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25/05/24

Amigos como o Hugo Motta


Foto deste cronista com o mestre Hugo Motta. Tirada, talvez, em 2018

Certa vez o Hugo Motta, depois de perguntar como eu estava, disse que pretendia avaliar-se através da comparação aos cinco amigos mais próximos - uma brincadeira, claro. Fiquei envaidecido pela estima do Hugo, que é, eu preciso dizer, um grande sujeito. E já explico que não o meço grande apenas pela inteligência, que é enorme, nem pelo fato de ser meu amigo. Digo tal coisa apenas porque, conhecendo-o, não poderia dizer outra.

Somos amigos há mais de uma década e, coisa curiosa, encontrei-me pessoalmente com o Hugo, no máximo, umas quatro vezes na vida. Foi durante uma conversa literária com o Lucas Lopes que o conheci. Viajando de ônibus, eu contava ao Lucas minhas impressões de leitura de A Metamorfose, de Kafka, e expressava, com ares professorais, uma intepretação sociológica mequetrefe lida na internet. Lucas ouvia atenciosamente. Ao lado dele, o Hugo Motta, que eu nunca tinha visto na vida, ouvia tudo e me olhava fixamente. 

Quando Hugo finalmente entrou na conversa, eu já tinha deduzido que ele, na certa, conhecia o Lucas. Muitos anos depois, Hugo confessaria: ouvira-me falar "uma besteira enorme" e teve de intervir. Dei risada. Ainda naquele dia do ônibus, quando ele se meteu na conversa de dois desconhecidos, eu notei nele duas características: era estranho e muito bem informado. Justamente o tipo de gente que me interessava. Memorizei seu nome. Depois solicitei sua  amizade na rede social mais usada na época. Quis saber quem era aquele esquisitão intelectualizado que ousara me corrigir e que, aparentemente, morava no mesmo Cafundó do Judas que eu. Quando Hugo Motta desceu do ônibus passou-se entre eu e Lucas o seguinte diálogo:

- Rapaz inteligente esse aí. É seu amigo, né?

- Não, cara. Não o conheço. Não é seu amigo não?

- Nunca o tinha visto antes.

E caímos no riso, surpresos. 

Assim eu conheci um dos sujeitos mais inteligentes e intelectualmente honestos que já tive notícia. Alguém que é  bom exemplo do que eu chamo de "intelectual doméstico". De lá pra cá, eu muito me beneficiei da caridade intelectual do Hugo, que sempre me concedeu referências preciosas. Foi ele quem trouxe  Wittegenstein e a filosofia moderna pra o meu mundinho que, até então, restringia-se a referências  filosóficas do romantismo e do iluminismo (Rosseau, Locke, Voltaire). Também ele, Hugo Motta, emprestou-me livros que foram da maior importância.

Nossa amizade ancorou-se, sempre, no fluxo de ideias. Nas conversas e debates dos temas da vida intelectual, política, espiritual, social, cultural, esotérica. As leituras,  as opiniões dos filósofos, dos intelectuais, dos comentadores, dos críticos. Os casos políticos e culturais do momento. As polêmicas, as piadas, as mulheres. E, claro, o gosto comum pelos fatos absurdos, hediondos, improváveis. (Hugo é exímio colecionador de atos questionáveis das criaturas humanas e de fatos peculiares do universo). 

A curiosidade intelectual generalista que havia em mim eu encontrei também nele, porém em versão refinada, erudita, poliglota. Estabeleci com ele a saudável conexão mental e afetiva que ao longo da vida eu reproduziria com outros bons amigos extraídos das redes sociais. E foi por  meio deles que tive acesso a inteligências e raciocínios que, sozinho, eu nunca alcançaria. A amizade com o Hugo deu-me acesso a gênios como o Manuel Doria, a quem eu pude fazer algumas perguntas, obtendo inesquecíveis respostas. 

Acho engraçado quando gente que não me conhece diz, ou imagina, que eu me acho muito inteligente. Como é que eu vou me achar inteligente quando a minha referência de inteligência é gente como o Hugo Motta e o Manuel Doria? E isso para não falar dos amigos programadores, cientistas, escritores, aventureiros. Eu sou tão confessional na contemplação da minha ignorância que declaro-me agnóstico, e, inclusive, já escrevi sobre a aventura que é viver tentando diminuir minha burrice cósmica.


Entre os livros e o xadrez, com o amigo Hugo Motta (que não queria aparecer).

Mas eu falava do meu amigo Hugo Motta. Escrevo sobre ele, e escreverei sobre outros amigos intelectuais, para dizer e reforçar uma ideia, um segredo que não deveria ser tão secreto assim. Ao leitor destas palavras, peço que se lembre disto: muito do que se tira de bom da vida intelectual, e quase tudo o que se aprende de relevante, vem do aprendizado informal, aquele extraído na convivência com amigos e contatos que são muito mais inteligentes e culturalmente experientes do que nós. Até os livros que nos farão a cabeça, os primeiros, aqueles de formação, dependem da indicação desses mestres informais.

O próprio Hugo, quando perguntei a origem de sua inteligência e erudição, disse-me que estudava Direito, mas era para não morrer de fome; pois quase tudo o que ele sabia de relevante tinha aprendido na internet, com amigos, artigos, sites e livros. Mais tarde, quando o conheci melhor, pude descontruir um pouco dessa visão romântica que ele tinha de si mesmo. Não que ela fosse falsa, mas, seguramente, não era explicação suficiente. Havia duas outras chaves que ele não havia mencionado: sua fluência no inglês e sua condição de filho da classe média. Mas isso, a relação do inglês e da classe média com a vida intelectual, eu comentarei em outra ocasião.

