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16/11/23

Lágrimas e Saudades


Ela que não morresse
"Preciso ainda de ti", ele afirmou
Ela lacrimejava, pois não queria partir
Mas engoliu o choro e lhe disse
"Da morte não se pode fugir"
 
Ela estava viva
Cambaleante e fraca
E sofrendo muito
Mas estava viva
 
Até que num 2 de Setembro
Veio o seu último dia
Quando então ela partiu 
Diante da família
 
Lembro-me de sua meiguice
E também de sua fé
Lembro-me de seu sorriso
E também de seu abraço
Lembro-me de tudo
E sinto saudades, e choro

14/12/22

Mata, Entorpece, Faz Gozar e dá Lucro: Corona Faz Tudo Isso e Muito Mais.


Sempre que, entoando aquela caricata voz paternalista e conselheira, uma autoridade pública lhe disser para não entrar em pânico, fique atento, pois é precisamente isso o que você deve fazer. Infelizmente não ensinam essas coisas na escola, mas, no mundo real, os jornais, governos e autoridades só te dizem para não entrar em pânico quando eles sabem que há motivos de sobra para entrar em pânico. Portanto, toda vez que você ver uma autoridade tentando minimizar um problema dizendo que não há motivos para o caos generalizado, pode ter certeza: ela mente e, muito provavelmente, irá haver caos generalizado.

Misantropo velhaco que sou, conhecedor nato da farsa humana, ao ver o noticiário, algumas semanas atrás, contemplei alguma dessas apresentadoras magrinhas e insossas dizer alguma coisa sobre como o Ministério de alguma dessas áreas importantes que jamais deveriam ser administradas por políticos (Saúde, acho) estava se preparando para o combate ao tal vírus com nome de cerveja cult. Logo em seguida, a mocinha indicou uma série de procedimentos lógicos e básicos de higienização para combater o vírus.

Vejam só! Pleno 2020 - mais de cem anos depois de São Freud! - e eu ainda tenho que aturar essa gente "respeitável" apelando para a racionalidade humana. Ainda mais gente do jornalismo, cuja base de atuação é a propaganda e a criação de consenso, que funcionam com... apelos e mais apelos ao inconsciente.


Se o Corona mata, a Corona salva. Se não salva, ao menos traz aquele bom entorpecimento alcoólico. O qual, no fim das contas, não deixa de ser uma forma de salvação.


Naquele infernal dia, como em geral são os dias no Rio de Janeiro, olhei cauteloso para minha inconsequente progenitora (inconsequente porque me pariu) e lhe fiz o único pronunciamento que um cético social poderia:

_ É sério que alguém ainda espera racionalidade e higiene social do povão?

Nosso povão certamente tem muitas qualidades, mas higiene social certamente não é uma delas. Se nas camadas mais gerais domina uma certa "cultura do corpo" ( em nosso país, por algum motivo, todo popular quer ser Schwarzenegger e toda popular quer ser Kardashian), essas mesmas camadas carecem de cultura cívica - e higiênica - do espaço. Qualquer pessoa com alguma vivência urbana diversa sabe que a lógica espacial do nosso homem urbano médio é a mesma lógica organizacional dos bloquinhos de carnaval e das micaretas. Ou seja: há muita ordem, gente bonita, disciplina e uma organização quase prussiana. Só que tudo ao contrário.

E para melhorar temos o toque. O brasileiro, especialmente o carioca, é um sentimental. Tem sempre aquela coisa (nojenta) do aperto de mão, do beijinho no rosto (arghh!!) e do abraço. Coisas que só são úteis para órfãos carentes, turistas carentes e, claro, terroristas bacteriológicos.

Eu, cá no meu cantinho, observando a loucura dos outros e do mundo, indago: por que, meu Deus, por que as pessoas não podem se comunicar apenas por acenos de mão e cabeça? E por que o vírus só é mais perigoso para os mais idosos? Quer dizer que os detestáveis millenials vão continuar vivos e atuantes? Quer dizer que aqueles que conhecem a história, aqueles que possuem alguma sabedoria, alguma maturidade, alguma malícia, alguns valores tradicionais, algum racismo essencial, algum preconceito notável, algum machismo salvífico, esses, que são os meus, irão morrer? E isso tinha que acontecer logo durante uma das minhas crises de ateísmo!?

