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15/07/24

O Mais Difícil Exercício



Em certa noite, levado por um desses fluxos de memória involuntários, ele se lembrou do velho amigo Plácido. Dele há muito não tinha notícias. Por onde andaria? Era grato ao antigo amigo. Na escola militar, Plácido dera-lhe uma satisfação incrível: o melhor soco na cara que receberia de um amigo. Foi pura adrenalina. A cabeça tonteou, zonzo ele ficou. Poder-se-ia dizer que vira passarinhos: colibris, bem-te-vis, sanhaços. Sentiu-se como o Coyote ao receber na cabeça a bigorna endereçada ao Papa-Léguas.

Dera o primeiro soco, começando a briga; o segundo veio do Plácido, encerrando-a. Lembrava de vê-lo de costas, saindo, caminhando, magnânimo, certo do nocaute. Ia atrás ou deixava pra lá? Deixou pra lá, porque era o Plácido, era amigo. Briga entre amigo: esporte íntimo e elevado. Amizade só se prova verdadeira quando permanece após umas boas desavenças. Além disso, Plácido dera um cruzado de direita muito respeitável, demonstrara coragem ao bater num amigo.

Não brigar (ao menos uma vez) com um amigo era não ter um amigo. Violência moderada era expressão emocional tão rica, pura e verdadeira quanto um abraço. Devia ser vivida, explorada, manifestada. Por isso, adolescente, ele correra com a faca atrás do primo Tiago. O primo, seu melhor amigo de infância, era sempre o mais forte; então quis dominá-lo.

Também por isso - para dominar– golpeara Ricardo com um chute no íntimo; que o fez chorar, andar torto e recorrer à medicina doméstica que a mãe dominava. Por isso fora para cima do pai, fazendo-se livre da autoridade opressiva, provando que, por ama-lo, não temia lhe dar uns sopapos. Pobre do pai, o triste e alegre pai, a quem amava e continuaria amando... Por isso empurrou a mãe, defenestrou Renata, ameaçou Larissa, deu no Gilberto um soco que lhe arrancou um dente; e, pouco antes de uma crise de choro, trocou sopapos com o Maurício Antunes.

Era um tipo demasiado sensível, com uma expressão de afeto reativa e furiosa, definitivamente marcante; e por muitos era tido como bruto. Camila disse que a culpa era da "Lua em Escorpião" (e finalizou o comentário com um "Valha-me, Deus!"). Ele sabia que sua singularidade era difícil de entender, que tinha ímpeto agressivo e aos outros causava temor. Sendo assim ele procurava, no mais das vezes, evitar o amor, a companhia e o afeto. E na solidão cultivava a violência da palavra crítica, talvez sofisticada, mas não menos violenta.

Dos excessos se arrependia, mas não lhes negava a utilidade. Permitiram aos entes queridos conhece-lo em profundidade, assim aprenderam a amá-lo pelo que ele era - sem enganos e ilusões. Amando-o em essência puderam perdoa-lo, coisa que ele nunca pôde fazer por si mesmo. Ele, vendo-se capaz de tamanho barbarismo contra os queridos, soube-se imediatamente capaz de crueldades inomináveis contra os inimigos.


Fora seu Rito de Passagem.

Fez-se homem ao enxergar no coração a primitiva vocação do animal selvagem. Ferocidade de besta que se compraz na dominação; um partidário do confronto desleal, da humilhação alheia, da opressão sádica. Tropeçara na própria essência tirânica, o talento para pequeno bárbaro, a sensibilidade aguda rapidamente convertida em ressentimento e emotividade tóxica. O mal não vinha de fora, mas de dentro; ele era o mal, ele sabia-se o mal, e pior que isso: ele, as vezes, sentia-se forte ao ser violento. Era inimigo da paz e da prudência.

Teve fascínio e teve medo. Decidiu lutar contra o instinto. Estabeleceu regras. Primeiro, jamais repetir agressões aos entes queridos. Segundo, em qualquer situação, evitar a violência máxima. Terceiro, caso optasse pelo mal, direcionaria-o aos inimigos (neste caso com máxima violência).

Ele, que era um bruto, aprendera que violência pouca aliena, violência moderada educa e violência máxima embrutece. Por isso ouvia o próprio coração e expressava a pequena e média violência; deixava-as sair para vê-las melhor. Vendo-as; elevava a consciência e calculava sua inclinação destrutiva. Calculando, tratava de se prevenir...

Considerava tolos os homens que, tendo em si o mal, nada faziam para conhecer-lhe a extensão ou a profundidade. Como poderia um homem desconhecer seu mais íntimo inimigo? Não, não era correto. Não devia o homem fugir ao mais difícil exercício. Era imperativo medir cada centímetro do próprio coração como o agrimensor mede cada metro do próprio terreno. Era preciso investigar a própria alma, revirar o lixo ali enterrado. Urgente era encontrar primeiro o que é mal, porque está mais baixo e por isso está mais perto. Depois cultivar a melancolia da maldade, provendo-se da vontade de redenção que ela inspira, e daí então procurar, com afinco desesperado, o que há no homem de divino; a alma superior - mais alta, mais bela e mais distante.

Para ele havia neste mundo os homens que por Deus chegavam a Deus; mas havia também – e isto ninguém deveria negar – os estranhos homens que chegavam a Deus pelo Diabo. Deus certamente apreciava os primeiros, porém, como todo pai, era a redenção dos filhos perdidos – o drama maior da vida espiritual-, que mais envolvia e comovia o Criador. Como por água anseia a corsa; pela elevação do perdido anseia o Senhor.

