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16/08/23

Hierofante contra Ceifeiro




Quando eu era criança a minha família morava numa casinha humilde, num terreno cedido por meu avô,  parte de um lote maior do qual ele era morador e dono.

Não era um sujeito legal o meu avô. Havia algo de maligno nele.

Meu pai, que nunca  fora muito respeitado pelo ancião,  aceitara o terreno antes de se casar. Pensou que seria boa oportunidade para se aproximar do pai, um velhote boêmio, inconsequente e bugre,  que o gerou mas nem sequer o registrou com seu sobrenome. Ainda assim, nutria pelo velho uma sincera piedade. Papai carecia de uma vigorosa relação familiar, pois crescera numa família problemática e desorientada, sem a companhia tão importante de uma figura paterna. Meu avô nunca tratou bem o meu pai, no entanto, seu gesto de doação sugere que, a despeito de sua brutalidade, havia nele fagulhas do desejo familiar que abundava no filho.

Jovem, trabalhador e cristão: assim era papai. Casou-se com minha mãe e foi morar ao lado de meu avô. Homem com profundo senso de dever, meu pai era disciplinado e sagaz. Embora fosse inculto, faltando-lhe educação formal, superava esse inconveniente com maestria de gênio. Por ter saído de casa ainda menino, enfrentou o mundo na base do "eu me viro", desenvolvendo um sistema de conhecimento empírico incrivelmente preciso. Com três ou quatro princípios do comportamento humano, abstraídos de suas experiências, conseguia realizar milagres. Era um sujeito que certamente Dale Carnagie gostaria de entrevistar.

Meu avô, por outro lado, era desses ébrios incuráveis que, com curiosidade grotesca, as vezes observamos cambalear pelos bares. Embora trabalhasse como estivador, a sua miséria moral impedia-o de inspirar dignidade. Entre seus piores vícios estava o de conceber o ato sexual como mero alívio para suas necessidades animalescas e frustrações pessoais, culminando no terrível hábito de distribuir filhos entre as perdidas da cidade como quem distribuísse doces em dia de São Cosme e Damião. Tenho, por esse motivo, dúzias de parentes que  não conheço. 

Contudo, é preciso dizer: papai não sentia vergonha dessa sua origem; e, menos ainda, orgulho. Ele acreditava que as virtudes advém de restrições morais auto-impostas e da devoção a um ente absoluto e superior. Não tendo qualquer desses dois, a desgraça seria  completamente natural. E se não se envergonhava de sua pobreza, não tinha  intenção alguma de permanecer nela. Para ele, a evolução social era  consequência do trabalho duro, honesto e do uso adequado da inteligência. Era esse caminho que estava a percorrer. Não conhecia as ideias modernas do determinismo de classes e, se lhe contassem, era pouco provável que acreditasse. Quanto aos que obtivessem riquezas por meios contrários e imorais, pensava que seriam punidos: se não pelo homem, certamente pelo Criador. O mesmo valia para os que se deixassem seduzir e guiar apenas pelas paixões e  baixos desejos.

Havia, entre ele e meu avô, uma tensão que crescia. Papai era nobre de carácter, embora não o fosse de origem social, enquanto meu avô era um pária, em quase todos os sentidos. Mas isso sou eu quem diz. Papai não pensava assim do meu avô. Ele não desistia das pessoas que amava, mesmo que  as vezes não compreendesse muito bem  porquê as amava.  Conforme o tempo passava  a relação entre os dois ia ficando progressivamente difícil. Cada nova felicidade, cada conquista suada do trabalhador pobre que era meu pai, ia sendo encarada pelo velho como uma espécie de ofensa profunda, como se o desenvolvimento do filho lhe despertasse  a consciência da desgraça em que se havia inserido. 