Mas tenham calma, meus amigos. Não façam como eu, não se desesperem, não comprem manuais de combate a zumbis e nem estoquem comida em casa. Ainda - ainda!-não há motivo para pânico. Afinal, nessa onda de vírus já criaram até um novo fetiche pornô, sobre o qual nos poderíamos dizer que é um tanto quanto... virótico.

Enquanto você está aí temendo o vírus, tem gente gozando e lucrando com ele. Aparentemente, não há desgraça que não possa ser, de algum modo, cooptada para gerar lucro para algum empresário oportunista.

A estratégia quase sempre é a mesma: apelar aos instintos, nunca a razão.


                                                                      ***


Nota do editor: como outros textos abrigados neste blog, a crônica acima foi originalmente publicada  no site Quora (mais especificamente: em Março de 2020).

07/09/22

O Homem Que Perdeu a Mulher Amada



O amor conjugal, quando verdadeiro, só pode culminar em angústia, dor e intenso sofrimento. A união baseada nessa forma de amor engendra no espírito humano uma profunda e irrecuperável dependência. É pesado, é agonizante, é comovente e é trágico o sofrimento do homem que perdeu sua amada, que perdeu sua outra metade, sua razão de viver. Ele chorará com a facilidade de uma criança, mas sofrerá como se o próprio ar lhe aviltasse, como se cada inspiração o envenenasse; e a vida para ele figurará como equívoco, lástima, desvario. 

Desejaria aceitar o capricho divino, mas seu coração não pode, seu amor não permite. Quer a amada a seu lado. Queria antes, quer agora, quererá depois e sempre, sempre, sempre. Mas ele não passa de criatura humana, não tem o poder de ressuscitar os mortos, e a sua fé, mesmo quando grande, não lhe serve senão como consolo. A dor, a intensidade do sofrimento, o fará descobrir que não é verdade que a fé move montanhas, não é verdade que ressuscita os mortos... Descobrirá que não é mais forte a fé do que o fato, de tal modo que lhe consumirá o sofrimento, o sentimeno de perda, o amargor. Para continuar a viver, precisará acostumar-se com o vazio, com a saudade e com o sofrimento. 

Sabemos que o gênero humano, para o bem ou para o mal, é do tipo que se acostuma. Assim, o mais provável é que o homem que perdeu a amada, depois de intenso sofrimento e desilusão, um dia deixará de chorar; e se não deixar de sofrer, ao menos se acostumará a viver com o sofrimento. 

Amar, viver, sofrer... A tudo o homem se acostuma.

02/09/22

Com Família, com Música, com Coragem



Mamãe e eu no hospital, alguns meses antes...


Hoje, sexta feira, 02 de Setembro de 2022, dez dias antes do meu aniversário, mamãe morreu. Foi hoje, sei bem. Aconteceu às 16:35. No quarto do hospital, durante a partida, mamãe estava acompanhada por quatro dos membros mais próximos da família- Eraldo (papai), Juliane (minha irmã), Thiago (meu cunhado) e eu. Os outros dois - Eliseu e Lorena (meu irmão e minha cunhada) - estavam a caminho. 

Chorávamos, nós quatro, e ao mesmo tempo a confortávamos expressando nosso amor. Papai a abraçava, Juju lhe segurava as mãos em um momento, eu em outro. Thiago lhe beijava a testa. "Estamos com você"; "Te amamos"; "Não tenha medo" era o que dizíamos. Embora tudo nela fosse fraqueza e decadência física, mamãe pareceu sentir algo. Mudou o semblante e também a posição. Antes deitada, inclinou-se a frente e tirou a máscara de oxigênio. Papai tentou repor, mas por três vezes ela o repeliu. Ele a questionou: "-mas, meu bem, não queres a máscara? É isso mesmo?" Ela fez que sim com a cabeça.

