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22/03/23

Um Milagre na Madrugada

Para cada homem e mulher, a vida social se mostra como uma perpétua Torre de Babel, povoada por gente de todo o tipo que, via de regra, não se entende de forma alguma. A comunicação, alma da vida social, desponta como drama absurdo no qual todos falam e ninguém se entende, porque tudo vira cacofonia e ruído, toda ideia de valor proferida termina obscurecida por conveniências, omissões, covardias, cooptações, ilusões, condicionamentos e desconfianças. Tudo o que é complexo acaba simplificado, diminuído, compactado e consequentemente falseado.


Rebelde, eu sonhei, pela honestidade de minhas pequenas letras, instigar mentes humanas com as minhas tímidas e pouco usuais verdades - porque a verdade, mesmo a minha verdade, que é a angústia da dúvida, e mesmo nas mãos de um tímido, é uma arma tremenda - mas me deparei com tanta barreira, tanta pedra no caminho, tanta incompreensão. Desiludido, por vezes deixei de acreditar na palavra, no entendimento e na virtude. Cheguei mesmo a divinizar o silêncio. E no entanto, por uma vontade que não se explica, fiz-me cético sobre meu ceticismo e lutei contra minha descrença. Dom Quixote filosófico, persigo agora uma miragem: a utopia da compreensão entre os homens, e nessa perseguição faço-me cronista, prosador, ridículo crente na palavra, no diálogo com a cultura letrada, seguidor do caminho da consciência, caridoso distribuidor de verdadezinhas íntimas, sensíveis, pessoais, grandes porque talvez irrelevantes.

Vida difícil essa, pois há nela mais solidão que comunhão. Entretanto, se nenhuma felicidade é completa, nenhum infortúnio pode sê-lo também. Mesmo a mais pungente solidão letrada não está livre de uma eventual contingência que traga o afeto luminoso, no qual, numa irrupção verbal imprevista, a compreensão se faz solene, abrangente, total. Ocorrência essa que considero verdadeiro milagre. Talvez pequeno, mas ainda assim milagroso. Foi isso o que, inesperadamente, me aconteceu. E para que os homens saibam ser possível, dou-lhes testemunho desse milagre que, passado na última madrugada, infundiu-me senso de fraternidade, uma paz, uma leveza, uma elevação, e mais do que tudo uma esperança em relação ao humano, como há muito este aqui não sentia.

***

A voz era doce, afinada, limpa. A inflexão, embora temperada por uma excitação mental que ela não pretendia esconder, sugeria uma sobriedade, uma perspicácia, uma inteligência felina e ferina. Como eu, aquela mulher tinha algo de fera, também ela nutria a rebeldia que viceja nos espíritos altivos, angustiados; os tipos sombrios e deslumbrados que sofrem a posse duma inteligência diabólica, uma falha na consciência que os impele a contemplar o abismo de todas as coisas. Muito consciente, ela sabia de seu valor, e no entanto, diferente deste, não tinha em si o pecado do orgulho. Verdade é que, para ela, a própria superioridade era apenas subproduto de sua disposição livresca, uma febre de filósofo humanista, de latinista medieval, de erudito e de polímata subjugavam-na: tinha a curiosidade voraz e expansiva de quem tudo quer saber - não apenas acreditar, ela queria mesmo é saber! - um amor inegociável pela vida letrada e contemplativa, pela investigação e pelo conhecimento. Admirava-se disso: a curiosidade abundante, raiz indubitável de toda aquela inteligência que ela, ruiva fatal, desnudava sem pudores para o amigo cronista.

"Falamos a mesma linguagem" ela me disse. Com seu discurso pródigo, lúcido, culto e refinado. Com toda certeza o resultado da busca intelectual de uma vida inteira, de seu esforço e persistência, que permaneceria com ou sem estímulos da cultura exterior. Era assim a minha amiga: em tudo diferente do tipo de mulher vulgar e pretensiosa que parece ter dominado a maior parte dos espaços públicos deste século. Época trágica, na qual muitas mulheres se empenham em condutas bárbaras tão ou mais escabrosas que as praticadas pelos homens. Mulheres que se apequenam ao buscar paridade com uma coisa tão débil e ridícula quanto um homem.