Uma dúvida incomodava. Monstro amoroso que era: teria ele, algum dia, vergonha de seu drama? Por hora aderia ao caminho do meio: nem a vergonha nem o orgulho, antes a contemplação perplexa, a nota ponderada, o estudo minucioso do que carregava na alma. Mesmo o que era treva...

E assim, naquelas horas lunares, ele ia rememorando e refletindo; consciente de si e saudoso do velho amigo, que, com ajustada bravura, lhe respondera o pugilato em medida equilibrada, sem perder a amizade e o respeito. Ética distinta e masculina, por vezes incompreendida.

01/07/24

Lembranças de Uma Utopia Virtual


Samuel Fernando polemizando
                                             

Há alguns anos eu tive um perfil excluído pela moderação do Facebook. O feice diz oferecer ao usuário um espaço de discurso, mas seu verdadeiro objetivo  é monitorar as ações dos usuários para criar perfis de consumo precisos; e, com isso, otimizar algoritmos de escolha de anúncios personalizados. Todos sabem disso, e eu sabia na época, mas quis jogar o jogo perigoso da liberdade de expressão, testar os limites, até porque, ingênuo, eu não esperava o pior. Deu no que deu, e me arrependo, pois havia conversas interessantes no perfil. 

Uma delas foi com o professor Adonai Santana, que é um importante físico teórico do país, e discípulo de Newton da Costa, um dos nossos maiores filósofos da ciência. Na conversa perdida, o ilustre professor (que durante a Pândemia escreveu um esclarecedor guia de Matemática) disse que o meu perfil era um dos mais divertidos, e que comentara a meu respeito com sua esposa.

John Ramalho: um caso psiquiátrico.

                     

Outro que disse coisa semelhante foi o meu mestre e amigo Paulo Cesar Santos. Programador, físico, músico e professor de Ciência Política da UFF, nas palavras dele o meu (antigo) perfil faria muito sucesso se o público geral fosse mais inteligente (disse isso ou algo parecido com isso). Era, de fato, um perfil bastante irreverente. Meio tresloucado, as vezes de um humor pitoresco, geralmente maligno, anti-humanista, misantrópico, apaixonadamente anti-sionista, muito politicamente incorreto e as vezes de uma paranoia quase delirante, palatável apenas às mais altas mentes. Prova disso é que até mesmo a Natália Sulman, essa modesta musa maior do olavismo, chegou a curtir e comentar uma minha humilde publicação.

Mas o arauto maior, o grande entusiasta das Más Letras Ramalhescas, aquele que me conduziu ao Olimpo dos Intelectuais e Musas Letradas do Facebook, foi, certamente, o indefectível Samuel Fernando. Biólogo, neurocientista e polímata paulista que, por algum período, engajou-se no mais elevado ativismo cultural que a comunidade letrada da internet tupiniquim já testemunhou. 

O perfil do Samuel Fernando – “Samuca” para os íntimos – era a Meca dos Pedantes. Todo mundo que achava que sabia muito (ou que desejava saber muito) acabava chegando lá, e, entre o deslumbramento e a inveja, descobria que o Samuel sabia mais; muito, muito mais

No que ele postava, e sobre o que ele postava, comentavam físicos, matemáticos, filósofos, biólogos, autistas com hiperfoco em ciências, altos QIs, professores, psiquiatras, psicólogos, neuropesquisadores, literatos, marxistas, olavetes, engenheiros, programadores; gente de todo o Brasil e de fora dele também. Era uma verdadeira utopia de gente articulada, que falava coisas com sentido e com algum (ou muito) conhecimento. E o Samuel, para o meu espanto e prazer, compartilhava, vez ou outra, algumas das minhas postagens. Logo pessoas começaram a me adicionar. Mulheres, inclusive. Era bom. Foi legal. Mas acabou. E acabou mal: com meu perfil excluído.


Diagnóstico rápido: "ele é doido".
       

Lembro carinhosamente desse período, não apenas por minha pequena popularidade de subcelebridade letrada de alto nicho, mas principalmente pelos amigos que fiz, as pessoas legais, divertidas e inteligentes que conheci. 

Gente como o querido Mateus Marcuzzo, engenheiro de software brasiliense e leitor filosófico com um coração nobre e ético, alguém cuja sensibilidade humanista exerce sobre mim um inegável efeito positivo. A Maria Cristina Batoni Abdalla Ribeiro, uma das maiores físicas do país - amiga de figurões como Marcelo Gleiser. Maria tornou-se uma amiga querida, uma fonte de inspiração e de bons conselhos. Cheguei a me encontrar com ela na UnB. 

Também o brilhante Stanis Lucksys, um expert em Linux que chegou a desenvolver seu próprio sistema operacional. Autodidata no que quisesse, Stan era também filósofo, músico, intelectual e um talentoso cronista. Amigo querido e cuja identificação foi grande e mútua. Stan cunhou para o nosso grupo de amigos a divertida alcunha de "Os Irresistíveis"

Enriquecia-nos a presença da Isa Murphy, apelidada “Lady Murphy”, uma goiana bela e cativante, melancolicamente solitária, falava francês, apreciava HQs, o gosto musical excelente, alma compatível, flertamos, claro. 



Havia também o sempre ponderado, lúcido, filosófico e divertido Marcus Vinícius. Psicólogo erudito, Marcus vive a combater os excessos e equívocos do identitarismo progressista. Por sua prosa bela, sóbria e profunda, considero-o um dos melhores escritores e comentaristas culturais do país. Tinha o Pedro Luiz Borba, de grande pendor argumentativo e estimulante inteligência, com quem travei alguns respeitáveis debates.

