmente a vai largar antes de concluir. De forma alegórica, o livro nos conta a história do fracasso do comunismo e de como seus teóricos e praticantes se traíram uns aos outros. É um lembrete cruel do quanto, sendo homens, estamos próximos de ser porcos.

Também jornalista, Orwell ganhou notoriedade entre os intelectuais britânicos por sua preocupação moral, sendo um crítico do imperialismo britânico e ao mesmo tempo do comunismo soviético. Suas premissas humanitárias, sua honestidade (mesmo tendo algo de socialista, engajou-se em expor as mazelas dessa ideologia) e sua recusa à alienação política amparada num esteticismo puro influenciaram boas escolas de jornalismo mundo à fora, antes de serem quase todas arruinadas pelo irresponsável jornalismo gonzo de Hunter S. Thompson.

Uma coisa curiosa sobre Orwell é que seu nome, hoje em dia, é cooptado tanto pela esquerda quanto pela direita. Essa última evoca o autor e sugere que suas obras refletem uma posição anti-esquerdista. Enquanto a outra se apropria da fama de socialista de Orwell e conclui afirmando que ele era um esquerdista democrático. Ambas erram.
Aldous Huxley, outro profeta de distopias.

Num artigo que já não me lembro o nome, Orwell explica acreditar que o socialismo não é uma contraposição ao liberalismo, mas que, na verdade, o socialismo visa estender as liberdades que o liberalismo advoga. Não é uma posição estritamente original. Bertrand Russel, o filósofo logicista, ganhador do nobel da paz e contemporâneo de Orwell, acreditava em algo parecido. Assim, o escritor se situava politicamente numa posição de centro. Algo que tanto a esquerda quanto a direita detestariam admitir.
Se você nunca leu nada dele, vá correndo ler. É obrigatório. Tem muito a te acrescentar na vida intelectual. E para que você não diga que não sou camarada, indico aqui uma breve reflexão muito pertinente e cativante do autor, onde, com certo espírito agnóstico, ele evidencia que o acúmulo de informações disponíveis na modernidade nos torna muito mais crédulos que críticos.

Sempre atento à questões importantes, sempre bem humorado e sempre afiado, assim era Orwell.

Notas:

1. Tanto 1984 quanto A Revolução dos Bichos foram transpostos para a Sétima Arte. O primeiro tem duas versões famosas, uma de 1956 e esta outra, lançada em…1984. O segundo tem também duas versões, uma normal e a outra em animação.


24/03/22

Arthur Koestler e a Teoria da 13º Tribo


 Judeus asquenazi em Israel

A teoria da 13º Tribo é uma teoria histórica, de caráter revisionista, proposta no século passado pelo jornalista e intelectual Arthur Koestler. Resumidamente, a teoria sugere que os judeus asquenazi – aqueles de ascendência alemã e norte europeia (foto acima) – não seriam judeus étnicos, ou seja: não seriam semitas, o povo original da narrativa bíblica.

Os asquenazis seriam, na verdade, descendentes dos kazhares, um povode origem túrquica hoje em dia esquecido, mas que formou vasto império na idade média e habitou o norte da Europa, principalmente as estepes russas.

Judeus asquenazi de origem turca, fotografados em Jerusalém em 1885 . Segundo a teoria, não teriam sangue semita

Os kazhares teriam adotado o judaísmo e se espalhado pela Europa depois da dissolução do império kazhar. Por isso, muitos judeus que nós conhecemos atualmente (de fenótipo nórdico, brancos e de olhos azuis) não seriam “judeus biológicos” ou “judeus de verdade”; mas sim herdeiros culturais de povos historicamente convertidos – daí o nome ‘13º tribo’.

Embora interessante, a teoria é bastante controversa e problemática. Longe de ser a conclusão imparcial de uma pesquisa original, a tese foi, ao menos em parte, planejada. Arthur Koestler– que era judeu – tinha motivações políticas. Ele pensava que se conseguisse demonstrar que os judeus de origem norte-européia não eram semitas, então, logicamente, encerrar-se-ia o antissemitismo na Europa. Por esse motivo, mesmo que sua pesquisa se embase em ocorrências históricas reais, suas conclusões devem ser vistas com certa suspeita. 

Koestler foi considerado um dos grandes intelectuais e romancistas do século XX, e era amigo de autores famosos como George Orwell.