Distinta, superior, impondo a si mesma os mais altos padrões, os gostos mais refinados, a sensibilidade mais poética, a inteligência mais penetrante, dispondo de enorme paixão pelo mistério perene que é a origem de cada coisa deste mundo, e apesar de tudo, de tão grandioso espírito, de tanta sabedoria, era ainda jovem, tão jovem que me causava espanto.

Eu a ouvi deslumbrado. Por todas aquelas horas, quando não era eu a divagar, em cada segundo, mesmo nos silêncios, eu a ouvi, deslumbrado. Com desenvoltura ela me falava de Emil Cioram, Mírcea Elíade, Terrence Mackena, Georges Bataille, Carlos Castaneda e tantos outros. Quantos? Não saberia dizer. Parecia-me um verdadeiro exército de homens e mulheres criativos, heterodoxos e instigantes; uma galeria de malditos, místicos e rebeldes cultivada com carinho e afeição. A riqueza cultural daquela mulher, a sua grandiosidade de espírito, tão rara, tão preciosa, tão única, era como se os deuses, cansados das minhas reclamações sobre a debilitada constituição mental e moral da mulher pátria, me tivessem concedido um gostinho do paraíso. Como uma resolução de Apolo a me dizer: "Para que não te atormentes em demasia, tu, criatura piedosa e de espírito trágico, que a todos os deuses venera, e que em todos eles inspira compaixão, conhecerá uma ninfa e nela encontrará abundância na formosura e na inteligência". Assim disse o deus, assim aconteceu ao mortal. E ali, naquele telefonema, naquela madrugada, travei a mais íntima relação mente a mente, alma a alma, com a ninfa de cabelos vermelhos e olhos esverdeados, tendo mais que um vislumbre de sua irrevogável grandeza.

A conexão verbal que se enriquecia no silêncio da noite. Como passou rápido o tempo! Foi a primeira parte da noite e veio a segunda, a madrugada. Passou a primeira, passou a segunda, e nenhum de nós, nem eu nem ela, ousou largar o telefone. Aquele elo, aquela conexão, aquela cumplicidade, aquilo talvez não fosse tudo na vida, mas era, certamente, uma das coisas mais valiosas, mais significativas, mais belas e mais poderosas. Era o que eu buscava numa relação, ela também. Como faríamos na despedida? Como desligar? Não havia vontade, mas, em algum momento, seria necessário.

Foi somente ao raiar da aurora que nos despedimos, não sem antes denunciar ao outro a gratidão por aquela vivência. Naqueles momentos finais, a surpresa: a ligação durara até ali 7 horas e 30 minutos de conversa ininterrupta. Apesar da cifra, na história das afeições intelectuais não chegamos a bater o recorde. Nossa prosa daquela noite resulta cinco horas e meia a menos que as famosas 13 horas que Jung e Freud conversaram quando se encontraram pela primeira vez. Ainda assim, 7 horas e meia de conversa ininterrupta, sem sair dela entediado, parece-me uma comunhão deveras significativa. Além disso, eu e a ruiva ainda não nos encontramos pessoalmente. É nossa opinião que boas amizades e excelentes conversas são terapêuticas. Essa com certeza foi. Saí dela pensando na divindade de algumas mulheres, na grande comunhão que pode haver entre amigos, na magia da mútua e profunda compreensão.

Tudo isso eu digo e ainda provoco: o recorde dos mestres da psicanálise que se cuide: pois a ruiva e eu estamos no páreo.


21/09/22

Se for falar, que tal falar algo que preste?

Quem nunca?

Começo com uma indelicada - mas verdadeira - confissão. Gente com curiosidade  e horizonte intelectual pouco desenvolvidos me entedia bastante. Coisa de provocar bocejo e tudo, asseguro.

