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20/04/22

Esquizofrenia Afetiva e Impermanência


JHN NES
John Nesh e seu grande amigo imaginário. Cena do filme Uma Mente Brilhante.

 

Ao contrário do que normalmente se supõe, a perda do senso de realidade não é o que distingue os loucos dos sãos, mas justamente o que os aproxima.

Usualmente, o louco é caracterizado pela total ou quase total perda do senso de realidade. O homem comum, contudo, é caracterizado pela  perda sempre pontual e parcial desse senso; perda essa que - diferente do caso do louco - não chega a impossibilitar as atividades do dia à dia, mesmo produzindo grandes angústias e confusões no espírito.

Vejamos: o homem comum é levado, pelo hábito ou pela inércia, a crer na realidade dos laços afetivos que cria tal como é levado a crer na realidade do vento ou das árvores. Na infância, se bem educado, ele aprendeu que o destino das coisas naturais é a finitude. Ele sabe que os ventos mudam de direção, sabe que as árvores morrem. Contudo, por algum motivo, quando os laços afetivos parecem fortes e poderosos, ele quer, ele deseja, ele espera que durem para sempre. Pior: ele conta com isso. Diz frases tolas e, inadvertidamente, em discursos apaixonados, faz uso do "para sempre" ou "de até que a morte nos separe". Ele faz  planos. E sonha. De tal modo que a ilusão se agiganta, tornando-se alucinação. Ele alucina na intenção de fazer perene um estado de coisas que, assim como tudo o que existe, está fadado a destruição.

É quando o laço subitamente se rompe, por um jorro qualquer de realidade inesperada - não é preciso a morte para separar, a realidade já basta - que ele vê a ilusão esquizofrênica ir pelos ares. O que parecia real e perene já não é mais. A realidade concreta, cruel, imprevista, atual, golpeia, viola, zomba do que ele julgava a realidade efetiva. E pela primeira vez o homem comum se sente obrigado a indagar-se sobre a natureza das coisas, sobre a natureza da realidade, das relações, dos afetos. Ao refletir sobre o contraste entre a realidade esperada e a realidade vivida, chega, enfim, à metafísica. Levanta questões: "Que é, afinal, a realidade? Que devo esperar dela? Como posso ter me iludido tanto, julgado real o que era imaginário, julgado perene o que era momento?"

Se bem educado, ele se lembrará de Heráclito, lembrará a máxima da impermanência, lembrará que "tudo flui". Ou talvez - mais provável- vá lembrar da canção de Lulu Santos: "...nada do que foi será/ do jeito que já foi um dia/ Tudo muda/ Tudo sempre mudará...". Se for dado a narrativas orientais, lembrará do princípio do "Tao". E talvez, como Proust ou como todos os grandes memorialistas, ficará obcecado pelo tempo, pelas interações humanas, pela natureza ilusória das coisas. Dará algum sorriso de suas tolas pretensões de juventude, quererá ter aproveitado melhor determinados momentos, dito certas coisas a certas pessoas.

Mais tarde, com o passar dos anos, vacilará em suas memórias. Voltará a duvidar do que foi real, do que pareceu real. "Ela me amou?" "Foi minha amiga?" "Era tudo ilusão?", "O que não existe mais, existiu algum dia?". Mas já não dá mais para saber. É tarde demais para saber. Nunca foi possível saberNunca será. Ele então aprenderá que a realidade nunca é óbvia e que sempre há algo de esquizofrênico nos afetos: no início você acredita neles, julga poder provar que  existem. Mais tarde, contudo, sabe perfeitamente bem que são ilusões, tudo coisa da sua cabeça.

Nas palavras dos Titãs "...Eu aprendi/ A vida é um jogo/ Cada um por si/ E Deus contra todos...."

Quando se trata das relações humanas, a única certeza que se pode ter é a da impermanência. Todo o resto é ilusão e esquizofrenia afetiva.

07/03/22

Adeus, Mérlin...


Mérlin contemplativo, depois de algumas leituras.

