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25/05/24

Amigos como o Hugo Motta


Foto deste cronista com o mestre Hugo Motta. Tirada, talvez, em 2018

Certa vez o Hugo Motta, depois de perguntar como eu estava, disse que pretendia avaliar-se através da comparação aos cinco amigos mais próximos - uma brincadeira, claro. Fiquei envaidecido pela estima do Hugo, que é, eu preciso dizer, um grande sujeito. E já explico que não o meço grande apenas pela inteligência, que é enorme, nem pelo fato de ser meu amigo. Digo tal coisa apenas porque, conhecendo-o, não poderia dizer outra.

Somos amigos há mais de uma década e, coisa curiosa, encontrei-me pessoalmente com o Hugo, no máximo, umas quatro vezes na vida. Foi durante uma conversa literária com o Lucas Lopes que o conheci. Viajando de ônibus, eu contava ao Lucas minhas impressões de leitura de A Metamorfose, de Kafka, e expressava, com ares professorais, uma intepretação sociológica mequetrefe lida na internet. Lucas ouvia atenciosamente. Ao lado dele, o Hugo Motta, que eu nunca tinha visto na vida, ouvia tudo e me olhava fixamente. 

Quando Hugo finalmente entrou na conversa, eu já tinha deduzido que ele, na certa, conhecia o Lucas. Muitos anos depois, Hugo confessaria: ouvira-me falar "uma besteira enorme" e teve de intervir. Dei risada. Ainda naquele dia do ônibus, quando ele se meteu na conversa de dois desconhecidos, eu notei nele duas características: era estranho e muito bem informado. Justamente o tipo de gente que me interessava. Memorizei seu nome. Depois solicitei sua  amizade na rede social mais usada na época. Quis saber quem era aquele esquisitão intelectualizado que ousara me corrigir e que, aparentemente, morava no mesmo Cafundó do Judas que eu. Quando Hugo Motta desceu do ônibus passou-se entre eu e Lucas o seguinte diálogo:

- Rapaz inteligente esse aí. É seu amigo, né?

- Não, cara. Não o conheço. Não é seu amigo não?

- Nunca o tinha visto antes.

E caímos no riso, surpresos. 

Assim eu conheci um dos sujeitos mais inteligentes e intelectualmente honestos que já tive notícia. Alguém que é  bom exemplo do que eu chamo de "intelectual doméstico". De lá pra cá, eu muito me beneficiei da caridade intelectual do Hugo, que sempre me concedeu referências preciosas. Foi ele quem trouxe  Wittegenstein e a filosofia moderna pra o meu mundinho que, até então, restringia-se a referências  filosóficas do romantismo e do iluminismo (Rosseau, Locke, Voltaire). Também ele, Hugo Motta, emprestou-me livros que foram da maior importância.

Nossa amizade ancorou-se, sempre, no fluxo de ideias. Nas conversas e debates dos temas da vida intelectual, política, espiritual, social, cultural, esotérica. As leituras,  as opiniões dos filósofos, dos intelectuais, dos comentadores, dos críticos. Os casos políticos e culturais do momento. As polêmicas, as piadas, as mulheres. E, claro, o gosto comum pelos fatos absurdos, hediondos, improváveis. (Hugo é exímio colecionador de atos questionáveis das criaturas humanas e de fatos peculiares do universo). 

A curiosidade intelectual generalista que havia em mim eu encontrei também nele, porém em versão refinada, erudita, poliglota. Estabeleci com ele a saudável conexão mental e afetiva que ao longo da vida eu reproduziria com outros bons amigos extraídos das redes sociais. E foi por  meio deles que tive acesso a inteligências e raciocínios que, sozinho, eu nunca alcançaria. A amizade com o Hugo deu-me acesso a gênios como o Manuel Doria, a quem eu pude fazer algumas perguntas, obtendo inesquecíveis respostas. 

Acho engraçado quando gente que não me conhece diz, ou imagina, que eu me acho muito inteligente. Como é que eu vou me achar inteligente quando a minha referência de inteligência é gente como o Hugo Motta e o Manuel Doria? E isso para não falar dos amigos programadores, cientistas, escritores, aventureiros. Eu sou tão confessional na contemplação da minha ignorância que declaro-me agnóstico, e, inclusive, já escrevi sobre a aventura que é viver tentando diminuir minha burrice cósmica.


Entre os livros e o xadrez, com o amigo Hugo Motta (que não queria aparecer).