Sem máscara, abraçada pelo esposo, assistida pelos filhos e genro, mamãe, segurando as mãos de papai, revirou os olhos e depois aquietou-se. Assim, enquanto nós chorávamos, o seu elevado espírito deixou o seu debilitado corpo. Partiu sem dor, sem violência, sem medo. Naquele momento, tocava a versão instrumental, em sax, de "Alvo Mais Que a Neve". Choramos, nos abraçamos, choramos, oramos. O momento derradeiro finalmente chegara, e mamãe foi de peito aberto, preparada, sem medo. 

Estava consumado. Agora mamãe não mais sofreria, agora; ficaria em paz. O corpo padece e fenece, mas eu acredito que a alma é imortal. Eu sei que vive a alma de minha mãe, Julia Ramalho Barbosa, que foi professora, esposa, filha exemplar, anjo doméstico, cuidadora, fiel devota, ativista social, artesã, excelente cozinheira e amiga leal.

Sei que ela partiu preparada. Sei que foram feitas as suas vontades. Despediu-se dos parentes amados, inclusive dos pais. Passou alguns dias em casa, recebendo pessoas, despedindo-se. Contou aos filhos os seus desejos. No fim, ela, que não se achava forte, foi muito mais forte do que todos nós imaginávamos.

Registro que mamãe foi um anjo que, muitas vezes, de muitas formas, salvou-me a vida. Viveu para e pela família, e - não poderia ser diferente - durante o momento de maior sofrimento de sua vida, sua família esteve literalmente a seu lado, dia após dia, impressionando médicos e enfermeiras pela união ativa e altiva (nós enlouquecíamos os burocratas do hospital que tentavam limitar as visitas). 

Mamãe viveu uma vida repleta de honestidade, generosidade, responsabilidade, caridade, amor e fé. Odiava mentiras. Era inocente, de uma pureza infantil, muito meiga, tímida, não sabia receber elogios, e era sempre muito preocupada com os entes queridos. Mulher de outros tempos - eu nunca a vi dizer um palavrão.  Era daquele tipo raro de gente que a feiúra do mundo não conseguiu macular. 

Quanto menos eu merecia, mais me amava. Quanto menos eu acreditava na vida, mais insistia que eu não deveria parar. Tudo o que tenho de qualidade moral, de amor às artes e ciências, tudo que tenho de fé, devo a ela e a meu pai. 

Apesar da tristeza, e do luto, não me permito tragificar o que é fenómeno natural. Mamãe viveu, e viveu bem, como mulher honrada. Partiu, e partiu bem, sentindo a mulher amada que era, com família, com música, com coragem. Sua vida foi bela, e seu derradeiro momento também. Sou imensamente grato pelo que com ela vivi, sou grato de ter seu sangue, seus traços, seu temperamento caseiro e letrado, sua cor, seu conservadorismo. Foi uma grande mulher, uma grande mãe, uma esposa fiel e cuidadora, uma inconformada com a pobreza e a injustiça social (cursava Direito quando descobriu a doença...). Não deixou inimigos e não há neste mundo quem a maldiga. Por tudo isso, deixará imensas saudades e jamais será esquecida pelos que a amam. 

Obrigado por tudo, mamãe. 

17/05/22

Notinha #4: Quatro Anos e Vinte e Sete Notas Depois

Notinha pra não passar batido. Evento da vida afetiva: Morte. Morte Simbólica. Moça que já me foi da maior importância e que, refém do curso da vida, perdeu o significado. Há anos, tinha todo e total; hoje já não tem nenhum (o que poderia ter ela fez questão de jogar fora). Memória específica que me causa algum embaraço e crescente indiferença. Curiosidade autobiográfica. Ironia da vida. Notinha de rodapé.

Amei-a no passado e - sempre no passado-  desfrutei a lascívia de seus florescentes anos de beleza e ardor juvenil. Foram quase quatro anos entre o chororô e o nheco-nheco. Fiz planos. Deu em nada, tudo pelo ralo. Motivos muitos. Diferenças muitas. Insuperáveis. Culpa minha. Culpa dela. Passou o tempo e a lembrança deixou gosto amargo, passou mais tempo e passou também o gosto amargo. Hoje: gosto nenhum na boca, apenas espanto e perplexidade diante da efemeridade de alguns votos e afetos. Hoje: ela me despreza, o que é provavelmente o melhor que já me aconteceu. (Ao menos a mantém afastada).