Ao constatar a grandeza de  amigos como o Hugo Motta, A Ruiva e tantos outros, fico satisfeito e envaidecido. Julgo por bem celebrá-los. Trazem-me esperança. É preciso que se diga: há grandes sujeitos neste país, muitos deles anônimos, não reconhecidos, esquecidos. Sei disso muito bem, pois conheço vários. Gente como o meu amigo Hugo, intelectual que morava em periferia e andava de ônibus. Gente assim existe. Mas, notem vocês, eu só pude chegar a ele porque conversava sobre literatura com um amigo culto. Semelhante atrai semelhante. Estivesse em roda de imbecis, idiotas, superficiais, aquela conversa não teria acontecido e eu jamais teria conhecido o Hugo. Foi sorte, mas foi aquela sorte que só acontece quando o contexto e o círculo social é favorável.

A lição é esta: não tenha demasiado medo de errar em seus comentários. Com sorte haverá, próximo, um sábio caridoso o suficiente para corrigi-lo. É claro que você sentirá vergonha depois. Mas a melhor hora para errar nas opiniões e interpretações é enquanto você é jovem. Admita ser corrigido por alguém que sabe mais. Ou, melhor ainda: queira, deseje ardentemente, ser corrigido por alguém que sabe muito mais que você; procure quem o possa corrigir. Pense na sua inteligência como um diamante bruto que a inteligência dos seus mestres ajudará a lapidar. Atue assim e naturalmente você ficará mais refinado - os outros hão de notar e te acusar o fato. Ficando mais refinado você será capaz de autolapidar-se; sem desprezar, claro, a boa e velha ajuda dos mestres.

Mostrei ao Hugo a minha melhor crônica. Ele, leitor de Umberto Eco e Roberto Bolano, honesto e impiedoso, deu nota 6. Caridoso, indicou-me alguns autores. "Imite-os para aprimorar seu estilo", ele disse. Grande Hugo! Bom e fiel amigo! Há mais de uma década atura-me e ilustra-me. 

Você, leitor jovem, trate de fazer bons amigos. Cultive amigos como o Hugo Motta. Ao ver-se beneficiada e enriquecida, a sua inteligência agradecerá. Acredite em mim, tenho outros bons amigos como Hugo. Sei bem o que digo.

09/08/23

Por que me afastei das pessoas...

      

Nota do Editor: o texto abaixo foi originalmente publicado como resposta no site Quora.

***                            

                                       [O Eremita. Do Tarôt Rider-Waite]


Porque me afastei das pessoas?  

Tive tantos motivos que chega mesmo a ser difícil elencá-los. Caso tentasse, porém, ir até a gênese da coisa, buscando a primeira de todas as razões; provavelmente seria obrigado a concluir que afastei-me das gentes devido a percepção da estranhíssima e seguinte verdade:

Eu adquiria maior orientação interagindo com os livros do que interagindo com as pessoas.

Tal coisa percebi ainda na adolescência, período da vida onde a instabilidade era a regra. Se ganhava novos conhecimentos e relações, ganhava também novas angústias e frustrações. Diante do mundo religioso que me era estimulado pela família; diante do mundo cultural que avidamente consumia na forma de quadrinhos, rock, livros e cinema; diante da vida social e das paixões carnais, das quais nada entendia, e diante da vida técnico-científica que me era apresentada na escola; minha mente viu-se tomada por exuberante fauna de dúvidas e inseguranças capitais.

Sendo um filho de professora, nunca pude fugir ao didatismo. Por isso, sentia que antes de decidir qualquer coisa importante, precisaria compreender um mínimo do mundo. Esclarecer-me. Saber o que era importante e o que não era. O que era verdadeiro, o que era engano. Quando você é um jovem romântico e problemático, que está completamente perdido no mundo, orientação é o bem mais relevante que se pode conseguir.

Os livros, mesmo que também me trouxessem muitas dúvidas, ampliavam, mais do que as pessoas, meu contexto cultural e cognitivo, não apenas de forma quantitativa, mas também de forma qualitativa. Com eles eu não só aprendia mais, mas aprendia melhor. Os livros levavam as perguntas muito a sério, dedicavam páginas e páginas de análises para compreender e esclarecer problemas difíceis. Havia neles uma seriedade, um compromisso, um brio intelectual, uma racionalidade analítica, que, sentia, faltava em meu meio de origem. Isso para não mencionar também a beleza estética da linguagem empregada.

Entre os 13 e 16 anos, enquanto meus amigos mais integrados "comiam todas as menininhas da cidade", eu lia “O Último dos Moicanos” e também “As Viagens de Gulliver”. Livros que fizeram-me um estrago brutal. Deles vieram meus primeiros rudimentos de sensibilidade e consciência moral. Desvelaram a mim os absurdos, as incoerências, as injustiças e as loucuras dos homens. O primeiro de forma épica e trágica, o segundo de forma mordaz e satírica.


                                                        [Dança com Lobos.]


O bom cinema estragou-me também. Filmes que muito me influenciaram nessa faixa etária foram: “Sete Anos no Tibet”, “Dança com Lobos”, "O Conde de Monte Cristo" e “O Último Samurai”; todos envolviam homens perdidos, amargurados, em situação de distância e isolamento de seu mundo de origem. Filmes que retratavam a alienação do herói, primeiro passo para a evolução filosófica e espiritual, lugar-comum da estrutura narrativa. Fizeram-me equacionar solidão e distanciamento com aquisição de sabedoria.