Digo isso porque, com frequência maior do que gostaria, vejo e ouço os outros macacos pelados conversarem sobre coisas banais de modo absolutamente banal. Vendo tal coisa, não consigo deixar de pensar na quantidade absurda de temas, abordagens e referências culturais  interessantes - que poderiam embasar ótimas e produtivas conversas - sobre tudo, inclusive sobre coisas aparentemente banais.

Há tantos livros interessantes, ou com uma abordagem tal, sobre quase tudo que se pode imaginar. Não só livros: há documentários, filmes, entrevistas, programas originais de TV, seriados, quadrinhos, vídeos de youtube, podcasts, fanzines, revistas, espetáculos teatrais, jogos, museus, músicas, eventos culturais, palestras, etc, etc, etc. Grande parte deles, pra nossa sorte, estão disponíveis na internet.

Tem tanta coisa curiosa, interessante, impressionante e impactante mundo afora que, não posso deixar de concluir: o sujeito deve ser muito limitado culturalmente pra falar apenas sobre o próprio umbigo ou sobre o que orbita o próprio umbigo, especialmente quando esse umbigo não é lá muito interessante.

Assim, na maioria das vezes, me parece quase impossível conversar com os macacos pelados sobre temas outros que amenidades. Coisa triste, já que aprecio conversas inteligentes sobre temas interessantes, ou, ao menos, conversas inteligentes sobre temas comuns. De fato, meu negócio é comunicação, especialmente a comunicação  instigante: uma notícia fascinante nova, uma análise intelectual que permita compreender algo melhor, um mistério, um conteúdo artístico relevante, um problema filosófico, um experimento, um insight, uma heresia, uma curiosidade sobre a vida de um gênio ou figurão histórico, uma teoria pseudocientífica  doida, uma teoria científica doida, uma reflexão, um debate,  uma anedota  esperta, em suma; qualquer tópico que enriqueça a conversa, obrigue a refletir e traga perspectivas que ampliem o horizonte mental e cultural.

Sim, eu sei que é pedir demais. Sim, eu sei que  ao reclamar das preferências discursivas dos outros macacos falantes eu estou "impondo" meus valores e meus gostos, assumindo que eles são melhores  que outros. Mas são mesmo, pô! Então o que resta fazer? Sei que o brasileiro médio gosta mesmo é do "papo fiado", da fofoquinha, da zuêira sem limites e da conversinha de boteco. Sei também que nós, os introspectivos, curiosos intelectual e filosoficamente, sedentos e ávidos por cultura (nas suas melhores formas), estamos imersos num pequeno subgrupo social, que engloba; intelectuais, jornalistas, artistas e aspirantes a tais cargos. Mesmo assim, sejamos francos, como não sentir arrepios assustadores com esse mar de futilidade e esse deserto mental que é a cabeça do brasileiro médio - especialmente o jovem?

Eu, por exemplo, sei bem o quão frustrante é (tentar) conversar sobre um conteúdo instigante (Que tal o paralelo entre matrix e a alegoria da caverna, a dualidade onda-partícula, a lógica paraconsistente e as limitações da lógica clássica...) e ver uma respostinha tímida, resumida na frase  reveladora "Nossa, eu nunca tinha pensado nisso!".  Pois é, não falam sobre essas coisas no BBB, jumentinho.

Pelo que vejo, se depender do sistema educacional e da [in]cultura de massas, que tem um bizarro privilégio pelo kitsch, as pessoas nunca vão pensar nas coisas mais interessantes e estimulantes que existem.

Dito isso, devo abrir aqui um singelo parentesis e dar um desconto as pessoas engraçadas e divertidas, que tendem a dinamizar a interação, mesmo quando são incultas. Mas já digo que acho muito melhor quando o interlocutor é culto e bem humorado. Na minha visão, são dois pré requisitos indispensáveis para uma boa, interessante e produtiva conversa. 

Se for pra abrir a boca, que seja pra dizer algo que preste! 

...