Mas eu falava do meu amigo Hugo Motta. Escrevo sobre ele, e escreverei sobre outros amigos intelectuais, para dizer e reforçar uma ideia, um segredo que não deveria ser tão secreto assim. Ao leitor destas palavras, peço que se lembre disto: muito do que se tira de bom da vida intelectual, e quase tudo o que se aprende de relevante, vem do aprendizado informal, aquele extraído na convivência com amigos e contatos que são muito mais inteligentes e culturalmente experientes do que nós. Até os livros que nos farão a cabeça, os primeiros, aqueles de formação, dependem da indicação desses mestres informais.

O próprio Hugo, quando perguntei a origem de sua inteligência e erudição, disse-me que estudava Direito, mas era para não morrer de fome; pois quase tudo o que ele sabia de relevante tinha aprendido na internet, com amigos, artigos, sites e livros. Mais tarde, quando o conheci melhor, pude descontruir um pouco dessa visão romântica que ele tinha de si mesmo. Não que ela fosse falsa, mas, seguramente, não era explicação suficiente. Havia duas outras chaves que ele não havia mencionado: sua fluência no inglês e sua condição de filho da classe média. Mas isso, a relação do inglês e da classe média com a vida intelectual, eu comentarei em outra ocasião.

Ao constatar a grandeza de  amigos como o Hugo Motta, A Ruiva e tantos outros, fico satisfeito e envaidecido. Julgo por bem celebrá-los. Trazem-me esperança. É preciso que se diga: há grandes sujeitos neste país, muitos deles anônimos, não reconhecidos, esquecidos. Sei disso muito bem, pois conheço vários. Gente como o meu amigo Hugo, intelectual que morava em periferia e andava de ônibus. Gente assim existe. Mas, notem vocês, eu só pude chegar a ele porque conversava sobre literatura com um amigo culto. Semelhante atrai semelhante. Estivesse em roda de imbecis, idiotas, superficiais, aquela conversa não teria acontecido e eu jamais teria conhecido o Hugo. Foi sorte, mas foi aquela sorte que só acontece quando o contexto e o círculo social é favorável.

A lição é esta: não tenha demasiado medo de errar em seus comentários. Com sorte haverá, próximo, um sábio caridoso o suficiente para corrigi-lo. É claro que você sentirá vergonha depois. Mas a melhor hora para errar nas opiniões e interpretações é enquanto você é jovem. Admita ser corrigido por alguém que sabe mais. Ou, melhor ainda: queira, deseje ardentemente, ser corrigido por alguém que sabe muito mais que você; procure quem o possa corrigir. Pense na sua inteligência como um diamante bruto que a inteligência dos seus mestres ajudará a lapidar. Atue assim e naturalmente você ficará mais refinado - os outros hão de notar e te acusar o fato. Ficando mais refinado você será capaz de autolapidar-se; sem desprezar, claro, a boa e velha ajuda dos mestres.

Mostrei ao Hugo a minha melhor crônica. Ele, leitor de Umberto Eco e Roberto Bolano, honesto e impiedoso, deu nota 6. Caridoso, indicou-me alguns autores. "Imite-os para aprimorar seu estilo", ele disse. Grande Hugo! Bom e fiel amigo! Há mais de uma década atura-me e ilustra-me. 

Você, leitor jovem, trate de fazer bons amigos. Cultive amigos como o Hugo Motta. Ao ver-se beneficiada e enriquecida, a sua inteligência agradecerá. Acredite em mim, tenho outros bons amigos como Hugo. Sei bem o que digo.

28/06/23

Como se tornar um autodidata

É difícil sugerir um método categórico, universal e que se aplique a cada caso particular, pois as pessoas não possuem as mesmas habilidades e facilidades.

Contudo, pela minha experiência, diria que um bom começo é justamente essa consciência: refletir sobre como o processo de aprendizagem funciona para você, em que contextos ele ocorre de forma mais eficiente e mais prazerosa.

Em outra palavras, é preciso se questionar: O que você aprende com mais facilidade? Que tipo de assunto? Por qual tipo de abordagem? Você precisa de uma referência visual para entender bem um tópico (o famoso "quer que desenhe")? Ou prefere uma abordagem histórica?  Quando diante de um professor, você prefere a voz de um homem ou de uma mulher? Prefere estudar de dia ou no silêncio da noite? Prefere estudar em grupos ou sozinho? Em sala de aula ou fora dela?