E a Carol Sorokin, que namorava o Stanis, mas que eu sonhava em ter para mim, porque era brilhante, linda e amiga. Também a queridíssima Paloma Rangel, de quem eu já falei numa carinhosa crônica e de quem pretendo falar ainda mais em outras. E não posso esquecer da doutora Ana, uma médica autista fascinante, com ouvido absoluto, inteligentíssima, a quem eu gostava de confundir com contradições, ironias e afetações de insanidade. Ela, a bela doutora de olhos hipnotizantes, fazendo o corolário de nossa divertida interação, proferiu a que talvez seja a melhor descrição que já fizeram deste blogueiro. Além desses amigos, havia outros cujo contato era menos frequente, mas de inegável enriquecimento mútuo. 

                                 Richard Nixon sorri no inferno..

Compartilho aqui as palavras da doutora Ana, pois até hoje me deliciam e divertem. Disse ela uma frase que, por seu poder de síntese, deverá constar nos comentários dos meus críticos futuros: “John Ramalho é para mentes privilegiadas”.


***

Abaixo, publico um inesquecível presente da Carol Sorokin. Gaúcha e psicóloga formada pela USP, a Carol era também enxadrista, poliglota, musicista e escritora. Sua aparência era tão sublime que ela evitava as fotos. De fato, Carol era praticamente uma sósia da Natalie Portman

Lembro dela mais pelas ótimas conversas madrugada afora, pela mente afiada e pela foto peculiar do perfil, que mostrava apenas dois pezinhos envoltos em meias de lã vermelha. Mas incluo aqui o fato da sua beleza, que era notável, e que ninguém poderia negar, ou esquecer. Nunca falei disso com ela, nem sequer um elogio, e conto a vocês apenas porque é verdade e ajuda a dimensionar as muitas qualidades dessa moça impressionante. Quando ela cismou de homenagear as pessoas que lhe eram queridas, fui um dos contemplados, e ganhei dela um tocante discurso: 

                                

O Homem Que Ri


Que as pessoas são todas diferentes todos dizem! Todos parecem ter decorado isto como se fosse a tabuada do um, mas na prática pouca gente compreende o significado dessa afirmação. Que existem problemas cuja a solução está fora do nosso alcance, seja na vida pessoal, ou em termos científicos, isso já é algo que nem todos sabem.

Ele sabe tudo isto! Ele manja de todas as coisas que não importam para quase ninguém, mas que na verdade são as coisas que mais importam para quem não é ninguém, é muito alguém!

E eu converso com ele e vivo elogiando terceiros e ele talvez não saiba que também falo dele pelas costas. Todas as suas qualidades! Mas só depois de minuciar cada mísero defeito, claro...

O que faz ele especial é que não é vaidoso, soberbo nem invejoso, é um romancista, filosofista, cronista, psicologista e até letrista, em crise com seu próprio lado romântico, que ele desesperadamente tenta esconder e não consegue. Mas nem todos percebem, só nós, os outros românticos. Pois ele é um personagem de um livro do Victor Hugo com ideias do século XXIII.

Assim, ele é bem humorado e carinhoso com as palavras. Com as palavras! Não necessariamente com quem ele as dirige. Tem um ar sedutor, dispendido para com as meninas inocentes em fóruns de literatura e filosofia, e é do tipo que escreve cartas e não envia. Depois, ainda reescreve para não reenviar!

Tem um carisma incomparável e não há quem não fique bravo com tamanhas bobagens inteligentes que ele fala. O carisma dele consiste em ser belo e imagético, mas só até certo ponto e até certa hora, depois ele muda de ideia em 180 graus e, num segundo, já é pela sua voz de locutor de radionovela da extinta Tupi.

E isto tudo é só um tiquinho, pois eu não conheço ele tão bem quanto eu gostaria, mas é uma brincadera com muito fundo de verdade, porque ele é, e todos sabem disso, uma pessoa excepcional, no melhor sentido. Em nada eu menti e espero sempre conhecer mais dele.

E como eu estou escrevendo essa série e disse que ia incluir algumas pessoas, hoje é o meu homenageado. De coração!

John, meu querido, é uma felicidade saber que a internet e as pessoas em comum que temos afinidades proporcionaram que eu pudesse lhe conhecer. Você é um amigo, quero que você considere-se assim, como se nos conhecêssemos há tempos e vidas. Você é especial, tem uma mente e um coração especial que trabalham em plena sintonia entre si e com os outros.

John Ramalho é mais ou menos isto tudo, mais mais do que menos.


***

E eu respondi:

 

Sempre me perguntei se, numa amizade, é possível fugir à pieguice. Sempre concluí, indignado, que não. A coisa é inevitável: quando temos amigos, em algum momento seremos obrigados a demonstrar afeto. Pois não tendo ânimo para pieguices e demonstrações de afeto, decidi, por bem, não ter amigos. E assim matei dois coelhos numa cajadada só. Ou, ao menos, tentei.


Curiosamente, como em tudo o mais na vida, também nisso eu fracassei. Não só não consegui não ter amigos, como também não consegui não me afeiçoar a eles.


Coitados. Pobres coitados dos meus amigos. Coitados, porque meu amor é como um vírus sorrateiro: intoxica e faz adoecer. Por isso sempre aviso: não ande com o John, não converse com o John, não dê ideia para o John. O John é perigoso. Ele pode te fazer pensar. Ele pode te fazer duvidar. Ele pode te ferir, te fazer desistir ou te fazer tentar. E pior de tudo, ele pode te fazer acreditar. E nunca, nunquinha, jamais, você irá entender o John, porque ele é tão etéreo quanto as ideias que professa e tão verdadeiro quanto o éter que os físicos teorizaram no século XIX.

