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01/07/24

Lembranças de Uma Utopia Virtual


Samuel Fernando polemizando
                                             

Há alguns anos eu tive um perfil excluído pela moderação do Facebook. O feice diz oferecer ao usuário um espaço de discurso, mas seu verdadeiro objetivo  é monitorar as ações dos usuários para criar perfis de consumo precisos; e, com isso, otimizar algoritmos de escolha de anúncios personalizados. Todos sabem disso, e eu sabia na época, mas quis jogar o jogo perigoso da liberdade de expressão, testar os limites, até porque, ingênuo, eu não esperava o pior. Deu no que deu, e me arrependo, pois havia conversas interessantes no perfil. 

Uma delas foi com o professor Adonai Santana, que é um importante físico teórico do país, e discípulo de Newton da Costa, um dos nossos maiores filósofos da ciência. Na conversa perdida, o ilustre professor (que durante a Pândemia escreveu um esclarecedor guia de Matemática) disse que o meu perfil era um dos mais divertidos, e que comentara a meu respeito com sua esposa.

John Ramalho: um caso psiquiátrico.

                     

Outro que disse coisa semelhante foi o meu mestre e amigo Paulo Cesar Santos. Programador, físico, músico e professor de Ciência Política da UFF, nas palavras dele o meu (antigo) perfil faria muito sucesso se o público geral fosse mais inteligente (disse isso ou algo parecido com isso). Era, de fato, um perfil bastante irreverente. Meio tresloucado, as vezes de um humor pitoresco, geralmente maligno, anti-humanista, misantrópico, apaixonadamente anti-sionista, muito politicamente incorreto e as vezes de uma paranoia quase delirante, palatável apenas às mais altas mentes. Prova disso é que até mesmo a Natália Sulman, essa modesta musa maior do olavismo, chegou a curtir e comentar uma minha humilde publicação.

Mas o arauto maior, o grande entusiasta das Más Letras Ramalhescas, aquele que me conduziu ao Olimpo dos Intelectuais e Musas Letradas do Facebook, foi, certamente, o indefectível Samuel Fernando. Biólogo, neurocientista e polímata paulista que, por algum período, engajou-se no mais elevado ativismo cultural que a comunidade letrada da internet tupiniquim já testemunhou. 

O perfil do Samuel Fernando – “Samuca” para os íntimos – era a Meca dos Pedantes. Todo mundo que achava que sabia muito (ou que desejava saber muito) acabava chegando lá, e, entre o deslumbramento e a inveja, descobria que o Samuel sabia mais; muito, muito mais

No que ele postava, e sobre o que ele postava, comentavam físicos, matemáticos, filósofos, biólogos, autistas com hiperfoco em ciências, altos QIs, professores, psiquiatras, psicólogos, neuropesquisadores, literatos, marxistas, olavetes, engenheiros, programadores; gente de todo o Brasil e de fora dele também. Era uma verdadeira utopia de gente articulada, que falava coisas com sentido e com algum (ou muito) conhecimento. E o Samuel, para o meu espanto e prazer, compartilhava, vez ou outra, algumas das minhas postagens. Logo pessoas começaram a me adicionar. Mulheres, inclusive. Era bom. Foi legal. Mas acabou. E acabou mal: com meu perfil excluído.


Diagnóstico rápido: "ele é doido".
       

Lembro carinhosamente desse período, não apenas por minha pequena popularidade de subcelebridade letrada de alto nicho, mas principalmente pelos amigos que fiz, as pessoas legais, divertidas e inteligentes que conheci. 

Gente como o querido Mateus Marcuzzo, engenheiro de software brasiliense e leitor filosófico com um coração nobre e ético, alguém cuja sensibilidade humanista exerce sobre mim um inegável efeito positivo. A Maria Cristina Batoni Abdalla Ribeiro, uma das maiores físicas do país - amiga de figurões como Marcelo Gleiser. Maria tornou-se uma amiga querida, uma fonte de inspiração e de bons conselhos. Cheguei a me encontrar com ela na UnB. 

Também o brilhante Stanis Lucksys, um expert em Linux que chegou a desenvolver seu próprio sistema operacional. Autodidata no que quisesse, Stan era também filósofo, músico, intelectual e um talentoso cronista. Amigo querido e cuja identificação foi grande e mútua. Stan cunhou para o nosso grupo de amigos a divertida alcunha de "Os Irresistíveis"

Enriquecia-nos a presença da Isa Murphy, apelidada “Lady Murphy”, uma goiana bela e cativante, melancolicamente solitária, falava francês, apreciava HQs, o gosto musical excelente, alma compatível, flertamos, claro. 



Havia também o sempre ponderado, lúcido, filosófico e divertido Marcus Vinícius. Psicólogo erudito, Marcus vive a combater os excessos e equívocos do identitarismo progressista. Por sua prosa bela, sóbria e profunda, considero-o um dos melhores escritores e comentaristas culturais do país. Tinha o Pedro Luiz Borba, de grande pendor argumentativo e estimulante inteligência, com quem travei alguns respeitáveis debates.

E a Carol Sorokin, que namorava o Stanis, mas que eu sonhava em ter para mim, porque era brilhante, linda e amiga. Também a queridíssima Paloma Rangel, de quem eu já falei numa carinhosa crônica e de quem pretendo falar ainda mais em outras. E não posso esquecer da doutora Ana, uma médica autista fascinante, com ouvido absoluto, inteligentíssima, a quem eu gostava de confundir com contradições, ironias e afetações de insanidade. Ela, a bela doutora de olhos hipnotizantes, fazendo o corolário de nossa divertida interação, proferiu a que talvez seja a melhor descrição que já fizeram deste blogueiro. Além desses amigos, havia outros cujo contato era menos frequente, mas de inegável enriquecimento mútuo. 

                                 Richard Nixon sorri no inferno..

Compartilho aqui as palavras da doutora Ana, pois até hoje me deliciam e divertem. Disse ela uma frase que, por seu poder de síntese, deverá constar nos comentários dos meus críticos futuros: “John Ramalho é para mentes privilegiadas”.