Sentia falta de pessoas (adultos) extraordinários e inspiradores. Escasseavam na vida real, mas superabundavam nos livros e nos bons filmes. Na biblioteca da escola, disponíveis para me instruir, estavam: EinsteinMichiu KakuJonathan SwfitBill BryssonCurzio Malaparte e centenas de outros cavalheiros com a mais vasta erudição, sofisticação e experiência de vida. Todos indivíduos de espírito e distinção. Fora da biblioteca, não conhecia nenhum ser humano que trouxesse em si tanta magnitude. Via naquele local silencioso, que eu considerava um Templo da Sabedoria, o ambiente de uma comunidade de sábios, gênios e aventureiros. Era jovem, mas já intuía a existência de uma Cultura Universal, de uma Sabedoria Universal. Ali eu poderia ter acesso as palavras desses homens, saber o que pensaram, o que viveram, como viram o mundo, o que tinham a ensinar. E descobrir o porquê eram considerados tão importantes.


                [ Einstein. Não basta ser inteligente, é preciso ser também irreverente.]


Sendo eles de tamanha importância histórica e cultural, pensava que deveriam ter alguma orientação, deveriam saber como o mundo funcionava; saber de coisas importantes que os outros não sabiam. Afinal, não eram eles os chamados gênios? As chamadas “grandes mentes”? Certamente não haviam chegado onde chegaram por acaso. Certamente tinham algo a ensinar. Eu aprenderia com eles. Com suas vivências, ensinamentos, opiniões, conselhos; e, possível fosse, seria tão grande quanto.

Pois quanto mais interagia com as obras originadas por essas e outras mentes ilustres, mais ampliava a percepção da futilidade e decrepitude das mentes ao meu redor. Vendo que a futilidade era a regra, a sabedoria tornava-se um bem raro; e, portanto, altamente valoroso. Percebi a futilidade das gentes, decepcionei-me com a futilidade das gentes: afastei-me da futilidade das gentes. Busquei a sabedoria. Dos sábios.


                               [Perder tempo com os tolos? Não eu..]


A verdade é que ninguém pode imergir na parvoíce das gentes sem tornar-se também um tanto quanto parvo. A mente não apenas é moldada pelo conteúdo com o qual a alimentamos, mas torna-se também uma reprodutora desse conteúdo. A mente é uma replicante de memes*. Daí a importância de uma cultura que eleve e nos instigue à virtude e não ao vício. Já jovem sabia muito bem disso. Como a cultura ao meu redor parecia induzir ao vício e a confusão, julguei necessário me resguardar. Busquei pessoalmente, muitas vezes isoladamente (algumas vezes socialmente, em pequenos grupos de amigos), cultivar uma outra cultura. Uma que não apenas me entretesse, mas que me inspirasse, que me ensinasse a ter alguma orientação no mundo, a responder minhas dúvidas capitais, a compreender melhor e a ser alguém melhor.

Assim o fiz. Assim o faço. Por isso o afastamento.

Fato é que nunca me tornei exatamente alguém melhor. Na maior parte das vezes, sigo sendo o mesmo traste de sempre, entretanto, ao menos alguma orientação mínima e alguma compreensão mínima (do mundo, dos homens e dos deuses) eu obtive. Não é muito, mas é já alguma coisa.

Me arrependo de me ter afastado das pessoas?

Nem por um segundo.


*O termo "meme" é usado aqui em seu sentido original, isto é: uma unidade mínima de ideia ou conteúdo mental reproduzível culturalmente.



21/06/23

Um Morto Muito Louco

 


O primeiro Jorge Amado a gente nunca esquece. Pois bem, no exercício de ler e conhecer ao menos uma obra dos grandes prosadores brasileiros, depois de me impressionar com a prosa do Carlos Heitor Cony, resolvi conhecer alguma coisa do nosso grande populista Jorge Amado. Populismo esse que para o crítico Wilson Martins era um pecado e que para mim não é - ao menos não necessariamente...

A escolha pelo livro foi inspirada no fato de um dos meus gurus intelectuais, o professor Uriel Irigaray, mestre em Letras e doutorando em Antropologia, ter escrito sua monografia sobre rituais iniciáticos de morte e renascimento; na qual, para minha surpresa, citava essa obra do Jorge Amado. Como eu não tinha lido a obra, parei a leitura da monografia e resolvi voltar apenas depois de ler e assimilar a narrativa do Quincas Berro Dágua (sobre a qual eu não tinha a menor ideia).

Sem saber do que tratava a obra, o nome me parecia muito peculiar. "A morte e a morte?... Como assim a morte e a morte?... O que ele quer dizer?" Também o nome do protagonista me soava estranho, enigmático: Quincas Berro Dágua!? Que nome esquisito!

Por todos esses motivos, era um livro que eu me sentia obrigado a ler. E como eu não tenho pressa pra nada, foi neste ano de 2022 que aconteceu. Li e a experiência foi de puro deleite.