NTC (Nota de contextualização): crônica originalmente escrita em 2017 para o meu finado blog (oleitoragnostico.blogspot.com). Contexto: minha eterna falta de paciência para a pobreza de temas e interesses nas conversas populares.

17/05/22

Notinha #4: Quatro Anos e Vinte e Sete Notas Depois

Notinha pra não passar batido. Evento da vida afetiva: Morte. Morte Simbólica. Moça que já me foi da maior importância e que, refém do curso da vida, perdeu o significado. Há anos, tinha todo e total; hoje já não tem nenhum (o que poderia ter ela fez questão de jogar fora). Memória específica que me causa algum embaraço e crescente indiferença. Curiosidade autobiográfica. Ironia da vida. Notinha de rodapé.

Amei-a no passado e - sempre no passado-  desfrutei a lascívia de seus florescentes anos de beleza e ardor juvenil. Foram quase quatro anos entre o chororô e o nheco-nheco. Fiz planos. Deu em nada, tudo pelo ralo. Motivos muitos. Diferenças muitas. Insuperáveis. Culpa minha. Culpa dela. Passou o tempo e a lembrança deixou gosto amargo, passou mais tempo e passou também o gosto amargo. Hoje: gosto nenhum na boca, apenas espanto e perplexidade diante da efemeridade de alguns votos e afetos. Hoje: ela me despreza, o que é provavelmente o melhor que já me aconteceu. (Ao menos a mantém afastada).

Curiosos, estranhos, imprevisíveis os rumos desta vida. 

Durante quatro anos, tal memória rendeu-me vinte e sete notas (o dobro, talvez, se incluir as contidas em cadernos físicos, e mais um tanto caso incluia os e-mails não enviados); na verdade: bem mais que vinte e sete notas. 50, talvez. Talvez mais. Escrevi o suficiente. Agora passou a vontade, passou a inquietação.

Notinha última esta, para fins de registro apenas.

18/03/22

A Erva Que Não Era do Capeta - Um Breve Relato de Experiência Psiconauta

  

[Paulo Francis fumando um… cigarro…]

Certa vez, acho que no Manhathan Connection, perguntaram ao Paulo Francis quais drogas ele já havia usado, ao que ele respondeu:

"Todas. A melhor é speed ball. E maconha não faz mal algum".


Pois bem. Diferente do Francis, eu usei poucas drogas.

E só as usei quando já havia saído de casa, tinha já meu emprego, minha independência e, finalmente, era "o dono do meu nariz": livre para cometer a burrada que me desse na telha.

Mas devo confessar que, de início, drogas não me atraiam. Como fui criado numa cultura puritana, não via o entorpecimento com bons olhos. Lembro de, já adulto, um amigo ter me oferecido maconha várias vezes e eu sempre ter recusado, cheio de orgulho do que considerava minha pureza de caráter. E eu teria permanecido em tal postura não fosse um motivo de ordem puramente intelectual:


Um amigo me apresentou as teorias de Terence Mckenna sobre a influência dos psicotrópicos e enteógenos no desenvolimento da cultura humana e na origem das experiências religiosas. Em 'O Alimento dos Deuses', Mckenna, que era um etnobotânico e pensador bastante heterodoxo, especula sobre a tese de que o uso gradativo e irregular de determinados tipos de cogumelos alucinógenos podem ter levado o ser humano a desenvolver a linguagem e um nivel maior de autoconsciência, provocando nosso salto evolutivo.

07/03/22

Adeus, Mérlin...


Mérlin contemplativo, depois de algumas leituras.

Apesar de gostar de animais, eu não queria um gato. Assim, ao morar com meu querido irmão, Eliseu Ramalho, eu não tinha pretensão nem interesse de criar um bichano. Criar também significa cuidar, e eu, egoísta, não simpatizo com a ideia de dedicar-me à vida de outrem, seja gente seja bicho. Mas aconteceu. Quem banca é quem manda, e meu irmão, que me bancava, decidiu que criaríamos um gato. Decisão tomada, não havia o que discutir: criaríamos um gato.