***

Abaixo, publico um inesquecível presente da Carol Sorokin. Gaúcha e psicóloga formada pela USP, a Carol era também enxadrista, poliglota, musicista e escritora. Sua aparência era tão sublime que ela evitava as fotos. De fato, Carol era praticamente uma sósia da Natalie Portman

Lembro dela mais pelas ótimas conversas madrugada afora, pela mente afiada e pela foto peculiar do perfil, que mostrava apenas dois pezinhos envoltos em meias de lã vermelha. Mas incluo aqui o fato da sua beleza, que era notável, e que ninguém poderia negar, ou esquecer. Nunca falei disso com ela, nem sequer um elogio, e conto a vocês apenas porque é verdade e ajuda a dimensionar as muitas qualidades dessa moça impressionante. Quando ela cismou de homenagear as pessoas que lhe eram queridas, fui um dos contemplados, e ganhei dela um tocante discurso: 

                                

O Homem Que Ri


Que as pessoas são todas diferentes todos dizem! Todos parecem ter decorado isto como se fosse a tabuada do um, mas na prática pouca gente compreende o significado dessa afirmação. Que existem problemas cuja a solução está fora do nosso alcance, seja na vida pessoal, ou em termos científicos, isso já é algo que nem todos sabem.

Ele sabe tudo isto! Ele manja de todas as coisas que não importam para quase ninguém, mas que na verdade são as coisas que mais importam para quem não é ninguém, é muito alguém!

E eu converso com ele e vivo elogiando terceiros e ele talvez não saiba que também falo dele pelas costas. Todas as suas qualidades! Mas só depois de minuciar cada mísero defeito, claro...

O que faz ele especial é que não é vaidoso, soberbo nem invejoso, é um romancista, filosofista, cronista, psicologista e até letrista, em crise com seu próprio lado romântico, que ele desesperadamente tenta esconder e não consegue. Mas nem todos percebem, só nós, os outros românticos. Pois ele é um personagem de um livro do Victor Hugo com ideias do século XXIII.

Assim, ele é bem humorado e carinhoso com as palavras. Com as palavras! Não necessariamente com quem ele as dirige. Tem um ar sedutor, dispendido para com as meninas inocentes em fóruns de literatura e filosofia, e é do tipo que escreve cartas e não envia. Depois, ainda reescreve para não reenviar!

Tem um carisma incomparável e não há quem não fique bravo com tamanhas bobagens inteligentes que ele fala. O carisma dele consiste em ser belo e imagético, mas só até certo ponto e até certa hora, depois ele muda de ideia em 180 graus e, num segundo, já é pela sua voz de locutor de radionovela da extinta Tupi.

E isto tudo é só um tiquinho, pois eu não conheço ele tão bem quanto eu gostaria, mas é uma brincadera com muito fundo de verdade, porque ele é, e todos sabem disso, uma pessoa excepcional, no melhor sentido. Em nada eu menti e espero sempre conhecer mais dele.

E como eu estou escrevendo essa série e disse que ia incluir algumas pessoas, hoje é o meu homenageado. De coração!

John, meu querido, é uma felicidade saber que a internet e as pessoas em comum que temos afinidades proporcionaram que eu pudesse lhe conhecer. Você é um amigo, quero que você considere-se assim, como se nos conhecêssemos há tempos e vidas. Você é especial, tem uma mente e um coração especial que trabalham em plena sintonia entre si e com os outros.

John Ramalho é mais ou menos isto tudo, mais mais do que menos.


***

E eu respondi:

 

Sempre me perguntei se, numa amizade, é possível fugir à pieguice. Sempre concluí, indignado, que não. A coisa é inevitável: quando temos amigos, em algum momento seremos obrigados a demonstrar afeto. Pois não tendo ânimo para pieguices e demonstrações de afeto, decidi, por bem, não ter amigos. E assim matei dois coelhos numa cajadada só. Ou, ao menos, tentei.


Curiosamente, como em tudo o mais na vida, também nisso eu fracassei. Não só não consegui não ter amigos, como também não consegui não me afeiçoar a eles.


Coitados. Pobres coitados dos meus amigos. Coitados, porque meu amor é como um vírus sorrateiro: intoxica e faz adoecer. Por isso sempre aviso: não ande com o John, não converse com o John, não dê ideia para o John. O John é perigoso. Ele pode te fazer pensar. Ele pode te fazer duvidar. Ele pode te ferir, te fazer desistir ou te fazer tentar. E pior de tudo, ele pode te fazer acreditar. E nunca, nunquinha, jamais, você irá entender o John, porque ele é tão etéreo quanto as ideias que professa e tão verdadeiro quanto o éter que os físicos teorizaram no século XIX.

O John é como o átomo: é divisível e formado mais por vazio que por matéria. Ele é um nada que existe. John Ramalho é alguma coisa como um fantasma. Sua mãe sempre lhe disse que, em decorrência de dificuldades pulmonares que teve após o nascimento, ele "nasceu sem respirar" e, portanto, "nasceu praticamente morto".

Como vocês sabem, não é todo mundo que nasce praticamente morto. A maioria, segundo consta, nasce praticamente vivo. John Ramalho, portanto, é uma raridade. É um zumbi. Nasceu praticamente morto e viveu ainda mais morto. Sobre o Fernando Sabino dizem que nasceu homem e morreu menino. Sobre o John Ramalho dirão que nasceu morrendo e viveu a morte.

Seja como for, apesar dos avisos, há sempre algum tolo, ou tola, que não escuta. E lá vai, desprevenido ou desprevenida, fazer o pacto com o Fantasma, com o Zumbi, com a Besta. E acaba descobrindo que o Diabo, apesar de feio, é menos feio do que parece.

Há gente nesse mundo que tem o coração tão grande e tão generoso que consegue apaziguar mesmo aqueles que estão destinados ao inferno.

Você é uma dessas pessoas, Carol Sorokin.

Agradeço a amizade, a paciência, a boa prosa e as palavras, tão belas e divertidas, e que foram muito mais gentis do que a verdade. Não que tenhas feito mal, afinal, pelos amigos, sempre vale a pena mentir.

A Isa se foi e me deixou cá no peito um vazio. Um sentimento de trouxa. Mas quer saber? A Isa era legal, mas ela que se foda. Se ela era legal, você é muito mais.

 

        ***

 

Apesar da boa amizade e do afeto verdadeiro entre nós, pouco tempo depois de escrever isso, Carol desapareceu da minha vida. Sei bem porquê, e não posso dizer que não havia motivo, já que não foi só comigo. Mas ainda não sei se perdoo. Talvez a homenagem fosse a sua forma de despedida...