Obviamente, a comunidade judaica internacional (cujos líderes, em sua maioria, são judeus asquenazi) não gostou nenhum pouquinho da teoria. No meio judaico em geral, exceto por um ou outro intelectual dissidente, a tese tem sido considerado falsa, conquanto razoavelmente elaborada.

Hoje em dia, se vivo fosse, Koestler estaria a beira de um ataque de nervos, pois sua ideia converteu-se em arma política justamente para o lado que ele desejava combater. Há anos a teoria da 13º tribo vem sendo instrumentalizada por grupos de extrema direita que alegam que, por não serem semitas, os judeus asquenazi não possuem legitimidade para ocupar Israel.

Mesmo controversa e polêmica, a teoria é importante porque suscita o debate sobre o que significa ser judeu; faz pensar sobre o papel da cultura e da raça (herança genética) na formação da história e da identidade judaica. Um debate muito relevante para um povo tão cosmopolita e ao mesmo tempo tão preocupado em manter sua unidade espiritual.

22/02/22

Foi-se o Comentarista



Imagino que os amigos de mesma geração tiveram experiência semelhante. No meu caso, aconteceu assim: sentado no sofá da sala, acompanhando meus pais enquanto assistiam ao Jornal Nacional (evento rigidamente tradicional para famílias brasileiras dos anos noventa), eu ficava deslumbrado e perturbado quando, em algum momento do noticiário, surgia um senhor grisalho e muito eloquente; que falava dos principais eventos com comentários irônicos, certeiros, perversamente bem-humorados e espirituosos.

Pré-adolescente, eu não entendia muito, mas catava, numa frase ou em outra, um deboche, uma sátira, um pastiche. Notava que ali havia humor e achava estranho, pois contrastava com a sisudez do jornal. E não era o humor que eu conhecia. Era algo novo, mais refinado.
Esse curioso comentarista tinha nome: Arnaldo Jabor.
Mais tarde, soube que ele era um figurão da cultura nacional. Participou do Cinema Novo, ajudando a fazer história num período de grande efervescência da cultura brasileira. Como colunista, antes de se focar no mundo político, entreteve e ilustrou milhares de leitores durante décadas. Publicado semanalmente em 23 jornais, esbanjava crônicas culturais engraçadas, inteligentes e enriquecidas com referências à dramaturgia, cinema, pintura, música, quadrinhos, literatura e história. Há em sua prosa o olhar desiludido de um ex-militante comunista, mas também a confissão cínica de quem viveu nossa história; e, para não enlouquecer, fez tragicomédia com nossos personagens e enredos quotidianos.
Certo ou errado, sempre culto e opinativo, era uma mente instigante.

07/02/22

O Texto, a Divulgação e a Polêmica da Piriquita



Embora desprovido de grandes pretensões literárias e consciente de minhas limitações nessa arte, creio que - mesmo sendo blogueiro e cronista de menor categoria -, mereço ser lido pelos leitores de crônicas e blogs; especialmente pelos leitores de crônicas e blogs de menor categoria, e mais especialmente ainda pela parcela que sofre de masoquismo literário e desprezo pelos gramáticos. Em minha autoindulgência chego até a considerar que posso, em alguma ocasião, ter escrito algum texto interessante ou provocativo, digno de um público maior.

No entanto, uma dificuldade persiste. Onde publicizar um texto quando você é apenas um blogueiro desconhecido e escritor amador? Como conseguir leitores que tenham interesse no que você tem a dizer? São questões que frequentemente me afligem.

Eis uma verdade universal que todo escritor digital deve saber: para quem quer leitores, não basta escrever; divulgar é tão importante quanto. É nesse aspecto - o da publicidade - onde muitos blogueiros falham, inclusive o autor destas linhas. Encontrar o público de certos textos pode dar trabalho, é preciso uma disposição que nem sempre me anima. Sou cronista preguiçoso, reconheço.

Além disso, há vantagem na obscuridade: ela nos protege da crítica indevida. A desvantagem é que protege-nos também da crítica pertinente. Ter o texto exposto e criticado pode servir - e geralmente serve - para amadurecer o entendimento do escritor sobre o próprio texto e as reações que ele suscitou. Outra parte interessante da exposição textual na internet é a oportunidade de interagir com os leitores. Digo: interagir com os bons leitores, aqueles que compreendem o texto e têm alguma contribuição cultural ou argumentativa a fornecer. Quanto aos maus leitores: o jeito é ignorá-los.