Ganhamos uma gata preta, filhote de duas ou três semanas. Nada sabíamos sobre gatos. Primeira descoberta: eles fazem um estranho barulho com a garganta quando se sentem seguros e confortáveis com os donos, chama-se ronronar. Segunda descoberta: eles adoram camas. Terceira: eles mordiscam e arranham tudo enquanto crescem. Quarta: eles odeiam água. Quinta: de início eles acham que podem voar, mas, depois de cair do terceiro ou quarto andar, descobrem que não podem. Sexta: eles são tão famintos por peixes que podem pular em poços, atraídos pelo movimento e cheiro dos bichos. Sétima: para leigos, gatos e gatas são praticamente indistinguíveis nas primeiras semanas, o que, em nosso caso, fez ascender a polêmica. Nossa gata - Morgana - seria, afinal, gata ou gato? O tempo nos ensinou que era, na verdade, um gato. E assim Morgana virou Mérlin, o primeiro gato transgênero da história felina mundial.

Depois, veio a mudança. O mano foi morar mais perto do trampo e eu mais perto dos pais. Como fiquei numa casa com quintal, e tinha mais tempo livre, o gato veio comigo. Eu não queria, mas era tarde demais. O bichano já me havia cativado. Agora seríamos só eu e ele.

Não foi fácil. Gatos gostam de rotina e estabilidade, e eu sou mais desorganizado que o próprio caos. O coitado sofria comigo. As vezes eu passava dias fora e ele tinha de se virar. Quando eu voltava, lá estava ele, todo lanhado das brigas com os gatos da vizinhança. E lá ia eu, fulo da vida, cuidar. Ligava para o mano, explicava, pedia compaixão, dinheiro, ajuda, ânimo, apelava ao seu instinto compassivo e afetuoso, ao seu carinho pela natureza e pelos bichos. E ele, irritado, me intimava a cuidar do bicho como se minha vida dependesse disso.

Logo vi no gato um argumento para extorquir meu querido e exemplar irmão, o que fez minha afeição pelo bichinho crescer. De lá pra cá, mais de um ano, Eliseu Ramalho foi extremamente gentil e custeou 99% das despesas com a pequena pantera, ao que sou grato. Mês sim, mês não, o mano vinha visitar o gato, ver como estava, criticar-me pelos maus tratos.

Maltratei, é verdade. Dava-lhe, ocasionalmente, umas bicudas, uns gritos de psicopata, chamava-o de merdinha, idiota, carente, imbecil, burro, lerdo, mimado; jogava-o a uns dois ou três metros de altura, deixava-o sem comer por pura maldade, e fazia seu banho durar mais tempo apenas para deleitar-me com os gritos de horror do felino em protesto. Mas apesar de meus traços tendentes ao sadismo, confesso de todo o coração que eu amava aquele bicho. Vezes houve em que ele dormiu junto a mim, em que o carinhei efusivamente e abundei em afagos. Se em alguns momentos o furor me arrebatou, creio que os muitos outros de animação e carinho compensaram. Prova disso é que o gato jamais se mostrou agressivo diante de mim. Quando raivoso, chegou a mostrar os dentes ao meu irmão, a mim, nunca (talvez porque soubesse que se fizesse eu o espancaria na hora).

Com o tempo e os estudos, eu lhe devotava cada vez menor atenção. Por isso Mérlin, que foi criado em apartamento e sem contato com outros gatos, já vinha sofrendo tédio demasiado, o que lhe gerou uma psicodermatite: lambia-se excessivamente, retirando os próprios pêlos, sinal de stress elevado. Concluímos que era melhor doá-lo. Papai, que conhece todo mundo na cidade, encontrou interessado. Ontem, levou Mérlin para sua nova casa. Hoje, já sinto falta de seus miados e grunhidos.

Obrigado, Mérlin; você foi um bom amigo. Agora, ficarei por aqui, sozinho... e sentirei saudades.