Apesar de gostar de animais, eu não queria um gato. Assim, ao morar com meu querido irmão, Eliseu Ramalho, eu não tinha pretensão nem interesse de criar um bichano. Criar também significa cuidar, e eu, egoísta, não simpatizo com a ideia de dedicar-me à vida de outrem, seja gente seja bicho. Mas aconteceu. Quem banca é quem manda, e meu irmão, que me bancava, decidiu que criaríamos um gato. Decisão tomada, não havia o que discutir: criaríamos um gato.

Ganhamos uma gata preta, filhote de duas ou três semanas. Nada sabíamos sobre gatos. Primeira descoberta: eles fazem um estranho barulho com a garganta quando se sentem seguros e confortáveis com os donos, chama-se ronronar. Segunda descoberta: eles adoram camas. Terceira: eles mordiscam e arranham tudo enquanto crescem. Quarta: eles odeiam água. Quinta: de início eles acham que podem voar, mas, depois de cair do terceiro ou quarto andar, descobrem que não podem. Sexta: eles são tão famintos por peixes que podem pular em poços, atraídos pelo movimento e cheiro dos bichos. Sétima: para leigos, gatos e gatas são praticamente indistinguíveis nas primeiras semanas, o que, em nosso caso, fez ascender a polêmica. Nossa gata - Morgana - seria, afinal, gata ou gato? O tempo nos ensinou que era, na verdade, um gato. E assim Morgana virou Mérlin, o primeiro gato transgênero da história felina mundial.

Depois, veio a mudança. O mano foi morar mais perto do trampo e eu mais perto dos pais. Como fiquei numa casa com quintal, e tinha mais tempo livre, o gato veio comigo. Eu não queria, mas era tarde demais. O bichano já me havia cativado. Agora seríamos só eu e ele.

Não foi fácil. Gatos gostam de rotina e estabilidade, e eu sou mais desorganizado que o próprio caos. O coitado sofria comigo. As vezes eu passava dias fora e ele tinha de se virar. Quando eu voltava, lá estava ele, todo lanhado das brigas com os gatos da vizinhança. E lá ia eu, fulo da vida, cuidar. Ligava para o mano, explicava, pedia compaixão, dinheiro, ajuda, ânimo, apelava ao seu instinto compassivo e afetuoso, ao seu carinho pela natureza e pelos bichos. E ele, irritado, me intimava a cuidar do bicho como se minha vida dependesse disso.

Logo vi no gato um argumento para extorquir meu querido e exemplar irmão, o que fez minha afeição pelo bichinho crescer. De lá pra cá, mais de um ano, Eliseu Ramalho foi extremamente gentil e custeou 99% das despesas com a pequena pantera, ao que sou grato. Mês sim, mês não, o mano vinha visitar o gato, ver como estava, criticar-me pelos maus tratos.

Maltratei, é verdade. Dava-lhe, ocasionalmente, umas bicudas, uns gritos de psicopata, chamava-o de merdinha, idiota, carente, imbecil, burro, lerdo, mimado; jogava-o a uns dois ou três metros de altura, deixava-o sem comer por pura maldade, e fazia seu banho durar mais tempo apenas para deleitar-me com os gritos de horror do felino em protesto. Mas apesar de meus traços tendentes ao sadismo, confesso de todo o coração que eu amava aquele bicho. Vezes houve em que ele dormiu junto a mim, em que o carinhei efusivamente e abundei em afagos. Se em alguns momentos o furor me arrebatou, creio que os muitos outros de animação e carinho compensaram. Prova disso é que o gato jamais se mostrou agressivo diante de mim. Quando raivoso, chegou a mostrar os dentes ao meu irmão, a mim, nunca (talvez porque soubesse que se fizesse eu o espancaria na hora).

Com o tempo e os estudos, eu lhe devotava cada vez menor atenção. Por isso Mérlin, que foi criado em apartamento e sem contato com outros gatos, já vinha sofrendo tédio demasiado, o que lhe gerou uma psicodermatite: lambia-se excessivamente, retirando os próprios pêlos, sinal de stress elevado. Concluímos que era melhor doá-lo. Papai, que conhece todo mundo na cidade, encontrou interessado. Ontem, levou Mérlin para sua nova casa. Hoje, já sinto falta de seus miados e grunhidos.