A primeira surpresa agradável foi descobrir a prosa gostosa e fluida do Jorge Amado, uma prosa que não oferece dificuldade, que tem ritmo fácil e que pela leveza - aqui eu me arrisco a sugerir- parece uma atualização ou "abrasileiramento" do estilo mais direto de autores populares ingleses e americanos do século XIX, como Robert Louis Stevenson e Jack London. Teria que reler Stevenson e conhecer as influências literárias do Jorge Amado para saber até onde essa minha aproximação tem sentido, mas, ao menos foi essa a minha impressão. Falando de outro modo: Jorge Amado escreve menos como um literato - por literato leia Machado de Assis e Camilo Castelo Branco - do que como um contador de histórias. Ele não põe nenhuma grande firula sintática ou estilística na prosa, o que lhe interessa não é a grande retórica ou o rebuscamento ou o Português belíssimo e castiço, mas a narrativa, ato a ato, gesto a gesto, acontecimento por acontecimento. Não me admira saber que tantas das suas obras foram adaptadas para Cinema e Teatro. Faz sentido. Por focarem na narrativa elas são facilmente roterizáveis. Jorge Amado é, portanto, um autor de estilo "leve", fácil, muito bom para formar leitores, para indicar a adolescentes e iniciantes em Literatura. Faz sentido que seja autor importante no currículo escolar.

Mas isso não é tudo, e nem é o melhor. A cereja do bolo, para mim, está na boa ironia e no saboroso humor com os quais Jorge Amado vai tecendo a sua trama. Eu dei muitas e boas risadas durante a leitura do livro, diverti-me como há tempos não me divertia numa leitura. Até emprestei o livro ao meu irmão, que nem é grande leitor literário, e ele teve ótima recepção; chegou a agradecer-me pela indicação.

Outro elemento do estilo e da narrativa que merece destaque é a dimensão simbólica da obra, pois ela pode ser vista como metáfora para a ideia de que a nossa vida, identidade e autopercepção é determinada pelo meio social, pelas relações sociais; de modo que, ao alterarmos drasticamente nosso comportamento e status social, podemos simultaneamente morrer para um grupo e viver para outro. Enquanto essa interpretação (de que a primeira morte seria apenas simbólica, erro da família de Quincas, que o queria morto) é uma leitura possível e talvez provável, resta uma outra que ainda está no quadro de possibilidades: teria Quincas Borba realmente morrido na primeira vez? Se sim, a história ganha então contornos fantásticos, e aqui a figura do morto-vivo celebrando e festejando ganha ares de um mórbido carnaval, uma festa grotesca e ao mesmo tempo hilária. Acho que essa segunda interpretação é a que vem sendo adotada pela crítica, o que acaba por aproximar a obra do assim chamado Realismo Fantástico. Lembrando agora: bem que a monografia do mestre Uriel falava algo sobre Bakhtin e a ideia de "corpo grotesco"...

Concluo dizendo que gostei um bocado. Livro para reler e indicar aos amigos.

Ah, e antes que eu me esqueça: o livro oferece uma ótima e divertida explicação para esse nome tão esquisito!

OBS: está nos meus planos escrever um comentário melhor e mais organizado a respeito dessa obra. Se você gostou dessa resenha, que não é bem uma resenha, siga meu blog e veja se alguma coisa lá te desperta a curiosidade. Tem lá um bocado de crônicas, algumas notas, comentários sobre blogs, filmes, causos culturais e até alguns downloads.

Neste link a monografia do erudito Uriel (finalmente poderei terminá-la!)


                                                                 ***

       Resenha originalmente publicada na rede social SKOOB em 27\07\2022

18/01/23

A Lógica dos Coen

Alguns filmes dos irmãos Coen

Sempre dizem que os filmes dos irmãos Coen são caracterizados pelo niilismo e pelo absurdo não explicável das situações. Mas eu tenho a forte impressão de que quase todos (ainda não assisti a todos) os filmes da dupla apresentam um mesmo padrão lógico: falam sobre pessoas normais ou idiotas que se acham mais espertas do que realmente são. Que fazem planos apressados para se dar bem com falcatruas, mas ignoram a complexidade da realidade, sendo incapazes de suspeitar dos desdobramentos inusitados de suas ações.

Vejamos:

Em *Fargo* (1996):

Um vendedor incompetente e ressentido acha que tem o plano certo para extorquir o avarento e rico sogro por meio de um falso sequestro da própria esposa. Contrata dois bandidos tão idiotas quanto ele e tudo sai errado, e a esposa morre.

Em *Queime Depois de Ler* (2008):

Dois instrutores de academia medíocres encontram arquivos do livro de memórias de um agente da CIA. Acham que o conteúdo é importante e confidencial. Como se julgam muito espertos, eles bolam o plano genial de tentar chantagear o agente.. Tudo sai errado, e um deles morre.

Em *O Grande Lebowski* (1998):

Jeff Lebowski e seus dois amigos são três idiotas que se acham grande coisa. Lebowski é divertido porque, talvez consciente de sua própria mediocridade, é o que menos se leva a sério. Tentam trapacear um ricaço, mas tudo dá errado, e um deles morre. O "Grande" do título, aliás, é extremamente irônico, já que Lebowski é um ser humano da estatura moral de um chinelo de dedo.

Em *Onde os Fracos Não Têm Vez* (2007):

O aparente protagonista se acha muito esperto roubando a valise cheia de grana, mas é pego e, obviamente, morre. Ou seja: tudo dá errado pra ele também. A sensação ao assistir o filme é terrível. Você espera um trillher de ação que acaba no momento em que começa a ficar empolgante. Parece que o filme acaba pela metade.

Em suma, histórias ridículas que terminam de forma mais ou menos catastrófica e não oferecem lição alguma; gente normal ou idiota achando que um grande plano lhes irá livrar da ruína financeira em que vivem, golpistas e a opção pelo crime feita por gente que não consegue prever as consequências dos crimes... Tudo isso me faz gostar dos filmes dos irmãos Coen por um motivo muito particular: eles me lembram muito o Brasil.