Fato astrológico curioso é que Carol fazia aniversário apenas um dia antes de mim. Era virginiana. Na verdade: eram; tanto ela quanto a Isa. Mas para a Lady Murphy eu nunca perguntei o dia do aniversário. Ao descobrir que a Isa era virginiana eu soube imediatamente da atração fatal que nos acometeria. Caso descobrisse que ela fazia aniversário no mesmo dia que eu, tal coisa teria um efeito profundo em minha mente, gerando uma ansiedade mística que eu preferia evitar.

Antes do sumiço da Carol, eu e Isa nos afastamos, não por brigas ou rancores, mas por contingências da vida que se colocaram entre nós. Ou, talvez, por conta da minha covardia afetiva; a constante fuga de tudo o que pode me levar a uma grande paixão.

Não foram elas as primeiras moças virginianas de quem eu fui próximo, nem serão as últimas. Na verdade essa tem sido uma ocorrência tão peculiar e recorrente em minha vida que mudou minhas antigas ideias sobre a Astrologia (coisa sobre a qual devo escrever noutra ocasião).

 

***


Além de mim, e dos amigos já citados, há outra testemunha. O amigo Maycon Antônio, um jovem universitário com boa ambição intelectual, estudante da UFPR e leitor deste blog. Maycon frequentava o meu perfil e lá interagiu com essas pessoas, presenciando muitos dos debates e episódios divertidos. 

Registro tudo isso, pois aconteceu; e é bom que saibam que aconteceu. Resta a consciência de que, usando adequadamente a internet, esses encontros de pessoas afins, e de boas confrarias, acontecem. São as nossas pequenas utopias virtuais. Encontros que seriam muito difíceis de acontecer na realidade, mas são possíveis na web. 

Deixo, enfim, calorosos abraços aos meus amigos (e beijos e abraços às amigas). Que esta webcrônica sirva como testemunho do meu afeto aos que ficaram e aos que sumiram, onde quer que estejam. Por mim jamais serão esquecidos. 


25/05/24

Amigos como o Hugo Motta


Foto deste cronista com o mestre Hugo Motta. Tirada, talvez, em 2018


Certa vez o Hugo Motta, depois de perguntar como eu estava, disse que pretendia avaliar-se através da comparação aos cinco amigos mais próximos - uma brincadeira, claro. Fiquei envaidecido pela estima do Hugo, que é, eu preciso dizer, um grande sujeito. E já explico que não o meço grande apenas pela inteligência, que é enorme, nem pelo fato de ser meu amigo. Digo tal coisa apenas porque, conhecendo-o, não poderia dizer outra.

Somos amigos há mais de uma década e, coisa curiosa, encontrei-me pessoalmente com o Hugo, no máximo, umas quatro vezes na vida. Foi durante uma conversa literária com o Lucas Lopes que o conheci. Viajando de ônibus, eu contava ao Lucas minhas impressões de leitura de A Metamorfose, de Kafka, e expressava, com ares professorais, uma intepretação sociológica mequetrefe lida na internet. Lucas ouvia atenciosamente. Ao lado dele, o Hugo Motta, que eu nunca tinha visto na vida, ouvia tudo e me olhava fixamente. 

Quando Hugo finalmente entrou na conversa, eu já tinha deduzido que ele, na certa, conhecia o Lucas. Muitos anos depois, Hugo confessaria: ouvira-me falar "uma besteira enorme" e teve de intervir. Dei risada. Ainda naquele dia do ônibus, quando ele se meteu na conversa de dois desconhecidos, eu notei nele duas características: era estranho e muito bem informado. Justamente o tipo de gente que me interessava. Memorizei seu nome. Depois solicitei sua  amizade na rede social mais usada na época. Quis saber quem era aquele esquisitão intelectualizado que ousara me corrigir e que, aparentemente, morava no mesmo Cafundó do Judas que eu. Quando Hugo Motta desceu do ônibus passou-se entre eu e Lucas o seguinte diálogo:

- Rapaz inteligente esse aí. É seu amigo, né?

- Não, cara. Não o conheço. Não é seu amigo não?

- Nunca o tinha visto antes.

E caímos no riso, surpresos. 

Assim eu conheci um dos sujeitos mais inteligentes e intelectualmente honestos que já tive notícia. Alguém que é  bom exemplo do que eu chamo de "intelectual doméstico". De lá pra cá, eu muito me beneficiei da caridade intelectual do Hugo, que sempre me concedeu referências preciosas. Foi ele quem trouxe  Wittegenstein e a filosofia moderna pra o meu mundinho que, até então, restringia-se a referências  filosóficas do romantismo e do iluminismo (Rosseau, Locke, Voltaire). Também ele, Hugo Motta, emprestou-me livros que foram da maior importância.

Nossa amizade ancorou-se, sempre, no fluxo de ideias. Nas conversas e debates dos temas da vida intelectual, política, espiritual, social, cultural, esotérica. As leituras,  as opiniões dos filósofos, dos intelectuais, dos comentadores, dos críticos. Os casos políticos e culturais do momento. As polêmicas, as piadas, as mulheres. E, claro, o gosto comum pelos fatos absurdos, hediondos, improváveis. (Hugo é exímio colecionador de atos questionáveis das criaturas humanas e de fatos peculiares do universo). 

A curiosidade intelectual generalista que havia em mim eu encontrei também nele, porém em versão refinada, erudita, poliglota. Estabeleci com ele a saudável conexão mental e afetiva que ao longo da vida eu reproduziria com outros bons amigos extraídos das redes sociais. E foi por  meio deles que tive acesso a inteligências e raciocínios que, sozinho, eu nunca alcançaria. A amizade com o Hugo deu-me acesso a gênios como o Manuel Doria, a quem eu pude fazer algumas perguntas, obtendo inesquecíveis respostas. 

Acho engraçado quando gente que não me conhece diz, ou imagina, que eu me acho muito inteligente. Como é que eu vou me achar inteligente quando a minha referência de inteligência é gente como o Hugo Motta e o Manuel Doria? E isso para não falar dos amigos programadores, cientistas, escritores, aventureiros. Eu sou tão confessional na contemplação da minha ignorância que declaro-me agnóstico, e, inclusive, já escrevi sobre a aventura que é viver tentando diminuir minha burrice cósmica.


Entre os livros e o xadrez, com o amigo Hugo Motta (que não queria aparecer).