Curiosos, estranhos, imprevisíveis os rumos desta vida. 

Durante quatro anos, tal memória rendeu-me vinte e sete notas (o dobro, talvez, se incluir as contidas em cadernos físicos, e mais um tanto caso incluia os e-mails não enviados); na verdade: bem mais que vinte e sete notas. 50, talvez. Talvez mais. Escrevi o suficiente. Agora passou a vontade, passou a inquietação.

Notinha última esta, para fins de registro apenas.

04/05/22

Como é Matar uma Pessoa? Qual é a Sensação?


 


Estive nas forças armadas e tive vários amigos fuzileiros navais que, no Haiti, a serviço da Marinha do Brasil, tiraram vidas de pessoas que eles jamais conheceram.

As respostas que vou dar para essa pergunta são baseadas nas conversas que tive com esses amigos e também em outros relatos que li.

Para começar, supondo que você não seja um psicopata e que esteja agindo em legítima defesa, ou a serviço do seu país, a sensação de matar uma pessoa, com uma arma de fogo, será complexa, pois ambígua.

Por um lado, no instante em que ela cair no chão, você se sentirá surpreso e aliviado. Pode ter alguma dúvida se ela está realmente morta, mas sua adrenalina estará tão alta que será difícil articular pensamentos racionais. Mesmo que você tenha sido treinado para isso, em seu primeiro homicídio, tudo que você vai querer é sair dali e ir para um lugar seguro. Questões morais não importam agora.

Porém, quando você acordar pela manhã no dia seguinte, vai se perguntar se foi tudo um sonho ou se você realmente matou alguém. E vai lembrar que matou.

A partir desse momento sua mente vai entrar numa terrível dissonância cognitiva, e você vai formular todas as possíveis respostas racionais para justificar o ato pregresso.

Esse é um momento crítico onde mudanças internas significativas podem acontecer. Também é o momento que vai determinar todas as suas futuras memórias e pensamentos sobre o ato. As pessoas dão respostas psíquicas variadas; mas para o caso dos fuzileiros, uma vez que é o trabalho deles, a resposta mais comum é um acréscimo de patriotismo, xenofobia e ódio generalizado ao inimigo, crenças advindas da necessidae de autojustificação.

Nesses casos, há o fato curioso de que muitos soldados geralmente são mais nacionalistas quando voltam da guerra do que quando vão para ela. Pode parecer estranho, mas faz todo o sentido psicológico: eles precisam acreditar que seu ato assassino era moral e que as mortes de seus amigos fizeram sentido, portanto, precisam acreditar que seus governos estavam corretos, que suas ações tinham um sentido nobre.

Se alguém tentar censurá-los pelo ato homicida, eles responderão algo como:

"Sabe o que eles teriam feito se nós não tivéssemos impedido? Era nosso dever intervir! Era necessário!".

Além disso, essas crenças permitem que eles continuem atuando na profissão. E até os encorajam a ser mais eficientes.


***


Por mais que a descrição acima seja razoável, ela é bem limitada, pois só serve para pessoas altamente treinandas para matar, como são fuzileitos e agentes das demais forças especiais.

Se não for o seu caso, se você não tem treinamento algum, mesmo que tenha uma arma de fogo carregada, as coisas serão muito mais complicadas. E os problemas vão começar bem antes da morte, mas justamente no "como matar".

Nesses casos, a melhor descrição que eu já vi é esta aqui :

Matar uma pessoa é fácil ou difícil?

Adivinha? As duas coisas.

Antes de tudo, esqueça sobre as cenas de filme onde as pessoas estão voando dez metros para trás quando você atira nelas com sua pistola. Tem muito exagero ali.

Quando você atira em um homem em uma curta distância algumas coisas podem acontecer.

Em alguns casos ele pode apenas cair (como se desligasse) e pronto, é isso. Ele se foi. E o mais interessante que posso dizer da minha experiência é o som da queda de um corpo. É algo como um grande saco cheio de alguma coisa molhada com pedaços duros. É basicamente o que o nosso corpo é.

É um som especial e se você ouvir ele vai lembrar pelo resto da sua vida.

Vamos dizer que um tiro bem posicionado, distância certa, quantidade de disparos, seu treinamento e calma fazem isso acontecer.

