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19/02/24

Secreto Quixotismo


Hermes, do escultor Giovanni Bologna

Disse-me que apanhara da vida. Tão fortes as pancadas que muito de sua sensibilidade poética foi perdida. Sem desistir de si, quer agora recuperá-la.

Eis aí, em resumo, a confidência de um velho amigo, também escritor - outrora jornalista, cronista, poeta e blogueiro. Amigo que me ensinou coisas importantes, que me inspirou e ajudou. Camarada irmão de letras, tanto que ostenta igual sobrenome, companheiro de fé, de dúvida e de voracidade cultural.

No momento da revelação, fui pego de surpresa, emudeci. Depois pensei, pensei e pensei. Agora, aqui, mais uma vez expondo minhas reflexões, eu o respondo.                                                    

Compreendo-te, meu bom amigo.

Esse desarranjo é sempre um risco à espreita. Para superá-lo eu penso que o escritor deve impor-se uma missão. Deve a todo custo lutar para manter vivo, em si e em seus leitores, um quixotismo: o desejo de elevar-se pela apreensão criativa das verdades e das belezas. Precisa ter a consciência que trava uma batalha. E deve tornar-se sagaz, pois, diante das inversões desta era, necessita disfarçar sua ânsia pelo superior, sua vontade de virtude e transcendência. Caso diga em público que busca uma linguagem superior, sagrada e divina, prontamente será condenado como reacionário. Terá sua honra questionada, será tiranizado, e, por não ver beleza ou verdade em toscas tentativas de linguagem inventadas ontem, será considerado um mestre do ódio, tendo a cabeça posta a prêmio. Vemos esse padrão repetir-se mundo afora.

Como fosse judeu marrano, o poeta destes tempos, querendo manter viva a sua tradição, cala e dissimula. Vive numa era em que não é permitido aos homens, nem mesmo aos poetas, contemplar as almas das criaturas ou espiar as vastidões dos céus, pois já não existe na imaginação dos mestres coisas como almas ou céus a serem contemplados. Há apenas matéria, moléculas, átomos, partículas. Tudo é fragmento, nada é absoluto. Assim dizem os doutos.

O poeta, tolo e sonhador, querendo-se algo mais do que a soma de seus neurônios, deve proteger-se. Numa sociedade que rejeita a beleza e a virtude, corre o risco de ver insuperáveis as suas dores e angústias; caminho que o levará ao suicídio. Ou, tão terrível quanto: pode testemunhar o clamor, proferido pela virtual tribuna dos ótimos cidadãos que jamais o conheceram, para que sofra um covarde apedrejamento público.

Ele demonstra, portanto, grande sensatez ao procurar resguardar-se. Mas deve tomar cuidado para não ceder ao desânimo, deixando esmorecer suas inquietações. Seu desafio, sua luta, é preservar o anseio pelo sublime, a eterna procura da alma das coisas. Deve cuidar dessa chama quixotesca como quem cuida de um tesouro precioso e frágil.

Confesso ao amigo que eu, menos tolo do que pareço, tratei de esconder do mundo o meu coração romântico, a minha alminha de pequeno poeta - perigosíssima para o mundo moderno, pois cheia de vontade de Deus e de Beleza.

Defensivo, pus em torno dela camadas de frieza, mordacidade, deboche e sarcasmo. Acossado pelo monstro que é a ignorância da vida social neste país, encontrei no escárnio a minha defesa. Aprendi a ser cruel nos atos e nas palavras, desmascarador na análise, niilista, simulador do mais profundo desprezo pelo mundo; sempre pronto a cuspir nas afetações dos pretensiosos e nas mediocridades dos conformistas.

Fiz antipático o meu exterior, mas não o fiz por completo. Fui deixando pistas sutis de que minha rabugem não era tudo, de que havia nas entrelinhas uma filosofia moral, uma sensibilidade, um anseio de virtude. E mesmo eu me passando por amargo, houve quem soube decifrar-me o caráter íntimo sensível, e até quem me acusasse de poeta.

Eu, evidentemente, negava, e em público negarei sempre essas coisas, pois sei que há multidões de embrutecidos que odeiam os sensíveis e que se esforçam por ridicularizá-los. Lembro bem do que ouvi sobre um dos meus primeiros poemas, o qual, meramente por ser poema, seria, conforme a opinião de um verme, prova de pederastia. Pois eu pensava, como sempre pensei, que ser poeta significa querer ser como o rei Davi - o salmista, o guerreiro corajoso, o mulherengo, o canalha assassino, miserável em todos os seus equívocos, mas, apesar disso, homem nobre e arrependido que pela oração buscava as virtudes faltantes. Pensava também, como ainda penso, que ser poeta significa querer ser como Fernando Pessoa, o fidalgo de alma múltipla; fascinante literato que, sendo humano e usando palavras humanas, falava com a eloquência do deus Hermes, e que mostrava ao mundo ter não uma alma, nem duas ou três, mas tantas quanto quisesse.