Mas eu falava do meu amigo Hugo Motta. Escrevo sobre ele, e escreverei sobre outros amigos intelectuais, para dizer e reforçar uma ideia, um segredo que não deveria ser tão secreto assim. Ao leitor destas palavras, peço que se lembre disto: muito do que se tira de bom da vida intelectual, e quase tudo o que se aprende de relevante, vem do aprendizado informal, aquele extraído na convivência com amigos e contatos que são muito mais inteligentes e culturalmente experientes do que nós. Até os livros que nos farão a cabeça, os primeiros, aqueles de formação, dependem da indicação desses mestres informais.

O próprio Hugo, quando perguntei a origem de sua inteligência e erudição, disse-me que estudava Direito, mas era para não morrer de fome; pois quase tudo o que ele sabia de relevante tinha aprendido na internet, com amigos, artigos, sites e livros. Mais tarde, quando o conheci melhor, pude descontruir um pouco dessa visão romântica que ele tinha de si mesmo. Não que ela fosse falsa, mas, seguramente, não era explicação suficiente. Havia duas outras chaves que ele não havia mencionado: sua fluência no inglês e sua condição de filho da classe média. Mas isso, a relação do inglês e da classe média com a vida intelectual, eu comentarei em outra ocasião.

Ao constatar a grandeza de  amigos como o Hugo Motta, A Ruiva e tantos outros, fico satisfeito e envaidecido. Julgo por bem celebrá-los. Trazem-me esperança. É preciso que se diga: há grandes sujeitos neste país, muitos deles anônimos, não reconhecidos, esquecidos. Sei disso muito bem, pois conheço vários. Gente como o meu amigo Hugo, intelectual que morava em periferia e andava de ônibus. Gente assim existe. Mas, notem vocês, eu só pude chegar a ele porque conversava sobre literatura com um amigo culto. Semelhante atrai semelhante. Estivesse em roda de imbecis, idiotas, superficiais, aquela conversa não teria acontecido e eu jamais teria conhecido o Hugo. Foi sorte, mas foi aquela sorte que só acontece quando o contexto e o círculo social é favorável.

A lição é esta: não tenha demasiado medo de errar em seus comentários. Com sorte haverá, próximo, um sábio caridoso o suficiente para corrigi-lo. É claro que você sentirá vergonha depois. Mas a melhor hora para errar nas opiniões e interpretações é enquanto você é jovem. Admita ser corrigido por alguém que sabe mais. Ou, melhor ainda: queira, deseje ardentemente, ser corrigido por alguém que sabe muito mais que você; procure quem o possa corrigir. Pense na sua inteligência como um diamante bruto que a inteligência dos seus mestres ajudará a lapidar. Atue assim e naturalmente você ficará mais refinado - os outros hão de notar e te acusar o fato. Ficando mais refinado você será capaz de autolapidar-se; sem desprezar, claro, a boa e velha ajuda dos mestres.

Mostrei ao Hugo a minha melhor crônica. Ele, leitor de Umberto Eco e Roberto Bolano, honesto e impiedoso, deu nota 6. Caridoso, indicou-me alguns autores. "Imite-os para aprimorar seu estilo", ele disse. Grande Hugo! Bom e fiel amigo! Há mais de uma década atura-me e ilustra-me. 

Você, leitor jovem, trate de fazer bons amigos. Cultive amigos como o Hugo Motta. Ao ver-se beneficiada e enriquecida, a sua inteligência agradecerá. Acredite em mim, tenho outros bons amigos como Hugo. Sei bem o que digo.

29/02/24

Notas de Leitura: O Discurso Sobre a Servidão Voluntária





Bons amigos costumam nos encaminhar aos bons livros. Ou, pelo menos, colaboram para nosso regresso a eles. Pois, dando mostras de amizade, Wanderson Duke intimou-me a ler e comentar o "Discurso sobre a servidão voluntária". Fez isso sem saber que eu já conhecia e já apreciava o opúsculo. Tenho-o na estante e por duas vezes já me detive em sua leitura. Como eu já pretendia relê-lo, acatei sem demora a proposta do amigo. 

Agora, cumprida a tarefa da leitura, venho cá registrar meus comentários. Por didatismo, julguei oportuno antecedê-los com contextualizações, fazendo as ideias acessíveis a quem ainda não leu a obra.

O autor do Discurso

Etienne de LaBoetie foi um humanista francês que viveu no século XVI. De família rica, La Boetie, assim como outros humanistas do Renascimento, foi latinista, grande conhecedor dos clássicos antigos, das vidas e das ideias dos povos gregos e romanos. Sabe-se que escreveu seu opúsculo ainda muito jovem, talvez antes dos dezoito anos. Faleceu cedo, aos trinta e três. Dos textos que nos deixou, o mais traduzido, importante e conhecido é o Discurso Sobre a Servidão Voluntária. 

Foi amigo próximo do filósofo Montaigne, tanto que, em seu testamento, legou a ele os seus escritos. Anos mais tarde, para honrar a memória do amigo, Montaigne publicaria o Discurso. E desde então, geração após geração, ele vem sendo republicado.

O gênero literário do Discurso

O gênero da obra de La Boetie é o Discurso Escrito, uma modalidade de exercício retórico e ensaístico comum aos eruditos franceses de outrora. Gênero que seria muito usado por filósofos iluministas. Jean Jacques Rousseau, por exemplo, escreveria um dos discursos mais famosos, garbosamente intitulado: "Discurso Sobre as Origens e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens".

Existe, portanto, na obra de La Boetie, uma sensibilidade retórica. Nota-se nela a eloquência que tanto marcou o estilo da época: os parágrafos são longos e densos, com muitas inversões sintáticas e ostentação erudita no manejo dos pronomes.

As principais ideias do Discurso

O caráter retórico do texto não lhe retira o caráter ensaístico; isto é: o autor deseja apresentar um conjunto de questões, problemas, ideias e categorizações que julga relevantes.

Quanto as ideias apresentadas, são três as maiores realizações do Discurso Sobre a Servidão Voluntária: primeiro, expõe o que autor entende por servidão voluntária; segundo, estabelece suas principais causas e consequências; e, terceiro, traça a relação do tirano com sua corte. Essas três operações intelectuais formam o triângulo mestre do esquema de raciocínio do autor, e é em torno desse triângulo que orbitam suas outras reflexões. O resto do que se discute na obra tem feição de digressão ou complemento (prova disso é que o autor, por duas vezes, reconhece ter escapado ao tema).