11/01/23

Morpheus na Netflix


Sandman virou série na Netflix. Boa parte dos nerds saudosistas ficaram entusiasmados e eufóricos, mas eu pergunto: há real motivo para isso?

Infelizmente não há. A adaptação é fraca, diluída, entediante, com diálogos ruins, totalmente woke* - desnecessário para uma história que já era repleta dessa ideologia. Tiraram a maior parte do peso filosófico, do existencialismo melancólico (quase misantrópico) e do caldo de referências literárias e culturais que eram a perfumaria da HQ. A série, infantilizada para atingir maiores audiências, carece do brilho do cultuado gibi de Neil Gaiman; apesar da boa caracterização do protagonista e de que, sim, eu também acho legal ver o trevudo gótico e temperamental mestre dos sonhos (plágio descarado de Elric de Melniboné) numa versão "live action" com bons efeitos especiais.


Esse, porém, não é o único motivo. A atualização da história de Morpheus dos Perpétuos inevitavelmente provocará uma corrida ao ouro: assim como aconteceu a The Boys e The Walking Dead, os nerds que são de fato nerds - e hoje para ser nerd no Brasil basta saber ler e gostar de fazê-lo - irão buscar a fonte, recorrendo aos gibis clássicos de Gaiman. Bom para as editoras, ruim para os leitores; porque, a curto e médio prazo, como a cultura woke é a cultura oficial dos universitários e cronistas de cultura pop, veremos pipocar artigos do tipo: "Precisamos falar sobre o Machismo em Sandman"; "O Racismo e a ausência de deuses negros em Sandman"; "A gordofobia na obra de Neil Gaiman"; "Sexualidade, Transformismo e Identidade em Sandman".


E o nosso belo e querido Lorde, aristocrático e transcendente, será sequestrado para o discurso inconsequente de ateus toddynhos psolistas e jovens místicos, o que aumentará drasticamente a probabilidade de eu efetivar meus tão sonhados homicídios em massa num departamento de humanidades de uma boa e grande universidade deste país (USP, eu estou pensando em você!)

Gosto de Sandman e acho tudo isso lastimável. Assistam a série porque ainda assim é interessante e divertida, mas estejam avisados. E percam as esperanças...


* OBS: Por comodidade e espaço, usei aqui este termo gringo - "woke" - que refere-se a fenômenos como o identitarismo esquerdoso, o politicamente correto e a cultura do cancelamento.


                                                                        ***

Nota do Editor: o texto acima reflete uma opinião crítica milimetricamente fabricada para irritar fanboys e "guerreiros da justiça social", originalmente publicada em perfil no Facebook

09/11/22

Download: Um Sonho de Liberdade (1994)



Filme baseado em conto de Stephen King, "Um Sonho de Liberdade" - "The Shawnshank Redemption" no original - é daqueles filmes obrigatórios.

Embora ficcional, a obra é convincente ao mostrar as fragilidades da burocracia econômica e estatal. Já na prisão, dispondo de conhecimento privilegiado do sistema financeiro e fiscal, o protagonista decide auxiliar na feitura das declarações de imposto de renda dos guardas e na lavagem de dinheiro praticada pelo diretor. Com isso, naturalmente, recebe alguma condescendência das autoridades.

Em certo momento do filme, Dufresne, o protagonista que foi condenado injustamente, reflete: "Lá fora eu era um santo. Entrei na prisão e me tornei um vigarista". Ao que "Red", seu comparsa, interpretado por Morgan Freeman, responde com uma bela gargalhada.

Outro aspecto interessante do filme é sobre certos usos "acidentais" do conhecimento. A trama, no que tem de alegórica, sugere que o saber adquirido pela curiosidade descompromissada pode se revelar importante quando menos esperamos, como no caso de Dufresne com a Geologia. Isto é: não apenas o conhecimento técnico revelou-se útil, mas também o conhecimento amador, diletante.

Não sendo um homem particularmente poderoso ou magnânimo, e ainda em situação desfavorável, Dufresne realiza feitos inusitados e impressionantes, tudo isso porque possui inteligência, conhecimento e astúcia.

Esse é um dos filmes preferidos de muita gente; e é, sem dúvidas, um ótimo filme para assistir - especialmente em família.

Abaixo, o link para download do filme + legenda (o download é via arquivo torrent. Para baixar é preciso ter cadastro no Terabox):

26/10/22

A Importância da Literatura

 

[Raul Seixas, meio mulambo, lendo Orwell. De onde você acha que saiu a inteligência irreverente do Raul? E aquelas letras profundas e geniais? O cara lia de tudo.]

                          [Metamorfose, hein? Que sujeito mais kafkaniano!]

Vejamos o que o próprio Raul diz sobre a Literatura :

O Pasquim – Você poderia explicar sua formação literária, como você chegou a esse texto?
Raul Seixas Isso aí é uma coisa interessante. Antes de eu vir pro Rio eu pensava em ser escritor. Eu sempre escrevi. Antes de cantar, eu pensei em escrever. Eu tenho alguma coisa escrita guardada no baú que eu penso em publicar algum dia. Eu sou muito dado a filosofias, eu estudei muito filosofia, principalmente a metafísica, ontologia, essa coisa toda. Sempre gostei muito, me interessei. Minha infância foi formada por, vamos dizer, um pessimismo incrível, de Augusto dos Anjos, de Kafka, Schopenhauer. Depois eu fui canalizando e divergindo, captando as outras coisas, abrindo mais e aceitando as outras coisas. Estudei literatura. Comecei a ver a coisa sem verdades absolutas. Sempre aberto, abrindo portas para as verdades individuais. Assim, sabe? E escrevia muita poesia. Vim pra cá pra publicar.


