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23/10/24

Nossa Sinistra Tramóia




Existe um tipo de escritor que não escreve para o público. Um tipo de escritor que escreve apesar do público. Ele escreve primeiro para si mesmo, e escreve não porque quer, mas porque não pode evitar fazê-lo. Escrever é, para ele, um vício degradante, purificador e inevitável.

Ele escreve também para seus amigos, que são escritores, poetas, intelectuais e podem compreendê-lo. Afora esse pequeno grupo de amigos, esse escritor, finalmente, escreve não para todos os leitores, mas para uma minoria de estranhíssimos e inesperados leitores, que, por milagre, podem compreendê-lo. E a minoria da minoria, por milagre ainda maior, parece necessitar de seu discurso - ideia essa que honra e apavora o escritor. Ele, quando desanima, não raro vê-se motivado por leitores que dizem: "Continue, você é bom"; "Não pare de escrever", "Quando você vai escrever sobre aquele assunto?".

Quem e quantos exatamente são os membros dessa cabala? O escritor, na maioria das vezes, não sabe. Sabe, contudo, que se o leem é porque com algo se identificam, ou ao menos reconhecem as mesmas verdades. Isso faz nascer uma ponte, um sentimento comum, uma simpatia. E um pacto se estabelece entre o escritor e seu leitor. Sem pretender, sem jamais terem visto um ao outro, tornam-se cúmplices numa conspiração literária.

Somente em duas áreas é possível ser cúmplice de alguém que nunca vimos: na Espionagem e na Literatura. São, creio eu, coisas assemelhadas. O leitor, afinal, não passa de um grande bisbilhoteiro que sempre quer saber mais, e por isso se mete a ler tudo de interessante que encontra. E o escritor lírico não passa dum grande delator, traidor de si mesmo; espião que na oralidade esconde a sua angústia apenas para melhor revela-la em sua prosa.

São ambos, escritor e leitor, espiões. Um informa o conhecimento secreto e íntimo, e o outro observa, acompanha na surdina; calado toma nota. Por serem espiões, ambos desconfiam um do outro. "Será verdade aquela história que ele contou? Ou será ficção?" Pergunta o leitor. "Será que não vão me delatar à polícia, aos guerreiros da justiça social, ou pior, ao psiquiatra?" Pergunta o escritor. Escritor, você sabe, é sempre meio neurótico, meio paranoico, desregulado. "Será que vão entender que é ironia? Será que posso fazer tal citação? Será que posso usar aquela expressão latina?" Pergunta o escritor, desconfiado do leitor.

É uma relação complicada, estranha, fascinante. Eu, escritor menor, confesso, tenho medo dos leitores. Se este blog chegar aos cem leitores, pararei de escrever aqui. Quanto mais leitores, menor a possibilidade de dizer coisas relevantes e desagradáveis. Quanto mais leitores, menor a maturidade possível ao discurso. Quem fala para multidões fica restrito a falar tolice ou superficialidade. A menos que tenha vocação para mártir, o que não é meu caso.

Essa minoria de leitores da qual falo não constitui um grupo público, mas um grupo privado. Trata-se duma cabala de leitores cuja maioria desconheço, que se fazem anônimos e que não se conhecem entre si. A eles, a vocês, não escrevo como um escritor que se dirige ao público, mas aos privados. Não escrevo para povos ou multidões, escrevo para indivíduos. Escrevo como um espião que se dirige a outros espiões. 

Afinal, como convém à ética do ofício, o bom espião deve revelar-se apenas aos outros espiões; nunca ao público. Sigamos, pois, com a nossa sinistra tramóia. Eu a me delatar em literatura, e você, silenciosamente, a tomar nota de tudo.