Trarei a seguir um bom exemplo prático de como a divulgação pode trazer resultados interessantes. Mas antes devo confessar, meus caros, que apesar ter iniciado este blog com o objetivo de abandonar o Facebook, eu continuo escrevendo, ocasionalmente, na rede social do Zuckerberg. E foi surfando por lá que, outro dia, em reação à postagem de uma amiga que compartilhou a "Piriquita" - refiro-me a inusitada e recente música de Juliana Bonde - escrevi um comentário longo (para os padrões do Facebook) a respeito da manifestação do Kitsch em tão peculiar canção. No comentário eu explicava o processo de decadência que sofreu a canção "Tédio", da banda Biquini Cavadão, até virar a estrambótica e terrivelmente bem humorada versão do Bonde do Forró.

Sujeito de tendências misantrópicas, tenho poucos amigos no Facebook - cerca de 168. Desses, há um pequeno grupo, que varia entre 10 e 15 pessoas, com quem interajo de modo recorrente. Formam o seleto grupo de insensatos que lêem as bobagens que escrevo por lá. Como são leitores qualificados e que sempre acrescentam, não tenho do que reclamar. No entanto, desta vez, como fiz comentário de um evento atual, coisa que evito, fiquei curioso para saber como outros leitores reagiriam ao texto, já que o assunto está muito falado no Twitter e em outras redes sociais.

De início, achei que era boa ideia publicá-lo em meu perfil no Medium, já que faz tempo que não publico por lá. Faria bem um texto novo, pra variar. Foi o que eu fiz. Porém, logo em seguida, lembrei-me que o ritmo de interação no Medium é mais lento, e que lá não é a melhor plataforma para explorar as polêmicas da semana. Então percebi que para que o texto fosse lido por mais leitores, eu deveria divulgar o link do texto do Medium em grupos do Facebook. Felizmente, por sorte, faço parte de alguns grupos de música cujos membros são muito engajados em debates e polêmicas. Divulguei o texto num desses grupos e o resultado foi melhor do que eu esperava. Os recortes das métricas confirmam:

Recorte 1) O alcance e as reações do seleto público do meu perfil principal no Facebook.



Recorte 2) O alcance e as reações à divulgação do texto no grupo "Psicodelia Brasileira"



Recorte 3) Em um dia e meio, as estatísticas de visualização do texto no Medium subiram de 0 para 213.


Recorte 4) Comparando com os textos não divulgados, e que estão no Medium há muito mais tempo, a diferença nas estatísticas é abissal.


Tal experiência prática, além de confirmar a importância da divulgação, me fez pensar um bocado. Então, veja você, escritor iniciante, cronista, ou blogueiro, o como é possível e fácil ampliar o público de seus textos. Depois de escrever, basta a estratégia correta para divulgar. E depois é encarar as reações, boas e ruins.

No meu caso, entre as várias reações ao texto, este comentário, presente num debate cheio de farpas entre este autor e um leitor inteligente, foi difícil de ler, pois demasiado verdadeiro. Doeu-me o coração sensível.


Já este outro, eu adorei, por ser mais verdadeiro que o anterior e ser expresso por uma bela mulher, o que é ainda melhor.