Assim como o Raul Seixas, em muitos aspectos a literatura foi crucial para minha formação, a tal ponto que não consigo me imaginar, como ser humano, sem ela.

O caráter formativo, expansivo, educativo, os mistérios insolúveis, a riqueza psicológica, geográfica, as sutilezas e ambiguidades humanas, quase tudo o que aprendi de relevante sobre a vida, sobre o mundo, sobre Deus, sobre eu mesmo e sobre os homens, vi exemplificado nas narrativas literárias.

De todos os meus professores, os grandes autores da literatura foram os melhores, os mais honestos e os que menos negligenciaram minha inteligência e minha curiosidade. Diria até que não conseguiria ter atingido o nível de maturidade e estabilidade psicológica ao qual cheguei não fosse a literatura.

Poderia dizer que a Filosofia me ensinou a ter profundidade crítica, a História me ensinou a ser justo com os tempos e a Psicologia me esclareceu sobre as contradições humanas. Mas foi a Literatura que fundiu tudo isso em casos e contextos mais amplos, cheios de vitalidade, pessoalidade e transcendência, tão ricos de significados, interpretações, lições e possibilidades quanto a própria vida.

Mas dizer isso não é explicar. E para que se entenda como tudo isso ocorreu, especialmente aos não iniciados em literatura, convem explicar.

Eis, a seguir, um esforço explicativo. Uma tentativa de tornar inteligível a utilidade prática da literatura. Vou falar apenas sobre um aspecto, para o texto não ficar grande demais. Depois (me cobrem) desenvolvo sobre os outros aspectos.


Modelos Superiores

Todos os estudiosos do desenvolvimento humano estão de acordo que os jovens precisam de bons modelos. Na vida doméstica, na escola, na vida cultural e na vida religiosa. Tão pior será a sociedade quanto mais degenerados forem os modelos nos quais ela se inspira.

Pense agora nos modelos que inspiram os brasileiros do nosso tempo. Pois é! Trágico, não? Numa cultura que produziu gênios universais como Machado de Assis e Padre Landell, as pessoas só conseguem se emocionar com… Neymar. (Um sujeito cuja grande contribuição para o espírito humano foi: nada, absolutamente nada).

Assim, cresci numa cultura destroçada, carente de modelos superiores. Tinha ao meu redor, como símbolos de sucesso, funkeiros, pagodeiros, atores pornô, jogadores de futebol analfabetos e todo tipo de monstruosidade moral e estética disponível.

Como se orientar nesse caos?

Meus primeiros modelos, fora da realidade imediata, vieram da Bíblia. Mas eram modelos que não me atraiam, modelos muito arcaicos, nada tinham a ver com meu mundo. Alguns me pareciam modelos retardados, tolos. Matar o filho a mando de Deus? Não, obrigado. Abraão me parecia um idiota, e eu temia que meu pai realmente acreditasse naquilo, afinal eu era seu filho - situação perigosa!


[Machado de Assis. Quantas pessoas você conhece com uma visão tão profunda, realista e ao mesmo tempo divertida e engraçada dos defeitos e incongruências humanas?]

Vocês já leram Machado? Nunca? Meu Deus, que crime! Dá só uma olhadinha em quão divertido, revolucionário e genial ele era (em Memórias Póstumas..):

CAPITULO LV - O VELHO DIÁLOGO DE ADÃO E EVA

O velho diálogo de Adão e Eva

Brás Cubas
. . . . . ?
Virgília
. . . . .
Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . .
Virgília
. . . . . . !
Brás Cubas
. . . . . . . .
Virgília
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . .? . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Brás Cubas
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Virgília
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Brás Cubas
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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . !
Virgília
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ?
Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . !
Virgília
. . . . . . . . . . . . . . !

[Agora olha nos meus olhos e diz: é ou não o melhor e mais divertido capítulo de toda a Literatura Universal?]


Logo depois, encontrei variedades de modelos em outros clássicos da literatura, Gulliver e suas ácidas observações me marcaram para sempre, depois Poe, com seu caráter sombrio e excessivamente analítico. Oscar Wilde me deixou meio degenerado, confesso. Todos me trouxeram uma amplitude de espírito, de visão, de entendimento de aspectos diversos da sociedade, mas, fundamentalmente, me trouxeram modos de conduta e referências que exigiam de mim grande esforço para serem compreendidas e mimetizadas. Eu precisava de constante superação para que, de fato, pudesse ser como meus modelos literários, fossem os personagens, fossem os autores. Eu queria utilizar a linguagem que utilizavam, resolver os problemas que resolviam, ter amigos como os deles, fazer tudo com tanto charme, inteligência e perspicácia. Deixar diários e mistérios interessantes para a posteridade, ter lendas a meu respeito.

No mundo real, quem eu tinha para me inspirar? Dois ou três modelos!

Meu melhor modelo acessível no mundo real só fui conhecer aos 13 anos. Era um tio, muito erudito, bem informado sobre todos os assuntos, demonstrava uma grandeza moral, uma razoabilidade, um senso estético e uma apreciação da realidade que jamais encontrei nos círculos neopentecostais (macumbaria pseudocristã) nos quais fui criado. O tio era judeu. Diferente de todo mundo que havia conhecido até aquela idade, ele foi a primeira pessoa sobre quem pensei:

"Esse sujeito é como os personagens e os autores de livros, ele entende como o mundo funciona".