Vai o gato, fica a homenagem registrada em vídeo:


27/02/22

Passado, Presente e Futuro deste Blog

 


Quando comecei este blog eu queria duas coisas. A primeira era fugir do Facebook; fugir da dinâmica dos debates perpétuos, pois desanimava-me a ideia de ter que justificar uma opinião logo depois de publicizá-la. Tenho pouca fé no debate racional e nenhuma vontade de convencer as pessoas -  ainda mais quando sei que estou certo e melhor informado.

O segundo objetivo era criar uma área de produção literária  pública e livre, mas descompromissada, ou apenas compromissada com minha dispersão cultural. Uma área para escrever sobre o que eu quisesse, com o texto que eu quisesse, do tamanho que eu quisesse, mas inicialmente orientada para crônicas e textos em formatos mais fáceis, do tipo que caberia bem num blog, coluna de jornal ou newsletter pessoal. Isso porque eu já havia constatado minha inclinação para a crônica e, coerente, desejava um meio adequado para fomentar minha produção.

Depois eu julguei que seria boa ideia aglutinar aqui meus textos espalhados em blogzinhos, redes sociais e cantos diversos da internet, fazendo desta página não apenas um blog pessoal, mas também um repositório dos textos interessantes que escrevi e publiquei online desde 2012, ano em que pela primeira vez um texto meu foi publicado em um blog (projeto feito com amigos literatos mas que acabou incipiente). Publicando os textos aqui eu posso editá-los e catalogá-los, assim ganho maior clareza sobre as temáticas e os estilos que marcaram minha produção literária até agora. O ritmo de publicação tem sido o de um texto por semana, a frequência mais fácil para manter uma rotina literária básica. 

Escrever é fundamental para minha saúde e organização mental. Não que eu seja muito são escrevendo, mas, sem escrever, eu provavelmente enlouqueceria. Há, portanto, uma orientação terapêutica neste meu vício, e o lado bom é que posso recorrer a ela sempre que um leitor mais culto e refinado praguejar contra a má qualidade de minha prosa. Acusado de mau escritor, escuso-me dizendo que não escrevo por talento, mas por necessidade. Conto sempre com a complacência do leitor.

Mas escrevo e, escrevendo, sinto também alguma ambição. O problema é que conforme a literatura perde prestígio e lugar na cultura, sendo a cada dia mais substituída pela vídeomania, meu pouco interesse em produzir alguma forma mais elaborada de literatura vai pelo ralo, e as ideias que tenho para contos  e ensaios já sofrem com o mofo resultante da pouca exposição ao sol. 

Além disso, minha vida está uma bagunça. Escrever exige recursos: concentração, livros para consultar e ambiente adequado. O meu perene desemprego me impede de comprar os livros e de dedicar-me a estudá-los. As contas e as mesquinharias burocráticas do quotidiano acabam se impondo, então, até que eu resolva essas questões mais práticas da vida, atuarei na crônica e em formatos mais leves, o que, aliás, já venho fazendo. É pouco, mas é melhor que nada, e ao menos me impedirá de enlouquecer.

26/11/21

Parabéns ao Diabo


Pequei contra o Espírito Santo.  Pecado fatal, de morte. Venho, portanto, reconhecer a  vitória triunfal da besta. Vitória, uma vez mais, contra este  sorumbático escrevinhador. Este farrapos de homem,  quase  demônio  quase anjo, que aspira fazer o bem, mas só encontra volição para o pérfido,  o torpe,  o hediondo.

Homem? Homem não. Homem: São Jorge, que venceu o Dragão.  São jorge: masculino, guerreiro, forte, símbolo de fé e vitorioso. Eu, quando muito, sou menino. Sofro a inocência frustrada de um garoto tímido, deslocado, que jamais ousou sair do mundo das idéias. Exceto para o que avilta o espírito; as causas do horror e da decadência, da pestilência e da profanação.