25/01/22

A Morte do Guru



Morreu o véio lôco. Pela erudição e erística, era interessante como ensaísta heterodoxo. Ao reviver o anticomunismo mais caricato e tacanho, digno de um Carlos Lacerda, o Guru da Virgínia fez mal danado ao jornalismo político brasileiro. Sionista declarado, Olavo chegou a dizer que muitos judeus ricos estavam envolvidos com Nova Ordem Mundial, e denunciou o infame George Soros, o que surpreende.
Certa vez, foi condescendente com o Integralismo, dizendo que ter pertencido ao movimento não macula o passado de ninguém, opinião que lhe rendeu a ridícula acusação de antissemitismo, feita pelo ridículo Intercept.
Em artigo para o seu excelente blog Matemática e Sociedade, o físico Adonai Sant'Anna, comentando uma entrevista antiga do ensaísta, escreveu que Olavo conseguia misturar uma descrição precisa e inteligente da situação educacional brasileira com opiniões problemáticas e nonsense.
De gênio desequilibrado à doido varrido, de místico iluminado à agente da CIA, as opiniões sobre Olavo são tantas e tão diversas que só confirmam a complexidade do sujeito. Erudito de personalidade cativante e belicosa, tido por alguns como líder de seita, Olavo foi uma espécie de Chacrinha intelectual da Nova Direita: comandou um programa bizarro que influenciou grandes setores da cultura brasileira.
Essencialmente um anarquista místico que se fez conservador, Olavo formou-se na tradição intelectual do entre guerras - que incluia pensadores como Arthur Koestler, Curzio Malaparte, Rene Guenon e Aldous Huxley (foi provavelmente à partir de Huxley que chegou em Guenon) - e na escola do Realismo Fantástico dos franceses Jacques Berguier e Louis Pauwels, veiculado pela famosa revista Planète.
Revista que, aliás, teve uma versão nacional - "Planeta" - para a qual Olavo, ao lado de Paulo Coelho, chegou a colaborar. Tenho a edição que uma ex-amiga furtou da Biblioteca da UnB para me presentear- sabia ela que eu era fã da revista e leitor de Olavo -, nessa edição há artigo do ex-astrólogo sobre Cristianismo Esotérico, onde ele faz seus primeiros comentários públicos da obra de René Guenon e, de passagem, menciona que os conhecimentos de Dante Alighieri sobre alquimia árabe foram expressos na Divina Comédia.
Sempre atraído pelo bizarro e pelo heterodoxo, ao longo dos anos recorri à erudição arcana de Olavo e me vi seduzido por seu carisma galhofeiro e depravado. Mas não tardei a ver - certamente com a ajuda de amigos, como o Marlos Salustiano e o Hugo Motta - que a influência do homem era nefasta.
Uma vez, em casa de amigos hipsters, feministos e desconstruídos, citei o nome maldito. Os presentes emudeceram, o ar tornou-se aspero, o chão tremeu, nuvens negras subiram aos ceus, faltou o teto cair: e então, para minha surpresa e espanto, os presentes me olharam como se eu acabasse de confessar o estupro de minha genitora.
Noutra ocasião, na Baratos da Ribeiro (o tradicional sebo alternativo do Rio de Janeiro), em roda de intelectuais mesmo sem ser um deles, descobri que o Maurício Gouveia, o icônico dono da loja, também havia lido e criticado os livros do guru. Conversamos a respeito das reações exageradas à obra do Olavo, e os méritos e deméritos da mesma. Logo alguns presentes na roda fizeram aquela carinha de nojo. "Ah, não. Olavo não!" alguém bradou.
É sempre assim, o que talvez seja compreensível. Todas as opiniões sobre Olavo têm algum mérito, porque o homem era tudo isso ao mesmo tempo. Não era um todo coerente. Era uma dessas misturas impossíveis que só o Brasil é capaz de fabricar.
Com a morte de Olavo e o favoritismo de Lula na disputa eleitoral deste ano a Nova Direita perde força. O Olavismo era um de seus pilares. Resistirá o Olavismo sem Olavo de Carvalho? Em carisma e erudição, não há nenhum discípulo que se equipare ao mestre. O que tem mais chances é Ítalo Marsili, mas este peca pela arrogância, sempre ostentando seu vínculo a uma família de passado aristocrático, seu público é menor e em grande parte vinha pelo Olavo. Quanto aos filhos do guru, o mais inteligente é Luiz Gonzaga de Carvalho Neto (o "Gugu"), mas este é bem menos político e mais esotérico; e é muçulmano, não católico.
De minha parte, creio que o Olavismo não morrerá com Olavo. O que é vil e equívoco tende a perdurar entre os homens. O mais provavel é que continuaremos ouvindo as ideias estranhas de Olavo, mas através de outras faces e vozes. O exército de papagaios olavetes fará a única coisa que sabe fazer: repetirá Olavo. Mas sem o charme e o estranho carisma do mestre.
Para o bem ou para o mal, Olavo deixa este mundo para entrar na História. Foi o homem que ajudou a enlouquecer um Brasil que já não era muito são. Ajudou a eleger o demente retardado que usurpa a faixa presidencial e presta continência à bandeira estadunidense.
Olavo de Carvalho foi um homem carismático, inteligente, manipulador e perigoso. Que sua morte inaugure uma era de decreptude aos movimentos que ele ajudou a alimentar.