O John é como o átomo: é divisível e formado mais por vazio que por matéria. Ele é um nada que existe. John Ramalho é alguma coisa como um fantasma. Sua mãe sempre lhe disse que, em decorrência de dificuldades pulmonares que teve após o nascimento, ele "nasceu sem respirar" e, portanto, "nasceu praticamente morto".

Como vocês sabem, não é todo mundo que nasce praticamente morto. A maioria, segundo consta, nasce praticamente vivo. John Ramalho, portanto, é uma raridade. É um zumbi. Nasceu praticamente morto e viveu ainda mais morto. Sobre o Fernando Sabino dizem que nasceu homem e morreu menino. Sobre o John Ramalho dirão que nasceu morrendo e viveu a morte.

Seja como for, apesar dos avisos, há sempre algum tolo, ou tola, que não escuta. E lá vai, desprevenido ou desprevenida, fazer o pacto com o Fantasma, com o Zumbi, com a Besta. E acaba descobrindo que o Diabo, apesar de feio, é menos feio do que parece.

Há gente nesse mundo que tem o coração tão grande e tão generoso que consegue apaziguar mesmo aqueles que estão destinados ao inferno.

Você é uma dessas pessoas, Carol Sorokin.

Agradeço a amizade, a paciência, a boa prosa e as palavras, tão belas e divertidas, e que foram muito mais gentis do que a verdade. Não que tenhas feito mal, afinal, pelos amigos, sempre vale a pena mentir.

A Isa se foi e me deixou cá no peito um vazio. Um sentimento de trouxa. Mas quer saber? A Isa era legal, mas ela que se foda. Se ela era legal, você é muito mais.

 

        ***

 

Apesar da boa amizade e do afeto verdadeiro entre nós, pouco tempo depois de escrever isso, Carol desapareceu da minha vida. Sei bem porquê, e não posso dizer que não havia motivo, já que não foi só comigo. Mas ainda não sei se perdoo. Talvez a homenagem fosse a sua forma de despedida...

Fato astrológico curioso é que Carol fazia aniversário apenas um dia antes de mim. Era virginiana. Na verdade: eram; tanto ela quanto a Isa. Mas para a Lady Murphy eu nunca perguntei o dia do aniversário. Ao descobrir que a Isa era virginiana eu soube imediatamente da atração fatal que nos acometeria. Caso descobrisse que ela fazia aniversário no mesmo dia que eu, tal coisa teria um efeito profundo em minha mente, gerando uma ansiedade mística que eu preferia evitar.

Antes do sumiço da Carol, eu e Isa nos afastamos, não por brigas ou rancores, mas por contingências da vida que se colocaram entre nós. Ou, talvez, por conta da minha covardia afetiva; a constante fuga de tudo o que pode me levar a uma grande paixão.

Não foram elas as primeiras moças virginianas de quem eu fui próximo, nem serão as últimas. Na verdade essa tem sido uma ocorrência tão peculiar e recorrente em minha vida que mudou minhas antigas ideias sobre a Astrologia (coisa sobre a qual devo escrever noutra ocasião).

 

***


Além de mim, e dos amigos já citados, há outra testemunha. O amigo Maycon Antônio, um jovem universitário com boa ambição intelectual, estudante da UFPR e leitor deste blog. Maycon frequentava o meu perfil e lá interagiu com essas pessoas, presenciando muitos dos debates e episódios divertidos. 

Registro tudo isso, pois aconteceu; e é bom que saibam que aconteceu. Resta a consciência de que, usando adequadamente a internet, esses encontros de pessoas afins, e de boas confrarias, acontecem. São as nossas pequenas utopias virtuais. Encontros que seriam muito difíceis de acontecer na realidade, mas são possíveis na web. 

Deixo, enfim, calorosos abraços aos meus amigos (e beijos e abraços às amigas). Que esta webcrônica sirva como testemunho do meu afeto aos que ficaram e aos que sumiram, onde quer que estejam. Por mim jamais serão esquecidos. 


19/02/24

Secreto Quixotismo


Hermes, do escultor Giovanni Bologna

Disse-me que apanhara da vida. Tão fortes as pancadas que muito de sua sensibilidade poética foi perdida. Sem desistir de si, quer agora recuperá-la.

Eis aí, em resumo, a confidência de um velho amigo, também escritor - outrora jornalista, cronista, poeta e blogueiro. Amigo que me ensinou coisas importantes, que me inspirou e ajudou. Camarada irmão de letras, tanto que ostenta igual sobrenome, companheiro de fé, de dúvida e de voracidade cultural.

No momento da revelação, fui pego de surpresa, emudeci. Depois pensei, pensei e pensei. Agora, aqui, mais uma vez expondo minhas reflexões, eu o respondo.                                                    

Compreendo-te, meu bom amigo.

Esse desarranjo é sempre um risco à espreita. Para superá-lo eu penso que o escritor deve impor-se uma missão. Deve a todo custo lutar para manter vivo, em si e em seus leitores, um quixotismo: o desejo de elevar-se pela apreensão criativa das verdades e das belezas. Precisa ter a consciência que trava uma batalha. E deve tornar-se sagaz, pois, diante das inversões desta era, necessita disfarçar sua ânsia pelo superior, sua vontade de virtude e transcendência. Caso diga em público que busca uma linguagem superior, sagrada e divina, prontamente será condenado como reacionário. Terá sua honra questionada, será tiranizado, e, por não ver beleza ou verdade em toscas tentativas de linguagem inventadas ontem, será considerado um mestre do ódio, tendo a cabeça posta a prêmio. Vemos esse padrão repetir-se mundo afora.