Muito do processo do autodidata consiste numa adequação dos meios e formas de ensino às suas preferências e habilidades. O termo de ordem aqui é personalização do processo. Quanto mais ativo você é no seu processo de aprendizagem, mas natural ele se torna para você. Já experimentou fazer uma lista com os temas ou problemas que mais te interessam e depois passar um tempo investigando os melhores livros, vídeos e áudios básicos a respeito? Pois esse é um bom começo!

Existe uma série de coisas que as pessoas aprendem espontaneamente ao longo da vida, isso porque aprender é uma habilidade natural.

Dito isso, devo enfatizar que a base do autodidatismo está num imperativo moral de autorresponsabilidade. Por que esperar que a informação chegue até você, via professor ou curso, se você tem os recursos e a inteligência necessária para ir atrás dela? É antes uma questão de amor ao conhecimento, de respeitar sua curiosidade, de amar a atividade investigativa e de ter brio. Se algo realmente te interessa, é você quem deve correr atrás!

Claro que isso não significa que você vai ser capaz de aprender tudo sozinho, sem interferência externa ou sem a ajuda de alguém que entenda melhor o assunto. Autodidatismo não é isso. A rigor, ninguém aprende nada sozinho (mesmo quem aprende majoritariamente por livros está aprendendo com outra pessoa: o autor). Tudo o que você deve fazer é pesquisar e gerenciar as fontes de informação e sua interação com elas. Decidindo quais são as melhores para você e em que contexto você vai utilizá-las, estabelecendo uma ordem nas atividade, etc.

Nesse processo, você deve usar como arma as habilidades que já possui. Sua memória é boa? Ótimo, considere isso em seu sistema, não tenha pudor em memorizar esquemas.

Sua memória não é tão boa, mas você gosta muito de ler e é muito paciente? Ótimo, procure as melhores fontes básicas nos livros e as explore até dominar o conteúdo.

Você não tem nenhuma grande habilidade, mas é do tipo competitivo que faz qualquer coisa quando é desafiado? Pois bem, escolha algum sujeito metido mais inteligente que você, numa matéria que você sente que pode melhorar, e só pare de se dedicar ao assunto quando superá-lo ou for, no mínimo, tão bom quanto ele.

Outra coisa necessária para começar é ter um meio de medir o seu progresso e domínio no assunto. É possível fazer isso por meio de provas e exercícios, conversando ou debatendo com especialistas, escrevendo e dando aulas sobre o tópico em questão e, claro, produzindo algo com aqueles conhecimentos (se forem conhecimentos técnicos/ práticos). O melhor sistema de checagem é o que inclui todos esses.

Dê uma olhada neste vídeo: nele um dos maiores intelectuais do século passado fala um pouco sobre o processo de educação autodirigida: 

                              

Para resumir, as dicas básicas para começar a se tornar um autodidata são:

  1. Mapeie seu perfil cognitivo. Como você aprende, onde você aprende, em que velocidade você aprende e com quem você aprende. Saiba o que facilita eu processo de aprendizagem e o que o dificulta.
  2. Selecione todos os facilitadores da aprendizagem e crie um sistema pessoal com eles.
  3. Tenha e cultive a autonomia e resiliência, não aceite tudo o que uma suposta autoridade te diz, investige e tire suas própria conclusões. Se você pode pensar em uma pergunta, então também pode se dedicar a pesquisar e estudar para respondê-la. Quanto mais importante for a questão para você, mais dedicado você será.
  4. Saiba recorrer a todos os tipos de fontes, saiba sobre as qualidades e defeitos de cada fonte. Professores, livros-texto, dicionários, enciclopédias, vídeos-aula, audios/podcasts, paletras, etc. Experimente todos e selecione quais são as melhores para você.
  5. Adicione um elemento lúdico ou emocional que torne a coisa prazerosa, apaixonante. Que te anime ou inspire. Há muitas forma de fazer isso, desde participando de jogos e competições que envolvam conhecimento até estudando a obra de pessoas notáveis que passaram a vida se dedicando a investigar certos temas. A cultura é uma ótima forma de inspirar e motivar. Consuma filmes, livros, animes, espetáculos teatrais e shows sobre os assuntos que te interessam.

Isso é só um início, mas deve ajudar.

                                                 

                                                                   ***


      Dica originalmente publicada no site Quora, em 25 de Junho de 2019