Eis, a seguir, um resumo da obra:

La Boetie começa demonstrando perplexidade diante da tirania monárquica, situação política em que milhares de homens se dobram aos caprichos de um só. Se liberdade é melhor que sujeição, como explicar que tantos homens tenham se rendido aos mandos de um só?

O autor argumenta que, para tantos súditos, seria muito fácil obter a liberdade. Bastaria que cessassem de obedecer ao tirano. Caso o povo optasse pela recusa à obediência, o tirano não teria mais poder algum, nada podendo fazer contra ele. A não desobediência indicaria, portanto, algo errado: revelaria uma estranha aceitação. O povo, por algum motivo, aceita o tirano, sendo a sua servidão voluntária.

Procurando explicar as origens dessa servidão voluntária, La Boetie diz que os povos nascem livres, mas, geralmente por força da guerra, são obrigados a organizar exércitos e seguir a voz de comando de um líder. Após a guerra, esse líder terá adquirido tanto prestígio entre o povo que se fará rei, prometendo ser, como rei, mais protetor do que era como general. Estruturado o reino, criam-se as leis e as dinastias. O povo acostuma-se a obedecer as leis, e com o passar das gerações vai perdendo a memória dos tempos em que era livre. Quanto mais obedece, mais tirânicos e poderosos se tornam os reis.

O primeiro motivo da servidão voluntária seria, então, o costume. O povo obedece porque seus antepassados obedeciam, porque assim lhe foi ensinado. Não haveria no homem instinto de liberdade que não pudesse ser mitigado pela educação.

Porém, por mais obediente que fosse o povo, sempre haveria riscos de sublevação de alguns de seus membros. Para evitar isso os tiranos utilizariam o incentivo aos jogos, ao sexo, às festas e a outros entretenimentos populares, prazeres baixos que entorpecem, hipnotizam e distraem as multidões. O povo é facilmente manipulado e o tirano sabe disso. O segundo motivo da servidão seria, assim, a permanência do povo num estado de distração fútil, prazerosa e festiva, que levaria, segundo La Boetie, à covardia e efeminação.

A terceira e mais importante causa da servidão voluntária é atribuída aos interesses egoístas dos estratos que orbitam o poder e com ele se beneficiam. La Boetie exemplifica dizendo que seis conselheiros cercam o rei, apoiando-o em troca de favores; e esses conselheiros, por sua vez, são cercados cada um por cem oportunistas que os apoiam em troca de favores; e cada um desses cem é cercado por outros mil subalternos, que reproduzem o mesmo padrão. Essa pirâmide de sujeição e apoio em troca de favores termina sempre por legitimar o poder do rei, mas ao custo de gerar muitos conflitos de interesse, visíveis nas intrigas da corte, onde todos fingem respeito, mas, pelas costas, conspiram e tramam uns contra os outros. Assim a tirania seria aceita porque, para muita gente, ela é lucrativa.

Ao expor as causas da servidão o autor intercala considerações sobre o comportamento dos tiranos. Diz que se diferenciam quanto a forma de obter o poder: uns o alcançam pela eleição, outros pela dominação bélica e outros pela sucessão hereditária. Mas se há diferença na origem, não há na condução do poder, de modo que, ao exercerem a tirania, assemelham-se todos. Fala também das relações entre o tirano e sua corte, demonstrando que aqueles próximos ao rei aceitam uma vida miserável regida por desconfianças, incertezas, suspeitas e paranoias, pois nem o tirano confia neles e nem eles no tirano. O comum é que os amigos do rei de hoje sejam os enforcados de amanhã, e o rei paparicado hoje seja o tirano emboscado amanhã. A vida na corte seria, assim, um verdadeiro inferno.

La Boetie conclui dizendo que as classes que sustentam o tirano deveriam despojar-se de sua mesquinhez, e que o tirano, se não for punido pelos homens, será por Deus.

Os Comentários Deste Leitor

É fácil ver nas palavras de La Boetie aquele espanto que jovens idealistas demonstram ante as injustiças do mundo. Ao escrever contra a principal forma de organização política de seu tempo, analisando e questionando a sujeição do povo, parece ter ele inaugurado a tradição do humanismo social politizado que, nos séculos seguintes, marcando a cultura letrada francesa, produziria grandes mobilizações e mudaria para sempre a França, a Europa e o mundo.

De fato, os temas do opúsculo, e outros relacionados ou derivados, foram calorosamente debatidos e politizados após La Boetie. No plano filosófico, Rousseau criticaria a desigualdade; no econômico, Saint Simon criaria o Socialismo; na ação política, a emergente burguesia destronaria a nobreza na Revolução Francesa (inaugurando a Idade Contemporânea e toda sua idolatria pela República); e com Marx e seu comunismo o povo ganharia uma teoria revolucionária radical, que prometia, se efetivada, eliminar toda opressão entre classes. Todos esses esforços posteriores, além de reafirmar a importância das questões colocadas no opúsculo, aprofundaram as análises propondo soluções políticas.

Mas tudo isso é passado e história feita. Se é fácil ver a importância de suas ideias no curso da História, que dizer sobre essas ideias  nos dias de hoje? Qual a utilidade delas na realidade brasileira? A quem, e em que, elas seriam úteis? 

O leitor informado sabe que, nos meios politizados de hoje, especialmente na esquerda contemporânea, fala-se muito sobre a opressão ao povo ou a certos subgrupos do povo. O grave defeito dos que costumam defender tais ideias é a extrema demagogia com a qual raciocinam e se manifestam. O povo, ou o subgrupo escolhido, é tratado como cordeiro imaculado, ente sacralizado, isento de pecado e da possibilidade de erro, privado de qualquer responsabilidade sobre seu próprio destino. Toda crítica que recebe é encarada como fruto de preconceito, ódio ou mal sentimento. Pois os que assim raciocinam, supondo que possuem mesmo algum pensamento crítico, são os que mais deveriam ler o Discurso Sobre a Servidão Voluntária. La Boetie demonstra que além de ser possível criticar a conduta do povo, é apenas fazendo isso que conseguiremos compreender como se dá a perpetuação do poder.

A idolatria ao oprimido é um fenômeno oposto ao antigo padrão da esquerda. Na esquerda clássica, marxista, a alienação do povo, sua passividade e docilidade eram bem conhecidas. O pilar do projeto político marxista era a conscientização da classe trabalhadora. Apesar da simpatia aos pobres, sabia-se que, para o progresso, era preciso educa-los. Não havia, de modo algum, a adulação inconsequente que domina hoje entre os nossos progressistas. Os comunistas soviéticos chegaram a debater se a classe trabalhadora seria realmente capaz de conduzir a revolução, com alguns comunistas considerando que não, que seria a classe intelectual o agente revolucionário por excelência.