Como fosse judeu marrano, o poeta destes tempos, querendo manter viva a sua tradição, cala e dissimula. Vive numa era em que não é permitido aos homens, nem mesmo aos poetas, contemplar as almas das criaturas ou espiar as vastidões dos céus, pois já não existe na imaginação dos mestres coisas como almas ou céus a serem contemplados. Há apenas matéria, moléculas, átomos, partículas. Tudo é fragmento, nada é absoluto. Assim dizem os doutos.

O poeta, tolo e sonhador, querendo-se algo mais do que a soma de seus neurônios, deve proteger-se. Numa sociedade que rejeita a beleza e a virtude, corre o risco de ver insuperáveis as suas dores e angústias; caminho que o levará ao suicídio. Ou, tão terrível quanto: pode testemunhar o clamor, proferido pela virtual tribuna dos ótimos cidadãos que jamais o conheceram, para que sofra um covarde apedrejamento público.

Ele demonstra, portanto, grande sensatez ao procurar resguardar-se. Mas deve tomar cuidado para não ceder ao desânimo, deixando esmorecer suas inquietações. Seu desafio, sua luta, é preservar o anseio pelo sublime, a eterna procura da alma das coisas. Deve cuidar dessa chama quixotesca como quem cuida de um tesouro precioso e frágil.

Confesso ao amigo que eu, menos tolo do que pareço, tratei de esconder do mundo o meu coração romântico, a minha alminha de pequeno poeta - perigosíssima para o mundo moderno, pois cheia de vontade de Deus e de Beleza.

Defensivo, pus em torno dela camadas de frieza, mordacidade, deboche e sarcasmo. Acossado pelo monstro que é a ignorância da vida social neste país, encontrei no escárnio a minha defesa. Aprendi a ser cruel nos atos e nas palavras, desmascarador na análise, niilista, simulador do mais profundo desprezo pelo mundo; sempre pronto a cuspir nas afetações dos pretensiosos e nas mediocridades dos conformistas.

Fiz antipático o meu exterior, mas não o fiz por completo. Fui deixando pistas sutis de que minha rabugem não era tudo, de que havia nas entrelinhas uma filosofia moral, uma sensibilidade, um anseio de virtude. E mesmo eu me passando por amargo, houve quem soube decifrar-me o caráter íntimo sensível, e até quem me acusasse de poeta.

Eu, evidentemente, negava, e em público negarei sempre essas coisas, pois sei que há multidões de embrutecidos que odeiam os sensíveis e que se esforçam por ridicularizá-los. Lembro bem do que ouvi sobre um dos meus primeiros poemas, o qual, meramente por ser poema, seria, conforme a opinião de um verme, prova de pederastia. Pois eu pensava, como sempre pensei, que ser poeta significa querer ser como o rei Davi - o salmista, o guerreiro corajoso, o mulherengo, o canalha assassino, miserável em todos os seus equívocos, mas, apesar disso, homem nobre e arrependido que pela oração buscava as virtudes faltantes. Pensava também, como ainda penso, que ser poeta significa querer ser como Fernando Pessoa, o fidalgo de alma múltipla; fascinante literato que, sendo humano e usando palavras humanas, falava com a eloquência do deus Hermes, e que mostrava ao mundo ter não uma alma, nem duas ou três, mas tantas quanto quisesse.

Busquei proteger-me de outros vermes falantes antes que obstruíssem meu ingresso na aristocracia do pensamento e na iniciação ao sacerdócio hermético. Astuto, compreendi que não poderiam destruir o que não eram capazes de perceber. Tornei-me um eremita; e, quando em contato com essa gente, fiz-me tóxico como arsênico, o quanto mais eu pude, para que vissem em mim apenas um desviante louco, agressivo, caótico e perigoso. As minhas aspirações superiores, a fim de dar-lhes sobrevida, eu tive de segredar, restringindo-as a confidência de uns poucos amigos. Somente assim logrei manter vivo esse meu quixotismo, a extraordinária ousadia da pretensão poética.

Por tudo isso, ao meu bom amigo eu aconselho: esconde com maestria a tua sensibilidade. Guarde-a codificada nas suas melhores palavras, faladas nunca, escritas sempre. Põe nelas as mais belas imagens, com seus mais elevados sonhos e utopias. Vai, dia após dia, no silêncio da noite, cultivando a leitura dos grandes poetas, rezando baixinho aos teus deuses, resguardando e nutrindo em segredo a tua sensibilidade. 

Cria um sonho impossível, uma utopia romântica, loucura íntima que te traga imenso prazer no imaginar. E quando notar que a capacidade de sentimento voltou, continue em segredo. Não faz alarde da tua imaginação poética, esse grandioso bem que há em ti. Deixa ela protegida, eternizada em arte nos teus versos ou na tua elaborada prosa, e põe cada uma das tuas obras de arte, grandes ou pequenas, num destino esotérico; como livro sagrado em baú enterrado, só disponível aos templários, em caminho só percorrido por gente estranha que é cada vez mais rara: gente que, como eu e tu, luta não apenas para ter alma, mas para expressá-la com a eloquência dos deuses.

16/09/23

Não Era O Que Parecia





Pessoa que até a véspera nos tratava amigavelmente. Sorria, falava. Demonstrava interesse em manter conosco a boa relação, e depois surpreendeu virando a casaca: riscou o fósforo do desencontro para acender a dinamite do silêncio. O efeito, uma explosão de energia negativa. Antes, sua conversa receptiva sugeria uma conexão que, no futuro, continuasse tudo constante, daria em agradável amizade. 