O clímax dessa tensão se deu quando meu avô adotou um cão. Era um vira-lata  pulguento e doente, mas o velho parecia gostar do animal. Sua satisfação talvez se originasse do estado em que o bicho se encontrava: tão decadente quanto ele próprio. E o meu pai, com três filhos pequenos e alérgicos, sentiu-se desconfortável. Preocupado com os filhos, resolveu que iria ele mesmo cuidar do cachorro. Em ocasião propícia, meteu-se a  limpar o vira-lata. O ancião, que não deixava de censurar toda e qualquer atitude do filho, ao observá-lo no ato, perguntou o que fazia com o animal. Com naturalidade, papai explicou da doença dos filhos e da necessidade de higienizar o cão, alegando que não se importava em limpá-lo.

Foi o suficiente para enlouquecer o velho, que colerizou, endiabrou-se. O mal espiritual e psíquico que há muito o alimentava subiu-lhe à cabeça. No instante seguinte, tomou-lhe o corpo. Por fim, apoderou-se da alma. Calado, andou até o lugar onde guardava suas ferramentas. Calado, voltou. O andar, sinistro, ritmado era pelo descompasso entre a perna boa e a perna coxa. Seu olhar, envelhecido, raivoso, demoníaco, permitia antever uma tragédia. Sua cor, negra, brilhosa, acusava a ascendência africana, revelando naquele entardecer uma herança mística de seus antepassados. À sua frente o pequeno e inocente animal - que, cansado dos maus tratos que tivera na vida, certamente desejava alguns carinhos e cuidados - olhava-o curioso, abanando o rabo, franzino, sem desconfiar de seu fim desonrado e iminente. Nas mãos do dono brilhava uma foice. 

Todo o ambiente da cena compunha uma atmosfera de energia e emoção tão sinistras que, caso percebidas por um observador espiritual, faria-o lembrar da deidade da morte: o Ceifeiro. Meu pai compreendeu de imediato. Possuía espiritualidade autêntica, tinha percepção do mal. Cauteloso, afastou-se. Com perplexidade e abatimento viu o pai, aquele pelo qual se esforçava em ser próximo e amigo, estraçalhar com crueldade bestial o próprio animal de estimação.

Não era um sujeito legal o meu avô. Havia algo de maligno nele.

O grito de pavor  do pobre vira-lata jamais deixaria de acompanhar as lembranças que meu pai carregaria consigo. "Seu avô era ruim, meu filho" disse-me em algumas ocasiões, exibindo o olhar melancólico de quem gostaria que tivesse sido diferente. Tal evento teve significado muito profundo em sua vida. Se já havia nele o desejo por uma família forte, com valores, bons laços fraternais e virtudes de caráter, essa disposição passou a ser intensificada quase obsessivamente.

Em pouco tempo minha família se mudaria. E meu pai, junto de minha mãe, criaria os filhos com todo o esmero, amor, virtude e honestidade que sua obrigação de nobreza moral lhe impunha. Pretendia-se um antípoda de seu pai. Se o velho fora um Ceifeiro, tanto da vida quanto dos laços familiares, ele seria um Hierofante; aquele que estabelece os laços, que equilibra, que protege a família e a orienta, que sacraliza a vida e sacrifica-se por tais laços caso necessário. 

E ele se sacrificou, mais de uma vez. Principalmente por mim, o filho desgarrado, a quem o espírito de morte e de autodestruição, o mesmo do meu avô, incrustou-se na alma frágil, amorfa, sugestionável, amedrontada com o mundo e o fracasso. Mas meu pai, Hierofante, sempre me indicava a raiz dos males morais e espirituais, e onde combatê-los, ensinando-me que  o bem e o mal existem, que podem ser percebidos, e que é preciso as vezes fugir, as vezes lutar, mas sempre resistir ao mal.

Eu, infelizmente, só vim a reconhecer isso tarde. Se é possível que algum atavismo maligno seja transferido de geração em geração, aliciando os descendentes mais inseguros, é uma pergunta que sempre me faço. E se essa pergunta é apenas uma forma que encontrei de buscar causas externas para meus próprios demônios, é também uma questão que me aflige. Seja qual for a pergunta ou a resposta correta, penso que não as encontrarei.

No fim das contas, são questões que não importam. Aquilo com que devo me preocupar, a minha empreitada vital, deve ser a constante luta para que, em meu âmbito psíquico e moral, o  legado do Hierofante triunfe sobre  o do Ceifeiro.