As respostas que as pessoas me davam, na maioria das vezes, não respondiam absolutamente nada, não me explicavam o mundo com clareza e distinção, só me deixavam mais confuso e produziam mais perguntas - que eu fazia, deixando as pessoas irritadas. Mas ele não, ele era realmente diferente. Contava toda a origem de um conceito, as refutações, as diversas possibilidades interpretativas, os eventos históricos que haviam sido influenciados pelas ideias, os erros da comunidade humana ao longo dos tempos... Tinha um vocabulário rico, sabia dizer quem fez o que na História. Em suma: não estava perdido no tempo e no espaço, sabia se situar na grande dimensão da aventura humana, sabia falar das conquistas e das contradições humanas, muito diferente das pessoas que só viviam por viver ou para sobreviver.

Em suma: ele nem parecia brasileiro. As pessoas que eu conhecia tinham só corpo, emoções e instintos. Mas ele tinha mente, tinha inteligência, profundidade psicológica, cultura universal, tinha alma. Meu tio, para usar aqui uma metáfora do Alexandre Soares Silva, "era um membro do clube".

Enquanto a maioria dos parentes o achava estranho pois não era igual a todo mundo, eu pude vê-lo grande, pois pensava e falava com a clareza dos grandes homens do passado, os quais conheci via Literatura. Tenho certeza que se não tivesse a formação literária prévia, só teria reconhecido a superioridade intelectual do meu tio tarde demais, e a teria ignorado como todo mundo fazia.


[Oscar Wilde. Quantas pessoas com um apuro estético tão fino e sofisticado você conhece? Quantos dândis estão em seu circulo de conhecidos?]


Experiência parecida me aconteceu muitas vezes ao longo da vida. Encontrei algumas pessoas sobre as quais eu podia facilmente compreender o comportamento, a lógica afetiva, o imaginário, porque já havia conhecido seus tipos psicológicos na literatura. Logo, já podia antever seus gostos, suas formas de pensar, etc. É basicamente como se eu tivesse à minha disposição um mapa de modos de pensar e de se comportar, com os quais eu podia calcular as consequências lógicas e práticas de determinadas condutas no mundo real (e comparar com as dos livros).

Tudo isso foi particularmente importante porque, com esse mapa, eu pude estabelecer critérios sobre quem me interessava no mundo e quem eu preferia manter distância. E por isso - só por isso - hoje posso me gabar de ter amigos incríveis, que me proporcionam vivências magistrais. Para dar apenas um exemplo, eu poderia citar minha amizade com uma senhora que é provavelmente uma das mulheres mais inteligentes do país.


[Nietzsche peladão com seus amigos. Quantos amigos realmente espirituosos, poéticos e irreverentes você tem?]


Uma boa analogia sobre esse aspecto tipológico da literatura pode ser feita com o jogo de xadrez. Perceba: um enxadrista é tanto melhor quanto mais preparado está para o estilo do seu rival. Quanto mais conhece o comportamento e as tendências do outro, maior é a capacidade do enxadrista de prever os movimentos, de se antecipar. A boa literatura, os clássicos literários, de Dante à Machado, te dão justamente "um mapa" dos estilos dos jogadores. É um mapa de arquétipos e também de situações possíveis. Daí o caráter universal da Literatura, daí sua relevância ao longo de toda a História humana.

O que você leu ontém, você vive amanhã.

Ter utilizado esse mapa me ajudou, por exemplo, a não ter experienciado tanto do racismo que dizem existir em nossa cultura. Afinal, já que eu conseguia entender como as pessoas pensavam, pude me precaver, agindo da melhor forma possível.

E esse é só um dos benefícios da Literatura, ainda há vários outros.


             [ A inspiração da juventude de hoje. Sem mais comentários.]


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Noda do editor: o texto acima foi originalmente publicado como resposta no site Quora.

14/09/22

Um Drama Profundamente Reacionário — Ou: Eu Ainda Não Mostrei o Popozão




Apesar de ter alguma pouca ambição literária (pecado infantil que ainda não perdi) não chego a me classificar como “escritor” e tampouco como “escritor em formação”. Quer o desejo de precisão que eu me qualifique pelo que fiz e faço. O que fiz e faço? Blogs: fiz e faço blogs. Tive-os aos montes e agora mantenho alguns. Sou, portanto, um blogueiro. Blogueiro blogspot. Blogspot, lembram o que é?

Há 10 ou 15 anos, o termo “blogueiro” designava uma pessoa geralmente jovem que tinha aptidão ou paixão literária e, por algum motivo, queria exercitá-la. Essa pessoa podia ser o seu vizinho adolescente, aquele seu amigo metido a cronista, aquele outro que se acha crítico cultural, ou podia ser um músico como o Lobão, o Humberto Gessinger e o Tico Santa Cruz (sim, todos eles tiveram blogs), podia ser também um escritor iniciante talentoso e com alguma reputação, como aconteceu com o Daniel Galera e o Alexandre Soares Silva, ou podia até ser um autor de nome consolidado e reputação mais ou menos ilibada, como o Sérgio Rodrigues. O comum entre todos era a paixão pelas letras, a busca do cuidado com as palavras, a performance literária, a reflexão.

Hoje, em grande parte por culpa de redes sociais como o Instagram, o termo “blogueiro” perdeu essa capacidade descritiva. Hoje qualquer jovenzinha de bunda mais ou menos arrebitada ou que saiba copiar e colar frases da Clarice Lispector se entitula “produtora de conteúdo” e “blogueirinha”.