A esquerda brasileira hoje parece apostar nas duas visões ao mesmo tempo: por um lado seus intelectuais procuram influenciar os universitários pregando a existência de meia dúzia de teorias críticas que, segundo eles, elevam a consciência e a inteligência; porém, por outro, negam apaixonadamente que um homem culto é mais inteligente que o padeiro, dizem que a cultura erudita (aquela mesma que estudam e na qual seus heróis, Marx, Freud e Foucault, foram buscar suas bases) é opressão eurocêntrica, e chegam a sugerir que oferecer ao padeiro uma educação clássica, como a que o intelectual teve, é uma forma de opressão ou eurocentrismo. Trata-se de uma duplicidade esquizofrênica e indigesta. Quero crer que a leitura do Discurso Sobre a Servidão Voluntária, que ficaria ainda mais fortalecida com a leitura das obras do contemporâneo Theodor Darymple, vá produzir algum movimento crítico na cabeça de quem se deixou levar pela demagogia tão em voga.

Lembremos, pois, das palavras de La Boetie

"...Na realidade, a natureza do povo, cujo número é sempre maior nas cidades, é ser desconfiado com quem ama e sincero com quem o engana... É uma coisa maravilhosa que cedam tão logo, mas somente se os elogiarem. Os teatros, jogos, farsas, espetáculos, lutas de gladiadores, animais estranhos, medalhas, quadros e outros tipos de drogas, eram para os povos antigos os atrativos da servidão, o preço da liberdade, as ferramentas da tirania. Os antigos tiranos possuíam este meio, esta prática,estes atrativos, para iludir os súditos sob seu jugo."

12/02/24

A Socialização Com os Iletrados

 



Os brasileiros de hoje são tagarelas e preguiçosos:não estudam nada e opinam sobre tudo… A importância da humildade no aprendizado já era enfatizada, na Idade Média, por Hugo de São Vítor, um dos maiores educadores de todos os tempos. Humildade significa, no fundo, apenas senso do real. O culto universal da juventude obscureceu essa verdade óbvia ao ponto de que todo mundo já acha natural esperar que, aos quinze ou dezoito anos, um sujeito tenha opiniões sobre todas as coisas e, miraculosamente, elas estejam mais certas que as de seus pais e avós.”
                                
Olavo de Carvalho  em "Jovens Paranaenses" 


Ao deparar-se com os primitivos hábitos mentais do povo brasileiro, o homem intelectualizado há de sofrer com os sérios entraves que encontrará em sua jornada. Pela experiência minha e de amigos, posso dizer que o primeiro e mais persistente desses problemas é, certamente, o da socialização. Como, afinal, obter a paciência necessária para interagir com a infinidade de iletrados, incultos e ignorantes populares, as vezes em posições de poder, que compõe a maioria da população do país?

Como responder, sem ser ofensivo, a quem fala de tudo sem ter estudado nada? Como respeitar as pretensões de sapiência de quem nenhuma afinidade tem com os livros, a pesquisa intelectual, o pensamento organizado, a reflexão ponderada e a cultura letrada? Como tolerar a doxa compulsiva de quem nunca se empenhou naquela atitude de humildade fundamental a qual os filósofos chamam epoché? Que fazer diante da pretensão desmedida de quem se mostra incapaz sequer de definir os conceitos e os termos que emprega? Pois, infelizmente, são esses os tipos que mais se julgam no direito de opinar sobre temas complexos e difíceis. Pior, porque, arrogantes e vaidosos, enfurecem-se quando corrigidos.

Eu, quando me relaciono com esses tipos pretensiosos e sem substância intelectual, entro sempre num dilema. Corrijo-os ou não? Se é  amigo, faço um teste: indico, para elevá-lo, algum livro e autor importante, e geralmente vejo, sem surpresa, que ele é incapaz de o ler. Ou seja: não tem real interesse em desenvolver seus raciocínios sobre o assunto. Se não manifesta nenhuma disposição em se informar adequadamente, a sua tomada de posição não pode ser encarada como uma posição intelectual, mas como uma performance social derivada de alguma necessidade psicológica; seja ela a de participar da conversa, de demonstrar uma opção política para sinalizar virtude ou outra razão qualquer que não se confunde com atividade intelectual.

Todos nós conhecemos, por exemplo, a divertida figura do “esquerdo-macho”; o sujeito que afeta ideias de esquerda para ter acesso às moças que circulam nesses ambientes. Lembro-me de um caso. Respondendo indagações minhas, um amigo boêmio falou-me das moças fogosas de uma universidade federal aqui da região. Uma de suas frases foi inesquecível. Com os olhos arregalados, ele me disse: “John, lá você não pega ninguém se não for de esquerda”. Sendo um safado de marca maior, ele confessou: chegou a andar com camiseta do Che Guevara e tudo. Eu caí na risada. Compreendo, e não o condeno. Qual é o homem que, numa situação dessas, não defenderia as ideias de Karl Marx com um malicioso sorriso no rosto? Eu, por um rabo de saia, defenderia até o Bolsonaro, com direito à camisa da seleção e gesto de arminha com as mãos. Esse tipo de dissimulação, muito humano, é antigo e, já nos anos sessenta, foi denunciado por Nelson Rodrigues. "É o golpe!", dizia o Palhares, o canalha sincero, personagem inesquecível das crônicas rodrigueanas.

São dificuldades como essas - as pretensões dos iletrados e seus joguinhos psicológicos - que infernizam a vida social dos tipos intelectualizados. Para o homem de letras o discurso é o principal meio de transmissão da verdade, e por isso deve ser levado a sério. Quando é jovem e inexperiente, o tipo intelectualizado não sabe que essa mentalidade não existe, ou é rara, nas outras pessoas. No Brasil o falar é visto como meio de socialização vazia ou como meio de obter vantagem social. As pessoas dizem o que julgam necessário dizer para fomentar as relações, os afetos ou as vantagens que desejam obter. Isso é precisamente o contrário da conduta do homem letrado, para quem a palavra é expressão de sua personalidade, de suas reflexões, estudos, dúvidas, angústias e verdades interiores.