Em outros casos você pode se encontrar em uma situação onde o agressor está vindo para cima de você rapidamente, você continua atirando nele, a distância é bem curta e nada acontece… Ele ainda está chegando, você atira, atira, grita ou apenas pensa que está gritando, algo alto continua explodindo seu ouvido e você não sabe nem se sua arma está disparando, algo talvez esteja errada com ela, o cara está chegando mais perto, ele tem uma faca enorme… “Que !#$% está acontecendo? Eu vou morrer? Deus? Mãe?”

E de repente, ele cai.

Aquele cara foi difícil de matar? Sim, mais tarde você descobriu que atirou nele seis ou sete vezes mas não nos lugares certos. O cara era grande e a adrenalina fez ele esquecer da dor.

Os dois exemplos são experiências reais. Existem muitos fatores que podem entrar em jogo nisso.

Então para responder a pergunta deste tópico eu sugiro uma fórmula simples. Se você for forçado a matar alguém, considere o fato de que uma série de fatores precisa estar de acordo para você conseguir isso, mas se está em uma situação onde alguém está tentando te matar, aja como se você fosse muito fácil de morrer.

E então? Curiosidade saciada?

Tente não matar ninguém, meu caro. Mas, se precisar fazê-lo, saiba muito bem o como.


...

Texto originalmente publicado no Quora

22/02/22

Foi-se o Comentarista



Imagino que os amigos de mesma geração tiveram experiência semelhante. No meu caso, aconteceu assim: sentado no sofá da sala, acompanhando meus pais enquanto assistiam ao Jornal Nacional (evento rigidamente tradicional para famílias brasileiras dos anos noventa), eu ficava deslumbrado e perturbado quando, em algum momento do noticiário, surgia um senhor grisalho e muito eloquente; que falava dos principais eventos com comentários irônicos, certeiros, perversamente bem-humorados e espirituosos.

Pré-adolescente, eu não entendia muito, mas catava, numa frase ou em outra, um deboche, uma sátira, um pastiche. Notava que ali havia humor e achava estranho, pois contrastava com a sisudez do jornal. E não era o humor que eu conhecia. Era algo novo, mais refinado.
Esse curioso comentarista tinha nome: Arnaldo Jabor.
Mais tarde, soube que ele era um figurão da cultura nacional. Participou do Cinema Novo, ajudando a fazer história num período de grande efervescência da cultura brasileira. Como colunista, antes de se focar no mundo político, entreteve e ilustrou milhares de leitores durante décadas. Publicado semanalmente em 23 jornais, esbanjava crônicas culturais engraçadas, inteligentes e enriquecidas com referências à dramaturgia, cinema, pintura, música, quadrinhos, literatura e história. Há em sua prosa o olhar desiludido de um ex-militante comunista, mas também a confissão cínica de quem viveu nossa história; e, para não enlouquecer, fez tragicomédia com nossos personagens e enredos quotidianos.
Certo ou errado, sempre culto e opinativo, era uma mente instigante.