Mas se há defesa, e se havendo defesa eu me possa defender, diria, proclamaria até, única e derradeira verdade: eu fujo do mal. Ele, porém, me alcança e derruba. Nas lutas morais combato inimigo maior e mais forte, que esmaga-me sem a menor piedade. Apesar de tudo, apesar das inumeráveis derrotas e humilhações, apesar de ter o nome na lista dos malditos, apesar dos tantos recomeços, jamais -jamais! - deixei de desafiar o inimigo. A cabeça segue ensanguentada, mas não curvada.

Pois digo e repito: não me curvo ante a besta. Teatral e cínico, faço-me cordial. Evoco-a, encaro-lhe os olhos sem fundo, feitos de negrume abjeto, cumprimento; dou-lhe os parabéns. Vencestes hoje, criatura vil. Amanhã, porém, será outra luta. Guarda teus planos e ardis. Amanhã, no ringue dos pequenos dramas do universo, mais uma vez, duelaremos.

E neste dia, que eu tenha a força e a fé de São Jorge, que  este farrapos de homem,  quase  demônio  quase anjo, que aspira fazer o bem, mas só encontra volição para o pérfido,  o torpe,  o hediondo... Que este sorumbático escrevinhador,  um dia, ao menos, vença o Dragão.

Até lá, saibam todos: o pecado há de dominar-me as ações, escravizar-me os sentimentos.

24/11/21

Covardia e Citação

Nayane L: bela, culta e descolada. Figura sempre presente em meu passado. 
 
Reconheço que, afetivamente, sou um covarde. Medroso, negligente e magistralmente covarde. Frequentemente penso que deveria dizer certas coisas a certas pessoas. Explicar, esclarecer, fazer com que me entendam, pedir desculpas pelos tantos vacilos, mostrar que apesar de ser um imbecil, eu gostaria de não ser tão imbecil. No entanto, raramente sou capaz de abrir a boca e, olhando nos olhos, dizer o que é necessário no momento em que é preciso dizê-lo. Minha opção é outra: sair de fininho e esperar que a pessoa me esqueça. É a covardia afetiva em ação. Como sei ser solitário e estou mais acostumado que a maioria, a solidão não me apavora - embora a ideia de solidão eterna certamente cause alguns arrepios. 

E assim este estranho blogueiro prefere a solidão a ver-se em situação de fraqueza emocional. Sente o maior pavor de que descubram seu lado sensível e consciente, já que no fundo não passa de um romântico sentimentalóide.

Essa característica medíocre, que é apenas uma das várias características medíocres que constituem a minha personalidade medíocre, faz com que eu abandone ou perca várias relações interessantes e inspiradoras. Especialmente com as mulheres. Especialmente com as mulheres que importam: as cultas, literatas, espirituosas, vivazes...

Foi o que aconteceu em minha amizade com a Nayane L. Estudamos juntos na Universidade, fomos amigos e trocamos e-mails durante dois anos. Um moça deveras interessante, uma amiga literata e  virginiana. Mais uma das boas amizades que perdi. 

Hoje senti vontade de escrever a ela. Ao invés disso, preferi visitar-lhe o blog, num exercício de nostalgia covarde. A última vez que visitei não estava disponível. Mesmo assim, quis visitar. Nayane é uma escritora, tenho certeza disso. Escritores precisam manifestar-se. Os blogs, sendo populares ou obscuros, cumprem essa demanda. 

Grata surpresa foi descobrir que o blog de minha (antiga) amiga está novamente disponível. Conferi alguns textos e fui procurar o trecho que mais me comove. Ei-lo:

"Até que ponto podemos nos sentir sozinhos? Outro dia, recebi um e-mail onde um amigo diz que quase todos meus textos soam como um grito desesperado de socorro. Talvez sejam. Talvez eu sempre cantarole músicas tristes, enquanto caminho pela vida com a pose de mulher bem-resolvida, pedindo um socorro baixinho. Acho que você nunca notou essa minha anatomia extremamente frágil e melancólica. Eu constantemente peço socorro, – aqui respondo ao meu bom amigo – um socorro não se de quê, não sei de quem, não sei de onde. Eu tenho um desassossego na alma que me engole inteira, sem pestanejar."

