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22/03/23

Um Milagre na Madrugada

Para cada homem e mulher, a vida social se mostra como uma perpétua Torre de Babel, povoada por gente de todo o tipo que, via de regra, não se entende de forma alguma. A comunicação, alma da vida social, desponta como drama absurdo no qual todos falam e ninguém se entende, porque tudo vira cacofonia e ruído, toda ideia de valor proferida termina obscurecida por conveniências, omissões, covardias, cooptações, ilusões, condicionamentos e desconfianças. Tudo o que é complexo acaba simplificado, diminuído, compactado e consequentemente falseado.


Rebelde, eu sonhei, pela honestidade de minhas pequenas letras, instigar mentes humanas com as minhas tímidas e pouco usuais verdades - porque a verdade, mesmo a minha verdade, que é a angústia da dúvida, e mesmo nas mãos de um tímido, é uma arma tremenda - mas me deparei com tanta barreira, tanta pedra no caminho, tanta incompreensão. Desiludido, por vezes deixei de acreditar na palavra, no entendimento e na virtude. Cheguei mesmo a divinizar o silêncio. E no entanto, por uma vontade que não se explica, fiz-me cético sobre meu ceticismo e lutei contra minha descrença. Dom Quixote filosófico, persigo agora uma miragem: a utopia da compreensão entre os homens, e nessa perseguição faço-me cronista, prosador, ridículo crente na palavra, no diálogo com a cultura letrada, seguidor do caminho da consciência, caridoso distribuidor de verdadezinhas íntimas, sensíveis, pessoais, grandes porque talvez irrelevantes.

Vida difícil essa, pois há nela mais solidão que comunhão. Entretanto, se nenhuma felicidade é completa, nenhum infortúnio pode sê-lo também. Mesmo a mais pungente solidão letrada não está livre de uma eventual contingência que traga o afeto luminoso, no qual, numa irrupção verbal imprevista, a compreensão se faz solene, abrangente, total. Ocorrência essa que considero verdadeiro milagre. Talvez pequeno, mas ainda assim milagroso. Foi isso o que, inesperadamente, me aconteceu. E para que os homens saibam ser possível, dou-lhes testemunho desse milagre que, passado na última madrugada, infundiu-me senso de fraternidade, uma paz, uma leveza, uma elevação, e mais do que tudo uma esperança em relação ao humano, como há muito este aqui não sentia.

***

A voz era doce, afinada, limpa. A inflexão, embora temperada por uma excitação mental que ela não pretendia esconder, sugeria uma sobriedade, uma perspicácia, uma inteligência felina e ferina. Como eu, aquela mulher tinha algo de fera, também ela nutria a rebeldia que viceja nos espíritos altivos, angustiados; os tipos sombrios e deslumbrados que sofrem a posse duma inteligência diabólica, uma falha na consciência que os impele a contemplar o abismo de todas as coisas. Muito consciente, ela sabia de seu valor, e no entanto, diferente deste, não tinha em si o pecado do orgulho. Verdade é que, para ela, a própria superioridade era apenas subproduto de sua disposição livresca, uma febre de filósofo humanista, de latinista medieval, de erudito e de polímata subjugavam-na: tinha a curiosidade voraz e expansiva de quem tudo quer saber - não apenas acreditar, ela queria mesmo é saber! - um amor inegociável pela vida letrada e contemplativa, pela investigação e pelo conhecimento. Admirava-se disso: a curiosidade abundante, raiz indubitável de toda aquela inteligência que ela, ruiva fatal, desnudava sem pudores para o amigo cronista.

"Falamos a mesma linguagem" ela me disse. Com seu discurso pródigo, lúcido, culto e refinado. Com toda certeza o resultado da busca intelectual de uma vida inteira, de seu esforço e persistência, que permaneceria com ou sem estímulos da cultura exterior. Era assim a minha amiga: em tudo diferente do tipo de mulher vulgar e pretensiosa que parece ter dominado a maior parte dos espaços públicos deste século. Época trágica, na qual muitas mulheres se empenham em condutas bárbaras tão ou mais escabrosas que as praticadas pelos homens. Mulheres que se apequenam ao buscar paridade com uma coisa tão débil e ridícula quanto um homem.

Distinta, superior, impondo a si mesma os mais altos padrões, os gostos mais refinados, a sensibilidade mais poética, a inteligência mais penetrante, dispondo de enorme paixão pelo mistério perene que é a origem de cada coisa deste mundo, e apesar de tudo, de tão grandioso espírito, de tanta sabedoria, era ainda jovem, tão jovem que me causava espanto.

Eu a ouvi deslumbrado. Por todas aquelas horas, quando não era eu a divagar, em cada segundo, mesmo nos silêncios, eu a ouvi, deslumbrado. Com desenvoltura ela me falava de Emil Cioram, Mírcea Elíade, Terrence Mackena, Georges Bataille, Carlos Castaneda e tantos outros. Quantos? Não saberia dizer. Parecia-me um verdadeiro exército de homens e mulheres criativos, heterodoxos e instigantes; uma galeria de malditos, místicos e rebeldes cultivada com carinho e afeição. A riqueza cultural daquela mulher, a sua grandiosidade de espírito, tão rara, tão preciosa, tão única, era como se os deuses, cansados das minhas reclamações sobre a debilitada constituição mental e moral da mulher pátria, me tivessem concedido um gostinho do paraíso. Como uma resolução de Apolo a me dizer: "Para que não te atormentes em demasia, tu, criatura piedosa e de espírito trágico, que a todos os deuses venera, e que em todos eles inspira compaixão, conhecerá uma ninfa e nela encontrará abundância na formosura e na inteligência". Assim disse o deus, assim aconteceu ao mortal. E ali, naquele telefonema, naquela madrugada, travei a mais íntima relação mente a mente, alma a alma, com a ninfa de cabelos vermelhos e olhos esverdeados, tendo mais que um vislumbre de sua irrevogável grandeza.

A conexão verbal que se enriquecia no silêncio da noite. Como passou rápido o tempo! Foi a primeira parte da noite e veio a segunda, a madrugada. Passou a primeira, passou a segunda, e nenhum de nós, nem eu nem ela, ousou largar o telefone. Aquele elo, aquela conexão, aquela cumplicidade, aquilo talvez não fosse tudo na vida, mas era, certamente, uma das coisas mais valiosas, mais significativas, mais belas e mais poderosas. Era o que eu buscava numa relação, ela também. Como faríamos na despedida? Como desligar? Não havia vontade, mas, em algum momento, seria necessário.

Foi somente ao raiar da aurora que nos despedimos, não sem antes denunciar ao outro a gratidão por aquela vivência. Naqueles momentos finais, a surpresa: a ligação durara até ali 7 horas e 30 minutos de conversa ininterrupta. Apesar da cifra, na história das afeições intelectuais não chegamos a bater o recorde. Nossa prosa daquela noite resulta cinco horas e meia a menos que as famosas 13 horas que Jung e Freud conversaram quando se encontraram pela primeira vez. Ainda assim, 7 horas e meia de conversa ininterrupta, sem sair dela entediado, parece-me uma comunhão deveras significativa. Além disso, eu e a ruiva ainda não nos encontramos pessoalmente. É nossa opinião que boas amizades e excelentes conversas são terapêuticas. Essa com certeza foi. Saí dela pensando na divindade de algumas mulheres, na grande comunhão que pode haver entre amigos, na magia da mútua e profunda compreensão.

Tudo isso eu digo e ainda provoco: o recorde dos mestres da psicanálise que se cuide: pois a ruiva e eu estamos no páreo.