Por esse motivo, quando não está com seus pares, quando é obrigado a interagir com populares, iletrados e ignorantes, o homem intelectualizado se sente horrorizado, solitário, incompreendido e deslocado. Ao usar o discurso para manifestar-se, prezando pela reflexão sincera e informada, é visto com estranheza, fascínio e, a depender do que diz, com animosidade. Fica estupefato ao constatar a dificuldade de encontrar interlocutores conscientes, articulados, bem informados, maduros, racionais e moderados. Tem a impressão de que os falantes estão imersos em caos mental e linguístico, em emocionalismo infantil e incoerências lógicas insuperáveis.

A resposta dos homens letrados a essa realidade diverge. Alguns intelectualizados, depois da experiência com os populares, desiludem-se. Cientes da fragilidade intelectual dos iletrados, passam a considera-los como subcivilizados, ralés que devem ser tutoreadas pelo Estado, com auxílio das classes intelectuais. É a teoria do Estado como agente civilizador. Para quem pensa assim, muitas das condutas equivocadas e viciosas do homem comum devem ser toleradas ou relativizadas, inclusive alguns crimes, porque, afinal, não se trata de um homem livre em sua expressão digna e saudável, mas uma anomalia, um homo ferus, animalizado pela barbaridade de sua condição mental e social. Mentalidade frequentemente associada ao esquerdismo, essa tem sido, há duas décadas, a corrente cultural majoritária no país.

Outros acreditam que o dever número um dos homens e mulheres de cultura é capturar a atenção do público e elevá-lo, mostrando que além da vida instintiva e civil, de hábitos precários consolidados, existe uma vida espiritual, de cultura, de imaginação, de racionalidade, de beleza e de aspiração à virtude. Mentalidade frequentemente associada ao chamados classicistas, “conservadores culturais” e aos poucos artistas que ainda acreditam na Arte como expressão do que há de universal e transcendente nos dramas humanos.

E há, finalmente, aqueles que se rendem ao mais deslavado cinismo. Se pudessem expressar com sinceridade seus pensamentos, diriam: “Que me importa o povo? Não é responsabilidade minha resolver um problema que eu não criei. Darei ao povo o lixo que ele quiser consumir, assim enriquecerei e, com minha família, desfrutarei da mais vasta sofisticação cultural que o dinheiro pode comprar”. Esses são os de mentalidade liberal. São os Sílvios Santos e Robertos Marinhos deste mundo.

Assim o problema da ignorância pública, infelizmente, continua e se agrava, de modo que não é fácil a socialização do homem culto. Quanto a mim, que mesclo a sensibilidade social esquerdista com a filosofia moral conservadora, o desafio é manter a fé de que a elevação do povo é possível, ou ao menos a dos indivíduos que ainda se importam com suas almas, sem jamais ceder ao cinismo. Conseguirei? Convivendo com a plebe, é difícil. É provável que eu fracasse. Mas, ao menos moralmente, é uma luta que vale o esforço. Nem aceitar os tolos, nem os odiar, antes, o caminho da serenidade: procurar compreendê-los e ajudá-los no que me for possível. Mas de preferência à distância, sem precisar ouvir suas tolices mais que o mínimo suportável.


Notas:

1-  A tirinha exibida é do cartunista Laerte.

2 - Aqui o texto "Jovens Parananeses", do Olavo de Carvalho

3- E aqui a crônica de Nelson Rodrigues sobre o Palhares

30/08/23

Uma Verdade Desanimadora Sobre Debates

 Querem saber uma verdade desanimadora que aprendi? Foi sobre debates.

[Sabem o que é isso? É um circo, é um Show de Horrores, é um atentado à inteligência. É qualquer coisa, MENOS um debate]


Aprendi que, em geral, não é a pessoa mais virtuosa, melhor informada e com a razão que vence o debate. Quase sempre é o contrário: quase sempre é o vigarista, o demagogo, o manipulador e o trapaceiro, ou o lado menos informado, quem vence.

Isso acontece por vários motivos, alguns naturais, outros artificiais.

Antes de tudo, é preciso compreender que um debate real e sincero só pode acontecer em determinadas condições específicas; quando uma certa conjunção de fatores é satisfeita.

Alguns dos principais fatores necessários para um debate verdadeiro são:

  • Profundidade adequada (exigência intelectual) – Ambos os debatedores devem compreender e tratar o problema com o nível de profundidade necessário. Se estão a falar, por exemplo, de um tema que está em debate a milhares de anos, com farta literatura, fartos debates anteriores, fartas polêmicas e muitas sutilezas, eles não podem tratar o tema com leviandade ou com simplificação rasteira. Exemplo: debates sobre a existência de Deus, sobre a maldade humana, sobre a função do Estado, etc.
  • Honestidade (exigência moral) – Ambos os debatedores devem buscar: a) a verdade; b) uma conciliação entre duas opções; ou c) a opção menos danosa (o mal menor). Se um lado deseja manipular a opinião pública, defender um grupo de poder específico, defender uma agenda política, provocar desinformação, desestabilizar uma classe, acusar o outro lado... Então não haverá de fato um debate, mas apenas um pseudodebate; que será usado para manipular a opinião pública sobre determinado assunto. (95% dos “debates” televisivos são dessa natureza, e ainda acrescidos dos fabulosos recursos da edição).
  • Paridade/ nivelamento (exigência comparativa) – Ambos os debatedores devem ter um nível mínimo de conhecimento sobre o tema para poderem analisá-lo de forma satisfatória. Isso inclui, certamente, o conhecimento do que já foi dito e pensando ao longo da história sobre o assunto, especialmente nos níveis mas elevados. O requisito mais básico e primário para se discutir qualquer tema é estar bem informado a respeito. Nunca, em hipótese alguma, deve-se levantar um debate sobre ideias, fatos ou temas sobre os quais não se tem um conjunto robusto ou mínimo de informação e contexto. Se um debatedor souber muito mais que o outro, ou souber de pontos importantes que o outro não sabe, o debate é precarizado; e o tempo que seria usado para debater o ponto em questão, será usado para informar a outra parte; o que faz a coisa virar uma aula e não um debate.
  • Privacidade/ localidade adequada (exigência de meio adequado) – Em vista das três exigências acima, o debate deve ser travado num local ou meio que permita o pleno cumprimento desses requisitos. E esse local não é a TV, menos ainda o rádio, menos ainda o Youtube. Primeiro porque aqui no Brasil não há cultura do debate racional; então, para começar, as pessoas não fazem nem idéia de como debater sem xingar umas às outras ou mesmo sem partir para a agressão. Segundo porque o brasileiro não é um leitor minimamente variado e inteligente; o que significa que ele perde toda a informação contextual, histórica, científica e analítica que os livros divulgam e aprofundam. (Em geral o brasileiro lê sobre temas espirituais, auto ajuda, sexo e ficção, quando muito, lê sobre política). E terceiro porque a platéia física favorece o manipulador. De fato, o bom manipulador pode praticamente ignorar o debatedor adversário e jogar para a platéia; já que o público é bem fácil de ser manipulado. Daí que os meios adequados para certos debates acabam sendo, quase sempre, os livros e as revistas especializadas. As vezes os jornais; e em alguns casos eventos promovidos em universidades e outras entidades culturais (como o debate entre Chomsky e Foucault).