Ser humano a quem nos abrimos, e a quem procuramos ajudar, aceitando com zelo o autoimposto dever do amigo. Imaginávamos, é claro, ser de confiança. E ao revelarmos elevada disposição afetiva, esperávamos tudo, até que risse de nós, os românticos do afeto; o que não esperávamos nunca é o gratuito desdém, o desprezo, a falta de consideração.

Diante de tamanho descaso, que podemos fazer? Como em tudo o que não podemos mudar, deve-se aceitar o ocorrido e refletir, buscando compreender o que de fato aconteceu. E, claro, aprender a evitar esse tipo de situação no futuro.

Eu sei, nós sabemos: há instabilidade no comportamento humano. As pessoas mudam: crenças, atitudes, ideias e sentimentos. Há em cada um de nós caprichos, defeitos, idiossincrasias, preconceitos, ansiedades e sentimentos não declaráveis. Algumas pessoas são mais volúveis, outras mais estáveis.

Vale entender que é possível uma relação muito agradável sem que exista de fato uma amizade. Isso porque, via de regra, as pessoas não expressam diretamente a desimportância que podem dar a alguém que consideram divertido, agradável, inteligente e gentil. Sem expressar verbalmente, tendem a demonstrar em atitudes negativas; descumprindo acordos e não honrando as próprias palavras. Também as pessoas não se revelam por completo. Podem mostrar uma coisa e pensar outra. Ao tratá-las de forma agradável e amigável, elas tendem a responder de igual forma, o que não implica, necessariamente, em amizade.

O amigo é aquele que já conhecemos o suficiente para nele confiar. O amigo é definido pelo grau de confiança, previsibilidade, cumplicidade e experiência que temos com ele, não pelo tamanho de nossa atração ou disposição afetiva. Não importa o quão elevados sejam nossos sentimentos por uma pessoa. Por mais querida que ela seja, nosso sentimento isolado não é suficiente para compor amizade. O que importa é o modo como ela nos trata: se nos valoriza ou não. Se nos valoriza e respeita, como a valorizamos e respeitamos, então a relação vale à pena. Se nos trata com desdém, o melhor é nos afastarmos.

Esse desapego afetivo pode ser doloroso, mas exercê-lo é se livrar de uma dor ainda maior: a que viria caso tivéssemos alimentado a relação, pois estaríamos nos iludindo, e quanto maior o apego, maior a frustração. Fato é que nem todos que apreciamos podem nos conceder a atenção e estima que precisamos. Eis o mundo como ele é. Portanto, quando percebemos que alguém de quem gostamos não nos valoriza, é mais inteligente desapegar e se afastar o quanto antes. Não é apenas questão de orgulho, mas de saúde mental e moral. A regra é simples: não existe amizade sem reciprocidade.

É nas atitudes que reconhecemos quem são as pessoas confiáveis, que devemos incluir como amigos, e quem são aquelas que, embora eventualmente agradáveis, não se importam de verdade conosco. O discurso mascara, mas as atitudes revelam. Aquele que nos diz "sou teu amigo", mas não age como tal; é sempre traiçoeiro e perigoso, porque fomenta em nós expectativas que jamais se poderão concretizar. Mais leal é um verdadeiro inimigo, que deixa claro a sua indiferença e não cria conosco uma relação dupla, mostrando uma face e agindo com outra. Vale mais esse inimigo franco que um amigo aparente.

Encontramos na vida pessoas cordiais, receptivas e agradáveis que parecem amigas, mas que, na realidade, são autocentradas, desinteressadas, desdenhosas e no fundo fazem de nós pouco caso. Quando não somos maliciosos e desconfiados, caímos na armadilha das aparências e nos deixamos levar, imaginando termos ganho uma boa relação. Chega cedo a primeira frustração e vemos que fomos enganados, que não eram por dentro o que pareciam por fora. Nesse momento, é hora de sorrir, lembrar que as aparências enganam, erguer a cabeça e continuar em busca de melhores relações.

A vida afetiva é um imenso garimpo: com paciência encontra-se o precioso, mas não vem sempre e não vem fácil; há sempre percalços no caminho. Como já dizia o bardo: "nem tudo o que reluz é ouro".

19/04/23

Tétano no Coração



 
Amizade em crise. Antes do bloqueio: Marina bonita, Marina culta, Marina inteligente, Marina autêntica, Marina singular. Depois do bloqueio: Marina desgraçada, Marina insensível, Marina vaca sagrada, Marina diamante, Marina deusa. Deusa não, deusinha. Deusinha de um metro e um biscoito, vestindo preto no calorzão de um sábado, quase gótica, cabelos muito pretos, pele branquinha branquinha, pálida feito a Murta-Que-Geme, porque Marina não pega muito sol. Marina, minha amiga do coração triste e ferido, transpassado pela lâmina da rejeição e do "não entendo".

Amigo ajudador, metido a sabe-tudo, eu vi a ferida aberta, pensei vou ajudar, plano arriscado, muito arriscado, intuitivo, mas por Marina vale arriscar, amiga a quem quero bem, afeto grande. Arrisquei. Falei com o Monstro do Passado de Marina. Queria bater nele, subjuga-lo, dominá-lo, mas não tinha esse poder. Melhor outra abordagem. Negociar, pedir, persuadir. O Monstro tinha forma de gente, talvez tivesse coração. Falei com o Monstro de Marina. Descobri que era mesmo monstro: não tinha coração; pedra pura e dura no peito. Homenzinho insensível, não ajuda, não se importa, deixa minha amiga sofrer. Tentei ajudar mas deu tudo errado, subestimei o monstro - achei que era homem mas era bicho. E agora Marina magoada, a ferida dobrada, a vergonha, a timidez, o coração agora dói muito e dói mais. Reativei dor antiga, fiz ativo um sofrimento vulcânico que adormecia. Culpa minha. Marina antes apenas não entendia, agora sofre mais e tem a quem culpar. O culpado: eu, com meu plano besta.
 