25/01/22

A Morte do Guru



Morreu o véio lôco. Pela erudição e erística, era interessante como ensaísta heterodoxo. Ao reviver o anticomunismo mais caricato e tacanho, digno de um Carlos Lacerda, o Guru da Virgínia fez mal danado ao jornalismo político brasileiro. Sionista declarado, Olavo chegou a dizer que muitos judeus ricos estavam envolvidos com Nova Ordem Mundial, e denunciou o infame George Soros, o que surpreende.
Certa vez, foi condescendente com o Integralismo, dizendo que ter pertencido ao movimento não macula o passado de ninguém, opinião que lhe rendeu a ridícula acusação de antissemitismo, feita pelo ridículo Intercept.
Em artigo para o seu excelente blog Matemática e Sociedade, o físico Adonai Sant'Anna, comentando uma entrevista antiga do ensaísta, escreveu que Olavo conseguia misturar uma descrição precisa e inteligente da situação educacional brasileira com opiniões problemáticas e nonsense.
De gênio desequilibrado à doido varrido, de místico iluminado à agente da CIA, as opiniões sobre Olavo são tantas e tão diversas que só confirmam a complexidade do sujeito. Erudito de personalidade cativante e belicosa, tido por alguns como líder de seita, Olavo foi uma espécie de Chacrinha intelectual da Nova Direita: comandou um programa bizarro que influenciou grandes setores da cultura brasileira.
Essencialmente um anarquista místico que se fez conservador, Olavo formou-se na tradição intelectual do entre guerras - que incluia pensadores como Arthur Koestler, Curzio Malaparte, Rene Guenon e Aldous Huxley (foi provavelmente à partir de Huxley que chegou em Guenon) - e na escola do Realismo Fantástico dos franceses Jacques Berguier e Louis Pauwels, veiculado pela famosa revista Planète.
Revista que, aliás, teve uma versão nacional - "Planeta" - para a qual Olavo, ao lado de Paulo Coelho, chegou a colaborar. Tenho a edição que uma ex-amiga furtou da Biblioteca da UnB para me presentear- sabia ela que eu era fã da revista e leitor de Olavo -, nessa edição há artigo do ex-astrólogo sobre Cristianismo Esotérico, onde ele faz seus primeiros comentários públicos da obra de René Guenon e, de passagem, menciona que os conhecimentos de Dante Alighieri sobre alquimia árabe foram expressos na Divina Comédia.
Sempre atraído pelo bizarro e pelo heterodoxo, ao longo dos anos recorri à erudição arcana de Olavo e me vi seduzido por seu carisma galhofeiro e depravado. Mas não tardei a ver - certamente com a ajuda de amigos, como o Marlos Salustiano e o Hugo Motta - que a influência do homem era nefasta.
Uma vez, em casa de amigos hipsters, feministos e desconstruídos, citei o nome maldito. Os presentes emudeceram, o ar tornou-se aspero, o chão tremeu, nuvens negras subiram aos ceus, faltou o teto cair: e então, para minha surpresa e espanto, os presentes me olharam como se eu acabasse de confessar o estupro de minha genitora.
Noutra ocasião, na Baratos da Ribeiro (o tradicional sebo alternativo do Rio de Janeiro), em roda de intelectuais mesmo sem ser um deles, descobri que o Maurício Gouveia, o icônico dono da loja, também havia lido e criticado os livros do guru. Conversamos a respeito das reações exageradas à obra do Olavo, e os méritos e deméritos da mesma. Logo alguns presentes na roda fizeram aquela carinha de nojo. "Ah, não. Olavo não!" alguém bradou.
É sempre assim, o que talvez seja compreensível. Todas as opiniões sobre Olavo têm algum mérito, porque o homem era tudo isso ao mesmo tempo. Não era um todo coerente. Era uma dessas misturas impossíveis que só o Brasil é capaz de fabricar.
Com a morte de Olavo e o favoritismo de Lula na disputa eleitoral deste ano a Nova Direita perde força. O Olavismo era um de seus pilares. Resistirá o Olavismo sem Olavo de Carvalho? Em carisma e erudição, não há nenhum discípulo que se equipare ao mestre. O que tem mais chances é Ítalo Marsili, mas este peca pela arrogância, sempre ostentando seu vínculo a uma família de passado aristocrático, seu público é menor e em grande parte vinha pelo Olavo. Quanto aos filhos do guru, o mais inteligente é Luiz Gonzaga de Carvalho Neto (o "Gugu"), mas este é bem menos político e mais esotérico; e é muçulmano, não católico.
De minha parte, creio que o Olavismo não morrerá com Olavo. O que é vil e equívoco tende a perdurar entre os homens. O mais provavel é que continuaremos ouvindo as ideias estranhas de Olavo, mas através de outras faces e vozes. O exército de papagaios olavetes fará a única coisa que sabe fazer: repetirá Olavo. Mas sem o charme e o estranho carisma do mestre.
Para o bem ou para o mal, Olavo deixa este mundo para entrar na História. Foi o homem que ajudou a enlouquecer um Brasil que já não era muito são. Ajudou a eleger o demente retardado que usurpa a faixa presidencial e presta continência à bandeira estadunidense.
Olavo de Carvalho foi um homem carismático, inteligente, manipulador e perigoso. Que sua morte inaugure uma era de decreptude aos movimentos que ele ajudou a alimentar.