Busquei proteger-me de outros vermes falantes antes que obstruíssem meu ingresso na aristocracia do pensamento e na iniciação ao sacerdócio hermético. Astuto, compreendi que não poderiam destruir o que não eram capazes de perceber. Tornei-me um eremita; e, quando em contato com essa gente, fiz-me tóxico como arsênico, o quanto mais eu pude, para que vissem em mim apenas um desviante louco, agressivo, caótico e perigoso. As minhas aspirações superiores, a fim de dar-lhes sobrevida, eu tive de segredar, restringindo-as a confidência de uns poucos amigos. Somente assim logrei manter vivo esse meu quixotismo, a extraordinária ousadia da pretensão poética.

Por tudo isso, ao meu bom amigo eu aconselho: esconde com maestria a tua sensibilidade. Guarde-a codificada nas suas melhores palavras, faladas nunca, escritas sempre. Põe nelas as mais belas imagens, com seus mais elevados sonhos e utopias. Vai, dia após dia, no silêncio da noite, cultivando a leitura dos grandes poetas, rezando baixinho aos teus deuses, resguardando e nutrindo em segredo a tua sensibilidade. 

Cria um sonho impossível, uma utopia romântica, loucura íntima que te traga imenso prazer no imaginar. E quando notar que a capacidade de sentimento voltou, continue em segredo. Não faz alarde da tua imaginação poética, esse grandioso bem que há em ti. Deixa ela protegida, eternizada em arte nos teus versos ou na tua elaborada prosa, e põe cada uma das tuas obras de arte, grandes ou pequenas, num destino esotérico; como livro sagrado em baú enterrado, só disponível aos templários, em caminho só percorrido por gente estranha que é cada vez mais rara: gente que, como eu e tu, luta não apenas para ter alma, mas para expressá-la com a eloquência dos deuses.

08/02/23

O Artista entre a Técnica e a Inspiração



"Macróbio" - Arte original de Marlos Salustiano

Conhecendo as impressionantes obras dos artistas que conheço, não me atrevo a classificar-me como um. No entanto, devo ser razoável e concluir, a partir da minha longeva paixão e prática cultural independente na área, que tenho algo de artista, mesmo que menor, menor, menor.

E assim, por essa breve autoridade de "ter algo de artista", venho cá dizer que a noção de que há um dilema artístico entre o trabalho técnico e a inspiração súbita é, no mínimo, falsa. Sendo ideia perigosa, porque restritiva. 

Todos os elementos que entram na fórmula para compor um bom trabalho artístico são elementos da maior importância, indispensáveis. Não há inspiração que dê bom resultado se não houver, por parte do artista, o domínio técnico: e não há domínio técnico que transpasse o formalismo se não houver inspiração, honestidade, autenticidade e um pouco de "alma". É como o que eu já disse sobre Nick Cave: que é ateu, mas tem alma. 

Ao grande artista, ou ao que se pretende tal, quase todo recurso é igualmente bem vindo. Outro dia mesmo deparei-me com conselho de um autor que muito estimo: dizia ele que uma boa dica para escritores é aprender pintura, porque, na visão dele, é fundamental na ficção a concretude, o domínio dos pequenos detalhes da composição de uma cena, como de um quadro. Em outras palavras, a recomendação era aprender algo de outra arte para, com o aprendizado, enriquecer os recursos da sua arte. Ele falava em expansão, não em restrição. Restrição é palavra perigosa em Arte.

Além disso, a contemplação da habilidade técnica alheia nos pode inspirar e o estado mental de inspiração pode nos estimular o treino e desenvolvimento das habilidades técnicas. Lembro quando, em 2014, numa exposição no CCBB do Rio de Janeiro,  desfrutando a companhia do mestre Marlos Salustiano, apreciei, encabulado, o resultado dos estudos técnicos de Salvador Dalí. Achei absurdamente inspirador a devoção do pintor espanhol ao estudo das técnicas dos gênios que o haviam precedido. 