Pior: a dor é tanta que a afasta. Marina não mais amiga, mandou-me às favas, eu que me calasse, eu que me afastasse. Nosso contato bloqueado, seu carinho negado; agora  a raiva dela, o dedo indicador, o afastamento, a rejeição a mim e ao meu plano bem intencionado e idiota. O amigo idiota, por que foi se meter? Ficasse quieto, não era da sua conta. Deixasse o monstro lá, quieto, na dele. Só fiz piorar as coisas. E agora Marina sofre, sozinha. E eu sofro também: pelo sofrimento dela e pela culpa que agora sinto.
 
Que faço, Marina? Sem te poder salvar, que faço? Tu te salvas de mim, tu te afastas. E eu, Marina? Quem de ti me vai salvar? Esta minha culpa, esta minha dor, este meu arrependimento, até quando?
 
Puna-me, Marina, puna-me por favor. Pega um punhal do Tranca Rua e esfaqueia o meu peito esquerdo. Uma, duas, três facadas sinistras, que é número místico a me amaldiçoar os sentimentos. Se for isso brutal demais para tua alma cristã, faz diferente; pega um velho colt enferrujado, toma distância e atira no meu coração, quero nele um furinho feito por ti, bem redondinho, uma dor insuportável por ti provocada. Quero uma bala velha e também enferrujada, que é para ensejar tétano no coração, forma poética de adoecer. Ou, talvez, melhor o chicote: aproveita  minha cor negra, minha devoção ao feminino, minha resignação estoica - e  faz de mim um escravo, Marina. Dê-me cem, quinhentas, oitocentas, mil chibatadas! Vinga-te da minha bondade idiota, dê-me uma bondade cruel. Puna-me, Marina, puna-me por favor, por caridade, por compaixão, por sentimentalismo!
 
Não te afastes simplesmente, não me deixe sem algo teu. Dê-me algo, mesmo o teu ódio, mesmo o teu sadismo. Pois hei de aceitá-lo com ascetismo e fidelidade, porque se é para a tua satisfação, o meu martírio é uma bênção e um dever. Deita o meu corpo numa cama de faquir, cheia de pregos, e caminha sobre mim: põe de fundo A Cavalgada  das Valquírias e com teus lindos pezinhos de princesa erudita executa uma gloriosa dança cigana sob a minha carapaça, olha vitoriosa nos meus olhinhos úmidos e arrependidos enquanto a minha carne se afunda, se corrompe e sangra entre pregos. Então diz, maravilhada, emocionada, que sou bom amigo, que me sacrifico, e que ao me punir me perdoa. Diz que entende, que não tenho culpa de te querer bem e nem de ser idiota e tentar o improvável. Puna-me, Marina, puna-me por favor. Puna-me por afeto, por pena, por dó.
 
Faça-me gastar uma fortuna com as formigas mais perigosas do mundo, egressas da nossa selvagem Amazônia, bestas cuja picada dói até mais que um tiro. Faça-me encher uma piscina com elas, manda-me então nadar inteiramente nu, e eu irei. Não posso imaginar quanta dor, quanto sofrimento, quanta mutilação. Ah, mas se essa minha dor te fizer feliz,  se te arrancar um sorriso, que dia maravilhoso, que vida maravilhosa, que conquista!  Faça o que for, mas não te fechas, Marina.  Abre o teu coração para essa nova dimensão do afeto; descobre em ti o mal que liberta, o mal que purifica.
 
Puna-me, Marina, puna-me, queridinha, puna-me, meu amor. Puna-me com fervor e com justiça. Derrama o meu sangue na terra, enriquece a minha vida com o teu mal, porque, se ele existe, é melhor aplicá-lo em mim do que em ti. Quando, em tenebrosas horas tardias, a auto violência te assolar o pensamento, lembras deste aqui, teu bode de expiação. Impõe a mim o sofrimento físico, porque , mesmo sendo de outra natureza, nos fará cúmplices na dor. E de ti eu só quero a cumplicidade. Se em ti gerei dor, de ti mereço recebê-la. Puna-me, Marina, puna-me, minha amiga. Puna-me por piedade, puna-me por gentileza, puna-me por  favor.

29/03/23

A Culpa é da Marina


Gostei muito de Dona Marilene. Seu temperamento expansivo, sorridente, transbordava afetuosidade. Devia ter lá os seus cinquenta e tantos, talvez sessenta - idade sem importância, pois que vigor, que energia, que brilho no olhar. Toda bom-humor, divertida, moleca, beijou-me o rosto fazendo trocadilho com o doce ("beijinho"); depois repetiu a galhofa em Juan, que lhe era como um neto. Eu os conhecera apenas há algumas horas. Quem diria que, sábado pela tarde, um calor daqueles, eu estaria numa festa infantil, entrosado com um roqueiro e admirando o afeto cósmico de uma avó.

A culpa, é claro, foi da Marina Lemos. Não fosse por ela eu jamais teria saído de casa. Passaria o sábado enfurnado, tentando estudar, lendo livros e ouvindo Manu Chao nos intervalos. E sim, eu percebo a ironia: John Ramalho, o eremita que gosta de Manu Chao. Logo ele, o eterno viajante e autor dos versos: "Me chamam de desaparecido/Fantasma que nunca está/Me chamam de desagradecido/Mas essa não é a verdade/Eu levo no corpo uma dor/Que não me deixa respirar/Levo no corpo um castigo/Que sempre me põe pra caminhar". John Ramalho, inconsistente, contraditório: gosta da lírica de quem viaja, mas não gosta de viajar.