Obrigado, Mérlin; você foi um bom amigo. Agora, ficarei por aqui, sozinho... e sentirei saudades.

Vai o gato, fica a homenagem registrada em vídeo:


05/01/22

Como Não Fazer Amigos, Não Pegar Gatinhas e Não Influenciar Pessoas


Como alguns adolescentes, aos treze anos eu era inseguro e assombrado pela interação social.  Mas com o terrível inconveniente de ser nerd: adorava quadrinhos de super-herois musculosos, revistas, programas de animes com japinhas gostosas, desenhos, filmes da Sessão da Tarde, do Cinema em Casa, Cine Band Privê e, muitas, muitas punhetas pela madrugada afora.

Tudo isso coisas que não me aproximavam nem das gatinhas nem da estima alheia.

 A stranger in a strange land.

A moda na época era fazer cursinhos, e o Inglês era a bola da vez. Sorteado, caí de paraquedas no cursinho gratuito do município. Eu detestava o idioma gringo, principalmente por conta de dificuldades na pronúncia. ‘Strawberry’ — Oh, céus! — como querem que eu fale esse treco? A possibilidade de ser zoado por mais uma inadequação me era quase tão assustadora quanto o apocalipse cristão. Pouco importava. Quem mandava em casa era o coroa. Lembram da ‘vondade geral’ de Rosseau? Era a vontade do meu pai.

No primeiro dia de aula, várias mulheres na turma. A maioria mais velhas que eu, o que achava menos pior. Na cadeira ao lado, Fernando, o garanhão da minha rua (‘Fernandinho’ para as meninas que, como a minha irmã, caiam babando por ele). Era meu completo antípoda: falso cristão, falso ‘cara legal’, sucesso com as mulheres, muito prestígio social (sei disso por que depois viramos amigos). E eu lá, ‘o carinha esquisito’, torcendo pra aula acabar antes que fizesse alguma vergonha.Mas quem disse que a vida é fácil? Não dei sorte; a teacher pediu que nos apresentássemos, começando por “hi, my name is… “ e depois seguindo no idioma de Camões.

Falar em publico, e falar inglês, na frente de uma dúziza ou mais de desconhecidos, recebendo todos aqueles olhares curiosos e julgadores. Enquanto os outros falavam, eu transpirava, nervoso. “Por que senhor ? Por quê ? Não tenho sido um bom cristão ? Tudo bem, eu prometo que paro de ver putaria, prometo!” Era uma prova, pensei. Eu tinha que passar. Se quisesse ser pregador, teria que aprender a falar em público um dia. O dia chegara. Enfim, aceitei meu destino, encarando o desafio com resignação e coragem. Chegada minha vez, fui confiante. Como todos antes de mim, levantei e falei.

Mal abri a boca e, em uníssono, todos gargalharam.

Demorei alguns minutos para perceber: o nervosismo foi tanto que eu falara ‘Hau’ ao invés de ‘Hi’. Com isso, entregara-lhes precisamente o que tencionava esconder; o fato de que eu era, naquela época e circunstâncias, um completo bicho do mato, comunicando-me tal qual um selvagem.



***


Nota do editor: a crônica acima  foi originalmente escrita no ano de 2015.

26/11/21

Parabéns ao Diabo


Pequei contra o Espírito Santo.  Pecado fatal, de morte. Venho, portanto, reconhecer a  vitória triunfal da besta. Vitória, uma vez mais, contra este  sorumbático escrevinhador. Este farrapos de homem,  quase  demônio  quase anjo, que aspira fazer o bem, mas só encontra volição para o pérfido,  o torpe,  o hediondo.

Homem? Homem não. Homem: São Jorge, que venceu o Dragão.  São jorge: masculino, guerreiro, forte, símbolo de fé e vitorioso. Eu, quando muito, sou menino. Sofro a inocência frustrada de um garoto tímido, deslocado, que jamais ousou sair do mundo das idéias. Exceto para o que avilta o espírito; as causas do horror e da decadência, da pestilência e da profanação.