Ainda sobre minha inspiração, sei que a noite me inspira, que determinadas músicas conduzem-me a certo estado de espírito, que o isolamento me é favorável, e bem sei usar isso em minha produção, entram como recursos para alterar meu estado mental. Não fico esperando que uma bela filosófica vá cair do céu, com divina nudez, em meu quarto, a me inspirar e provocar tamanho êxtase que me leve a intuir os segredos do estilo perfeito. Nada disso: a ideia de inspiração como um estado espontâneo, recebido, passivo, quase divino, oriundo dos cantos sedutores das ninfas, é caricatura. Só alguém que já exercitou muito a técnica pode chegar a mais alta inspiração, e só quem dominou a técnica pode ir além dela. A inspiração é um estado ativo, que é estado a ser construído. E como tudo que é construção, dá trabalho.

Talvez a decadência da arte brasileira dita popular tenha se dado, em parte, justamente porque os artistas contemporâneos se deixaram levar pela má filosofia estética de que técnica e inspiração opõe-se. Passaram a considerar a arte como um assunto sentimental, subjetivo, de ordem privada, deixando de lado o estudo diligente da história de arte e o esforço de dominar todos os recursos possíveis.

O resultado dessa mentalidade vocês já sabem qual foi. Toda a gente o pode ver ecoar nas precárias manifestações que hoje chamam de "arte" e "cultura".

                                                                     ***

Nota do Editor: A primeira versão do texto acima foi originalmente publicada como resposta no site Quora.

01/02/23

O Artista e Sua "Loucura"

Há quem pense que os artistas são, quase sempre, pessoas instáveis, de mente fértil, porém perturbada, estando a apenas alguns passos de distância dos loucos.  Acontece que, apesar das aparências, isso não é bem verdade. Não é que artistas possuam maior tendência a ter transtornos mentais, a realidade é outra: artistas são corajosos o suficiente para expor sua alma via arte. Quem olha para dentro de si, por tempo suficiente e com a profundidade devida, sempre encontra imperfeições, transtornos, traumas, vieses. O artista trabalha isso, depura a si mesmo por meio de sua arte. Trata sua psique ferida com ela, que pode ser, entre outras coisas, uma forma de terapia espiritual. Tratando a si mesmo, expondo-se, ele se aprimora, podendo exorcizar seus males, enriquecer a cultura e o imaginário da humanidade. Colabora consigo e com o mundo.

Por isso, em geral, bons artistas se conhecem bem mais do que as pessoas comuns. Eles não são "mais doidos" que as pessoas normais (ao menos não todos, e certamente não a maioria). Ocorre que, diferente das pessoas normais, os artistas foram tão fundo dentro de si mesmos que perceberam o que neles era totalmente diferente, perceberam sua loucura, ou desajuste particular. Perceberam sua singularidade, e então, num segundo passo, a aceitaram. Depois deixaram de se intimidar com isso e pararam de fingir. Assim puderam abraçar a si mesmos e expressar isso sendo autênticos.

O que a maioria das pessoas chama de loucura na classe artística é apenas expressão da individualidade, singularidade e da autenticidade. É um abandono do fingimento. Como a nossa sociedade estimula o fingimento e o comportamento de manada, o homem comum estranha e acha esquisito quando alguém se permite ser autêntico e foge dos padrões.

Raramente conheci um artista que não tivesse consciência da sua loucura e dos seus dramas pessoais. Por outro lado, o que mais conheço é gente normal cheia de traumas e problemas mentais, mas sem consciência nenhuma disso; gente que vive na base do fingimento, do remedinho para camuflar as ansiedades e do autoengano. Gente que é incapaz de ser sincera até consigo mesmo. Essa é a tal da gente normal. Credo! Eu tenho até medo...

Aliás, sempre bom lembrar: normalidade não é exatamente algo saudável, pode ser uma doença. Se você é normal demais, por favor, vá se tratar:

Salvador Dalí manda lembranças:

Nota do Editor: como outras publicações deste blog, a primeira versão deste texto foi originalmente publicada como resposta no site Quora

27/07/22

Músicas Satânicas

Já dizia Raul Seixas: O Diabo é o pai do Rock!
É assunto velho e batido, mas nunca sai de moda. Sendo assim, vale algumas considerações.

Antes de tudo, vale esclarecer que algumas músicas se utilizam de referências satânicas mas não transmitem mensagens malignas. Exemplos de obras desse tipo são: “Mr. Crowley”, do Ozzy Osbourne (que faz referência ao mago britânico Aleister Crowley), “O Diabo é o Pai do Rock”, do Raul Seixas; e “Como o Diabo Gosta”, do bardo Belchior.

Tais músicas são “satânicas” apenas no mesmo sentido em que se poderia considerar a própria Bíblia Sagrada satânica, isto é: no fato de citarem e articularem narrativas em torno do demônio ou de figuras relacionadas a ele. Mas basta analisar as letras e o contexto de origem para compreender que não passam mensagens negativas.