Mas preciso falar dela, a culpada: Marina Lemos. Sobrinha do ex-prefeito, ex-namorada de um dos meus amigos mais eruditos e licenciada em letras-grego. A rotina de nossa amizade consiste em três constantes: 1) dar rolês aleatórios, 2) passar eras sem se ver e sem se falar e 3) se reencontrar por acaso e voltar a dar rolês aleatórios. A aleatoriedade, devo dizer, vinha toda dela. Eu talvez gostasse porque era um desafio ao meu jeito tão metódico. Com a Marina eu não sabia o que iria acontecer ou quem iríamos encontrar, o que era horrível, agonizante, mas interessante também.

Eu em casa, o telefone toca, olho e vejo que é Marina. "Ou está ligando por engano ou vai me chamar para algum rolê aleatório bem em cima da hora" pensei.

- Oi Jônatas, tem compromisso hoje à tarde? (Marina é uma das poucas pessoas no mundo que ainda me chama por meu nome de batismo. Coisa de quem me conheceu há dez anos, imagino.)

Escuto a voz de contralto dela e passo a me sentir muito importante. Vem a tentação de esnobar, dizer não, bancar o difícil. Por que sair nesse calor? Não, não vou.

- Oi, amor da minha vida. Provoco.

- O quê? Eu te enviei vídeo? Marina, sem me entender.

Não sei por que, mas com ela é sempre assim, bastam poucas palavras e um de nós já está passando raiva com o outro.

- Não, eu disse "amor da minha vida". Explico, de mau-humor.
- "Amor da minha vida"? Nossa, que infantil.
- Você acha "amor da minha vida" infantil?
- Acho.

Marina tinha essas opiniões esquisitas. No passado eu a apelidara "Luna Lovegood", por causa de sua excentricidade charmosa, como a personagem de Harry Potter. O divertido é que, antes de mim, outros amigos dela já haviam notado a semelhança e carimbado o mesmíssimo apelido. Marina: duas vezes Luna Lovegood.

- Olha, depende, Marina. Largo meus compromissos se você me convidar para algum rolê indecente.

Ela bufa, mau-humorada. Mas logo se acalma e, meio relutante, pergunta:

- Quer ir numa festa de criança comigo?
- Festa de criança? Indago, incrédulo.
- É. Ela responde.

Enchi os pulmões de ar e preparei meu sermão para dizer que não fazia nada que não fosse planejado, pensado com antecedência, premeditado, infinitesimamente calculado. Mas quando fui falar, ela me quebrou:

- Pô, é que eu tenho que ir, mas não quero ficar lá sozinha.

"Sozinha". A palavra ecoou e, de um jeito inesperado, me tocou. Marina era amiga, e amigos fazem companhia a amigos que precisam de companhia, certo? Certo, certíssimo - bonito até. E foi assim - pelo fascínio estético de cumprir meu dever como amigo - que, num sábado calorento, eu abandonei meus diligentes estudos, leituras e meu Manu Chao para dar um rolê aleatório com a Marina Lemos numa festa infantil, na casa de quem eu nunca havia visto, sem saber se seria bom ou ruim, chato ou divertido.

Para não sair no prejuízo, fiz uma condição: Marina deveria ler minha última crônica, analisá-la e me dar uma opinião sincera. Ela disse que leria na festa. Se ela diz, eu confio. Confio nos meus amigos. Tenho amigos para poder confiar em alguém.

Solícito e benevolente, eu a acompanhei até a festa. Fui esforçado: sorri para gente desconhecida, socializei, conversei, fiz piadas, conheci gente agradável e saí de lá sem cometer infanticídio, mesmo diante de tanta algazarra infantil e infernal. Fiz minha parte.

E Marina?

Marina nem leu minha crônica.

Cheguei em casa me sentindo meio idiota e um tanto irritado. Marina não cumprira o acordo, fiquei chateado. No entanto, meditando a respeito, percebi meu apego exagerado ao texto, minha volição comunal em compartilhar com amigos, ouvir deles opiniões. Antigamente a mera sugestão de precisar da atenção alheia já me soava ofensiva. Hoje, porém, reconheço a verdade: não fosse o afeto dos amigos e entes queridos, nenhuma literatura (nem mesmo esta subliteratura) me seria possível.

Mesmo assim, ao escrever esta crônica, na primeira versão, ainda colérico, pus nela um ultimo parágrafo rancoroso e um tanto ofensivo. Nele eu dizia a Marina uma crueldade; vileza grande, coisa imbecil que, sei bem, a magoaria. Foi cruel mas foi ótimo. Limpou-me a alma, exorcizou o sentimento tenebroso, deu um tom final triste e trágico. Uma beleza, e como o pessimismo está na moda, os leitores adorariam. Pena que eu não gostei. (Como sou mercenário, estou cobrando 50 reais pelo parágrafo proibido, desde que ninguém o mostre à Luna).

Marina não leu a outra crônica, mas leu esta. Deu risada, divertiu-se. Disse que Dona Marilene é mesmo incrível, que ficou feliz pela amizade que fiz com Juan, pelo meu esforço na socialização, e declarou que foi a melhor crônica que eu já escrevi na vida. Equivoca-se, claro, pois é apenas a terceira que ela lê.

Um pouquinho ainda de raiva de você, Marina. Tu é esquisita. Duas não: três, quatro, cinco vezes Luna Lovegood. Esquisita, mas amiga.

Não só pela minha raiva, mas também por esta crônica: a culpa é da Marina.