Eu, que não quero de forma alguma me ver associado a esse tipo de gente, que pra mim nem é gente, ando tendo enormes crises de identidade. Não sei se me atualizo na carreira, migro pro Instagran e passo a tirar fotos da minha bunda e intercalá-las com versículos bíblicos e frases de empoderamento; ou se, estóico e teimoso, mantenho a tradição de blogueiros que escrevem — e tentam escrever algo mais ou menos interessante — em plataformas para blogs.

A minha solução provisória é me apresentar como cronista e blogueiro à moda antiga. Gosto, inclusive, de como soa reacionário e demodé. Já antecipo os olhares indignados da multidão, as falas de protesto: “Como assim ele é blogueiro e não mostra a bunda? Como ele não faz dancinhas? Como assim nenhuma citação da Clarice? Como ele quer ser blogueiro sem falar da opressão do polvo preto? Da dor das mulheres virgens com cachumba no joelho na Vila Inhaúma do Sertão de Atibáia? Como ele não usa SEO? Como não faz tráfico pago e não escreve copiaburro, digo: coypright? Que sujeito reacionário!”

Tenho medo que meu nome seja lançado aos guerreiros da justiça social e eu saia nos comentários do Twitter como o mais novo opressor das blogueirinhas. Estou amargo, desiludido, o peito dói. Mundo triste este em que nem os blogueiros de ofício são respeitados.

Ainda não mostrei o popozão. Mas até quando?

17/08/22

Lima Barreto: Sangue Nobre e Esquecido


 [Manuel Feliciano Pereira de Carvalho]      [Lima Barreto]

                              

Mulata livre, filha de escrava alforriada, a mãe de Lima Barreto - Amália Augusta - era originária da família Pereira de Carvalho. Segundo boatos, filha (bastarda) de algum dos varões da família.

Quem eram esses tais Pereira de Carvalho? Tratava-se, na verdade, duma importante e tradicional família carioca. Destacava-se o patricarca: o renomado cirurgião Manuel Feliciano Pereira de Carvalho. De ascendência portuguesa, Manuel Feliciano presidiu a Academia Imperial de Medicina e foi professor do médico espírita Bezerra de Menezes. Era tido como justo, caridoso e solícito; conhecido por seu tratamento humanista aos negros e mulatos. Os Pereira de Carvalho muito apoio concederam ao pai de Lima Barreto, o culto e jovem tipógrafo João Henriques. (Tanto apoio que foi da casa deles que veio a sua esposa, Amália).

Então, vejam, meus caros: de tal modo são as coisas neste mundo que, para nossa surpresa, o famoso escritor Lima Barreto, a quem conhecemos por anarquista, humilde e desafortunado, muito provavelmente tinha em suas veias o sangue da alta burguesia carioca - embora por vias bastardas.

A comparação entre suas feições e a de seu possível bisavô, Manuel Feliciano, é bastante sugestiva.

...

03/08/22

Um Óculos Para Mersault


Um simples óculos evitaria o homicídio mais idiota da Literatura.

Agonia ao reler O Estrangeiro. Que bem faria a Mersault um óculos de sol! (já existia em 1942...)E que mania horrível aquela de "tanto faz", uma indiferença cuja origem só pode ser a apatia ou um germinal niilismo. Sugere o segundo quando, várias vezes, inclusive diante da proposta de casamento, reage com "isto não significa nada", negando o valor das convenções.

Tipinho hedonista e sem ambições, Mersault é motivado sempre por ideias de jerico e pelo seu caráter morno, sem sangue e sem sal. Tipinho que dá nos nervos. Homem sem drama, sem dor, sem paixão. Tem o espectro emocional resumido em duas sentenças: "isto me aborrece" e "isto me agrada". Se lhe cortassem os bagos, era capaz de reagir com:"Tanto se me faz" ou "Aborrecia-me viver sem os bagos".

Mesmo o crime que comete não lhe é fruto da vontade, mas antes de equívoco. Evento descrito numa cena que, aliás, é mal escrita e deficiente em credibilidade: como é que se explica que Mersault, desnorteado e cego pelo calor excessivo, a nove metros de seu inimigo, acerte-lhe nada menos do que cinco tiros?! Falta coerência nesse arranjo: a cena não convence. Ora, àquela distância, nem a navalha do árabe oferecia ameaça e nem Mersault lhe poderia acertar os cinco tiros, visto a sua condição ser a de um fotossensível cego pela luz solar. O mais cabível na cena era que este atirasse aos céus e que o outro, assustado, fugisse.

Ante personalidade tão mequetrefe, entende-se bem o incômodo da sociedade julgadora: que mais se admira da falta de emoção do homem do que propriamente de seu crime.

É dito que essa obra de Albert Camus - considerada indevidamente um clássico - trata da filosofia do autor, que explora o conceito de Absurdo. É explicação leviana e equivocada, uma coisa nada tem a ver com a outra. O Mito de Sísifo é interessante e bem escrito. Em O Estrangeiro, exceto pela cena mal escrita de homicídio, nada há de absurdo no que acontece à Mersault.

Absurdo, absurdo mesmo, é que uma obra tal, tão tímida na forma e tão baixa no conteúdo, seja tão recomendada e tão lida por aí.

A minha vontade de leitor era a de aprender magia negra, ressuscitar Camus, pegar os meus volumes de Celine e Victor Hugo e dar-lhe incessantes bordoadas aos berros de: "Está vendo? É assim que se conta uma história, desgraçado!";"Tome! Sinta! Sinta, desgraçado! Sinta na pele a Literatura de gente!"

Concluo com o meu preconceito: quem nasce argelino, jamais chega a ser francês. Nasce pobre e faz pobre a literatura. Uma literatura assim, sem o L maiúsculo.