O amigo era eu.

30/04/21

Explicando os Termos

 


Ao caracterizar-me com o termo "escritor", faço-o num sentido meramente descritivo. Longe deste aqui pretender igualar-se aos grandes expoentes das artes literárias. Ocorre apenas que, de fato, escrever é  atividade recorrente e necessária em minha rotina. Escrevo. Sou daqueles que se sentem obrigados a escrever. É imperativo, não é escolha. Mas é também a atividade complementar a uma outra, a leitura, que também me sinto obrigado a praticar. Leio e escrevo. Sou, pode-se dizer, viciado em ler e escrever.

É verdade que não leio tanto e tão bem quanto gostaria, e também é verdade que não escrevo tão bem quanto gostaria. Porém, ao notar a calamitosa inabilidade textual de meus negligentes conterrâneos - que tudo sabem, menos o próprio idioma-, minha escrita (mesmo pobre e deficiente) assume ares de "passável": bem ou mal, consigo pôr uma palavra atrás da outra, uns pontos finais, umas vírgulas (geralmente erradas), procuro ser claro e fazer-me entender - e se essas são habilidades literárias, são as únicas que tenho. Assim, quanto ao que aqui faço, é-me impossível fazê-lo bem feito (fazê-lo-ia se pudesse). Infelizmente, falta-me conhecimento gramatical, lexical, semântico, sintático e, mais do que tudo, falta-me estilo. Aos poucos, com muita fé e labuta, pretendo superar tantas e tamanhas deficiências.

Do mesmo modo, ao considerar-me "em crise", uso o termo "crise" num sentido puramente descritivo. Por motivos variados, ando sempre em crise. Algumas duram segundos, outras duram anos. Todas, contudo, levam-me a refletir sobre a tragicomédia surreal e absurda que é a condição humana, que é o Brasil e que é minha vida. Tais reflexões levam-me a ler e a escrever, na busca de encontrar significado e compreensão.

Não sendo este o meu primeiro blog, também não é meu quarto ou quinto blog. Já iniciei e findei algumas dezenas de blogs, um mais fracassado que o outro. Em todos eles eu mantive a posição de que jamais deveria falar a meu respeito, minha vida particular e meus reais pensamentos. Não sou do tipo que aprecia exposição. Além disso, cultivo algumas opiniões polêmicas, e vivemos em tempos politicamente corretos, onde as pessoas perdem empregos e são difamadas por suas opiniões.

Com o passar do tempo fui percebendo que, por conta de minha vida instável, não conseguiria manter nenhum blog com posts periódicos que não tratasse, de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, dos problemas que me assolam. Claro que tal abordagem parece-me algo voltado ao próprio umbigo, exemplo de conduta medíocre. Mas , afinal de contas, o que eu poderia fazer? Isolar-me numa Torre de Marfim escrevendo apenas sobre meus interesses mais filosóficos e impessoais, se é que algum interesse pode ser impessoal, não seria boa ideia. Não seria sincero e eu não teria a motivação necessária. Portanto, é ideia descartada. Agora, precisamente agora, resta-me falar sobre o mundo que orbita meu umbigo.

Obviamente, por conta dessa mediocridade inerente, não posso ter grandes expectativas sobre este blog. E é mesmo provável que ele interesse apenas a mim, coisa que entendo e que já não me incomoda. Tudo que preciso agora é ser minimamente sincero e dizer o que quero dizer. Sem filtro e sem temas pré-fixados (apesar de que a crônica é sempre o norte, mas isso é gênero, não é tema...). Escreverei o que precisar escrever, refletirei sobre o que me sentir obrigado a refletir.

Não é grande, não é muito e serão apenas pequenas palavras, umas atrás das outras, com alguns pontos e vírgulas geralmente erradas. Mas serão sinceras. É pouco, eu sei. Mas, ao menos por enquanto, é tudo o que este pequeno e iniciante escritor - que por hora não passa de escrevinhador- pode oferecer.