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10/05/23

Ela Dança Enquanto Come





E se ela não gostasse? Meus amigos gastronômicos achavam maravilhoso, eu adorava, não conhecia quem reclamasse, mas... e se ela não gostasse? Ela cozinhava, parecia entendida. Talvez fosse chata com comida. Será? Tarde demais, porque já estávamos sentados esperando o yakisoba do china.

Eu apreensivo, ela revelando que lhe era habitual dançar levemente enquanto comia. Justificava se dizendo esquisita. Mas eu a pensava divertida, animada, espontânea. Fiquei de olho quando ela foi comer. Rejeitou a carne e pediu um mar de shoyu. Logo nas primeiras garfadas a expressão de satisfação despontou, e ela, tão bonita, meneava a cabeça em dança sutil enquanto comia. Eu assistia, dava risada e me deliciava com aquela presença. Porém, em meu íntimo, ainda duvidava. Estaria mesmo ali, com ela? Não seria delírio, sonho, ilusão?

Dois meses antes, numa festa infantil, eu a vi pela primeira vez. Ela estava lá, muito peculiar, distinta, dona duma beleza mediterrânea e tropical; os traços finos, a cor morena, vestindo preto, um ar de mistério e de mulher interessante que lhe é tão próprio. Ela e o filhinho, muito novo, ambos num canto da festa, esparramados ao chão, brincavam, concentrados um no outro. Imensa devoção ao filho. Moça linda e encantadora, pensei, de aura magnética... Quem será? Donde vem? O que sente? O que pensa? Que dores, que amores, que temores? Que veria neste perdido? Daria-me amizade, carinho, afeto ou desdém?

Eu acompanhava a amiga Marina Lemos e conversava com agradáveis pessoas, mas a figura daquela mãe misteriosa me fazia a cabeça e me atiçava o olhar. Meu sentimento era estranho, vago, indefinido. Um repentino e aparentemente injustificável encantamento, vontade de conexão que me fazia querer mais dela: a voz, o sorriso, a personalidade, o jeito.

Impossível conhecê-la. O motivo: ela mãe, eu vagabundo. Ela integrada ao mundo, eu deslocado dele. Ela viva, muito viva, eu meio morto, meio suicida. Apesar do encanto, fui racional, optei pela renúncia. Um notívago na vida de uma mulher tão solar? Difícil. Se - mesmo sem malícia - eu lhe dissesse que ela se fazia radiante ao brincar com o filho, e que emanava um magnetismo muito próprio, passaria ridículo. Que pensariam? Sujeito mau caráter, cortejando mãe que cuida do filho, tarado implacável, canalha, imoral, pervertido, pornógrafo disfarçado de escritor. Não, eu não deveria aborda-la, não era prudente.

Ignorar a atração. Seguir a vida. Assim, sem saber quem ela era, tendo só a lembrança de um encantamento talvez injustificado. Capricho de minha imaginação literária, que via coisa onde nada havia. E tudo o que eu teria dela: um vislumbre.

Para renunciar sem lamento, uma técnica sofisticada. Primeiro, convenci-me de que foi a beleza o que me atraiu, depois imaginei nela uma personalidade banal. Evangélica, caretíssima, sem ideias próprias, experiências traumáticas ou um grande sofrimento na alma. Seria essa a minha verdade. Uma pena existirem no mundo pessoas de aura tão encantadora e conteúdo tão precário. Mais uma das grandes contradições da vida, pensei. E fiz-me liberto daquela atração. Deu muito certo, ao menos por um tempo.

Não mais a vi e já imaginava-me livre de seus encantos.  Assim foi até ontem - dia maldito no qual aquela moça me enredou de vez...

Ontem: o segundo e fortuito encontro. Outro lugar, outro contexto. Com ela lá, tive de novo o sentimento, a curiosidade, o interesse. Havia algo novo, uma informação que dizia: "Erraste feio, João Ramalho, porque ela não é medíocre coisa nenhuma, deve ser muito interessante, isso sim". A conduta diferente, inusitada. Naquele show de Rock, ela de aura solar, todos de preto e ela de regata amarela. No meio do caos, ela lia, sozinha, independente, certa de si, livre. Livro volumoso, capa dura, ela sentada em semi-lótus, arvore atrás, as pessoas passando, este autor  inebriado pelo álcool, o cover de Led Zeppeling tocando Immigrant Song, o entardecer, tudo ocasião propícia, tudo convidativo. Deveria falar com ela, era óbvio, era um chamado.

E então, passadas  algumas horas, nós estávamos ali, entrosados, atentos, falando sem parar e curiosos um com o outro. Ela mãe e trabalhadora, eu solitário e vagabundo. Ela solar, eu lunático. Nossa divertida interação incluiu peregrinar na noite pela cidade (ideia dela), apreciar o melhor yakisoba da região (ideia minha) e desfrutar uma rica conversa que esmiuçaria detalhes complicados de nossas biografias.

Já tarde, pouco antes das dez, depois de muita prosa, andanças, sorrisos e revelações, nos despedimos.

Longe de casa e do show, nas ruas escuras e quase desertas de uma região talvez perigosa, eu regressava ouvindo música no headphone, e pensava no inusitado daquela conexão.

Difícil compreender a nossa insuspeita harmonia. Antes, tentara fugir dela, renunciá-la. Mas agora me via girando em seu vórtex de charme, carisma e seu imenso fogo de vida. Uma sensação que aquilo devia acontecer, que não podia ter evitado. E ela... a personalidade tão parecida com algumas mulheres do meu passado... Relação déjà-vu? Fatalidade? Eterno retorno? Destino? Não sei, não sei...

Ainda penso no seu jeito divertido, na história de vida tão interessante, com episódios muito tristes, dramas e mistérios. Se a verei novamente eu não sei, nem me atrevo a especular.  Satisfeito com o encontro, alegro-me ao pensar naquela moça tão incomum. O brilho no olhar, o sorriso, o bom humor...

Lembro, sempre lembro e sorrio: se a refeição é boa, ela dança enquanto come.