Ainda nesses casos, seria razoável sugerir que vigora nessas letras um “satanismo” simbólico, romântico, que remonta ao mito de Prometeu, o titã que se rebela contra os deuses e ensina a arte de fazer fogo aos homens. Ou seja: trata-se da expressão poética e romantizada da rebeldia contra a autoridade. Sentimento que se torna perfeitamente compreensível quando consideramos a proposta de artistas oriundos da Contracultura.
[Black Sabbath- uma das bandas criadoras do gênero “heavy metal”, conhecida por explorar temas sombrios e sobrenaturais. O próprio nome da banda já revela muito, pois corresponde à “missa negra” das bruxas]

Saindo um pouco do romantismo, há também as canções mais sugestivas, aquelas que manifestam caráter obscuro, incorporando elementos do terror, do horror, do sobrenatural hostil e explorando aspectos mais sinistros do comportamento humano. As letras das canções desse tipo costumam incluir histórias e frases sangrentas, funestas, apocalípticas e de mau agouro. Dois bons exemplos são: “Number of the Beast”, do Iron Maiden e “Sympathy For the Devil”, dos Rolling Stones. A última contém trechos como:

Por gentileza me permita que eu me apresente
Sou um homem de fortuna e requinte
Estou por aí já faz alguns anos
Roubei as almas e a fé de muitos homens

E eu estava por perto quando Jesus Cristo
Teve seu momento de duvida e dor
Fiz a maldita questão de garantir que Pilatos
Lavasse suas mãos e selasse seu destino

….Prazer em lhe conhecer
Espero que adivinhem o meu nome, oh yeah
Mas o que lhes intrigam
É a natureza do meu jogo

…Assim como todo policial é um criminoso
E todos os pecadores Santos
Como cara é coroa
Basta me chamar de Lúcifer

…Pois estou precisando de alguma restrição

Então se me conhecer
Tenha alguma delicadeza
Tenha a simpatia, e algum requinte
Use toda sua educação bem aprendida
Ou deitarei sua alma para apodrecer 

Uma composição que certamente arrepiaria um crentão assembleiano.

Não podemos esquecer também daquelas canções cujo suposto conteúdo satânico não é óbvio, mas está camuflado ou diluído em várias referências simbólicas, engendrando diversas lendas urbanas. A mais clássica desse tipo é “Starways To Heaven” do Led Zeppelin. As especulações e análises de fãs sobre o significado esotérico dessa bela canção vão desde possíveis referências à lenda do Flautista de Hamelin, passando por obras do já citado Aleister Crowley (de quem o guitarrista Jimmy Page foi ardoroso fã) e fechando com, claro, possíveis mensagens satânicas que, dizem alguns, podem ser ouvidas quando o disco é tocado ao contrário.
[O fundador Anton Lavey, ao centro, e os outros membros da Igreja de Satan. Luxúria, vícios, egoísmo radical e sexualidade desvairada, eis os valores do satanismo moderno que eles defendem.]
Outra música que talvez fale de algo satânico é a música Hotel California, da banda Eagles. Acontece que o Hotel California, ao qual a banda se refere na letra, era nada mais nada menos que a sede da Igreja de Satan..

Intrigante, não? E tudo fica ainda mais suspeito quando se analisa a letra da música, pois ela fala, entre outras coisas, de uma missa sinistra num ambiente com mulheres, festins orgiásticos e itens de luxo. Realmente a conjuntura bem próxima do que viviam os membros da congregação.

E, finalmente, devo incluir minha categoria preferida: aquelas que são pesadas, sinistras e funestas, mas que não falam necessariamente sobre o Diabo. Dentre essas, a mais “satânica” que ouvi nos últimos tempos foi a canção ‘Bob’, do rapper ‘K a m a i t a c h i’. Pode ser descrita como uma baladinha sinistra que retrata as angústias de uma criança assombrada por um poltergeist. O ideal é ouvir à noite e a luz de velas. É uma linda canção. Muito recomendável.

Ouçam e apreciem:



Papai, tenho que te apresentar o Bob
Ele vem cuidar de mim enquanto tu dorme
Diz que eu tenho outras mamães, que tu esconde até da morte
E teu nariz fica branquinho usando algo que não pode

Não pode, não
Não pode, não
Não pode, não

….Meu amigo Bob diz
Que é um menininho corrompido
E toda vez que se acende a luz do quarto
Fica espantado, por isso todo esse caco de vidro

Bob diz que é filho de um anjinho que foi caído
E toda vez que se acende a luz do quarto
Fica espantado
Por isso ele inverte o crucifixo