Mas se há defesa, e se havendo defesa eu me possa defender, diria, proclamaria até, única e derradeira verdade: eu fujo do mal. Ele, porém, me alcança e derruba. Nas lutas morais combato inimigo maior e mais forte, que esmaga-me sem a menor piedade. Apesar de tudo, apesar das inumeráveis derrotas e humilhações, apesar de ter o nome na lista dos malditos, apesar dos tantos recomeços, jamais -jamais! - deixei de desafiar o inimigo. A cabeça segue ensanguentada, mas não curvada.

Pois digo e repito: não me curvo ante a besta. Teatral e cínico, faço-me cordial. Evoco-a, encaro-lhe os olhos sem fundo, feitos de negrume abjeto, cumprimento; dou-lhe os parabéns. Vencestes hoje, criatura vil. Amanhã, porém, será outra luta. Guarda teus planos e ardis. Amanhã, no ringue dos pequenos dramas do universo, mais uma vez, duelaremos.

E neste dia, que eu tenha a força e a fé de São Jorge, que  este farrapos de homem,  quase  demônio  quase anjo, que aspira fazer o bem, mas só encontra volição para o pérfido,  o torpe,  o hediondo... Que este sorumbático escrevinhador,  um dia, ao menos, vença o Dragão.

Até lá, saibam todos: o pecado há de dominar-me as ações, escravizar-me os sentimentos.

24/11/21

Covardia e Citação

Nayane L: bela, culta e descolada. Figura sempre presente em meu passado. 
 
Reconheço que, afetivamente, sou um covarde. Medroso, negligente e magistralmente covarde. Frequentemente penso que deveria dizer certas coisas a certas pessoas. Explicar, esclarecer, fazer com que me entendam, pedir desculpas pelos tantos vacilos, mostrar que apesar de ser um imbecil, eu gostaria de não ser tão imbecil. No entanto, raramente sou capaz de abrir a boca e, olhando nos olhos, dizer o que é necessário no momento em que é preciso dizê-lo. Minha opção é outra: sair de fininho e esperar que a pessoa me esqueça. É a covardia afetiva em ação. Como sei ser solitário e estou mais acostumado que a maioria, a solidão não me apavora - embora a ideia de solidão eterna certamente cause alguns arrepios. 

E assim este estranho blogueiro prefere a solidão a ver-se em situação de fraqueza emocional. Sente o maior pavor de que descubram seu lado sensível e consciente, já que no fundo não passa de um romântico sentimentalóide.

Essa característica medíocre, que é apenas uma das várias características medíocres que constituem a minha personalidade medíocre, faz com que eu abandone ou perca várias relações interessantes e inspiradoras. Especialmente com as mulheres. Especialmente com as mulheres que importam: as cultas, literatas, espirituosas, vivazes...

Foi o que aconteceu em minha amizade com a Nayane L. Estudamos juntos na Universidade, fomos amigos e trocamos e-mails durante dois anos. Um moça deveras interessante, uma amiga literata e  virginiana. Mais uma das boas amizades que perdi. 

Hoje senti vontade de escrever a ela. Ao invés disso, preferi visitar-lhe o blog, num exercício de nostalgia covarde. A última vez que visitei não estava disponível. Mesmo assim, quis visitar. Nayane é uma escritora, tenho certeza disso. Escritores precisam manifestar-se. Os blogs, sendo populares ou obscuros, cumprem essa demanda. 

Grata surpresa foi descobrir que o blog de minha (antiga) amiga está novamente disponível. Conferi alguns textos e fui procurar o trecho que mais me comove. Ei-lo:

"Até que ponto podemos nos sentir sozinhos? Outro dia, recebi um e-mail onde um amigo diz que quase todos meus textos soam como um grito desesperado de socorro. Talvez sejam. Talvez eu sempre cantarole músicas tristes, enquanto caminho pela vida com a pose de mulher bem-resolvida, pedindo um socorro baixinho. Acho que você nunca notou essa minha anatomia extremamente frágil e melancólica. Eu constantemente peço socorro, – aqui respondo ao meu bom amigo – um socorro não se de quê, não sei de quem, não sei de onde. Eu tenho um desassossego na alma que me engole inteira, sem pestanejar."

O amigo era eu.