[Na cena cultural/ intelectual brasileira (e mesmo mundial) tem tanta gente que merece esse selo…]


E mesmo no contexto literário e universitário, a maioria dos debatedores mais famosos são, em certo grau, falsários e manipuladores. Chomsky, por exemplo, é oposição controlada do lobby sionista, enquanto Foucault era agente do lobby pedófilo (se alguém se chocar com essas alegações é sinal de que está mal informado). Então, em questões políticas, o discurso de ambos se mistura com pontuações filosóficas válidas e estratagemas retóricos que visam sustentar interesses ocultos, jamais declarados.


Os debates honestos, rigorosos e que apresentam uma discussão profunda e pertinente, respeitando todos os critérios e exigências necessárias, na maioria das vezes são considerados chatos e enfadonhos para o público médio. Isso pode ser facilmente percebido pela ojeriza instantânea que o brasileiro médio nutre diante de Filosofia e Matemática; duas áreas que consistem basicamente em trabalhar com definições essenciais, critérios, lógica, conjuntos de possibilidades, provas e demonstrações. Ou seja: reflexão aprofundada e exigente.

Além disso, existe um outro problema, relativo à própria natureza do conhecimento e da inteligência, que implica numa realidade assombrosa: em geral, quanto mais um cientista ou pesquisador descobre um aspecto essencial e verdadeiro da realidade, mais difícil é transmitir essa descoberta, com profundidade, na linguagem comum. Quase tudo que é essencial de se saber exige uma terminologia adequada, daí que os antigos falavam de “linguagem sagrada” e nós, modernos, falamos de linguagem técnico-científica e "operacionalização".

No vídeo abaixo, Richard Feynman, um dos maiores físicos e intelectuais do século passado, dá uma ótima explicação sobre esse problema linguístico/epistemológico.


A linguagem comum raramente presta para transmitir verdades profundas. E esse é um dos motivos do porquê escritores trabalharam a linguagem, em termos estéticos e estruturais, para tentar transmitir verdades ou princípios essenciais. (Esse também é o motivo pelo qual os antigos educavam seus filhos com mitos, símbolos, ritos e alegorias.)

Então, temos um fenômeno muito interessante, que acontece com um monte de gênios: o sujeito passa a vida inteira buscando descobrir a verdade sobre um tema, e quando descobre; percebe que ou não será compreendido, ou só será compreendido por muito pouca gente. Nesse momento, muitas vezes, ele acaba se isolando, como foi o caso do Grigory Perelman, do Ludwig Wittgenstein e de tantos outros.

Em geral, é por causa disso que gente como o Olavo acaba ganhando tanto destaque. Dizem, por exemplo, que o Guru da Virgínia é o maior filósofo do Brasil, enquanto ignoram a existência de Newton da Costa ou o trabalho de gente como Vicente Ferreira da Silva e José Guilherme Merquior. Embora todos eles tenham sido filósofos de fato, na mais elevada expressão do termo, com contribuições significativas ao corpo do conhecimento humano e da história da filosofia, inclusive com reconhecimento internacional de seus pares, o trabalho deles é muito exigente, praticamente inacessível ao homem comum; que não é dado a grandes reflexões. Na verdade, o nível deles é tão elevado que mesmo a maioria dos professores universitários os desconhece.

Em suma: a razão acaba ficando com quem sabe convencer e persuadir, não com quem está certo ou com quem realmente entende o assunto. Por isso, num mundo dominado pela propaganda e pela superficialidade, o poder pertence aos charlatães, mentirosos e manipuladores.

Aprenda a mentir e manipular e o mundo será seu. Ou, ao menos, aprenda a se defender de mentirosos e manipuladores.

09/08/23

Por que me afastei das pessoas...

      

Nota do Editor: o texto abaixo foi originalmente publicado como resposta no site Quora.

***                            

                                       [O Eremita. Do Tarôt Rider-Waite]


Porque me afastei das pessoas?  

Tive tantos motivos que chega mesmo a ser difícil elencá-los. Caso tentasse, porém, ir até a gênese da coisa, buscando a primeira de todas as razões; provavelmente seria obrigado a concluir que afastei-me das gentes devido a percepção da estranhíssima e seguinte verdade:

Eu adquiria maior orientação interagindo com os livros do que interagindo com as pessoas.

Tal coisa percebi ainda na adolescência, período da vida onde a instabilidade era a regra. Se ganhava novos conhecimentos e relações, ganhava também novas angústias e frustrações. Diante do mundo religioso que me era estimulado pela família; diante do mundo cultural que avidamente consumia na forma de quadrinhos, rock, livros e cinema; diante da vida social e das paixões carnais, das quais nada entendia, e diante da vida técnico-científica que me era apresentada na escola; minha mente viu-se tomada por exuberante fauna de dúvidas e inseguranças capitais.

Sendo um filho de professora, nunca pude fugir ao didatismo. Por isso, sentia que antes de decidir qualquer coisa importante, precisaria compreender um mínimo do mundo. Esclarecer-me. Saber o que era importante e o que não era. O que era verdadeiro, o que era engano. Quando você é um jovem romântico e problemático, que está completamente perdido no mundo, orientação é o bem mais relevante que se pode conseguir.

Os livros, mesmo que também me trouxessem muitas dúvidas, ampliavam, mais do que as pessoas, meu contexto cultural e cognitivo, não apenas de forma quantitativa, mas também de forma qualitativa. Com eles eu não só aprendia mais, mas aprendia melhor. Os livros levavam as perguntas muito a sério, dedicavam páginas e páginas de análises para compreender e esclarecer problemas difíceis. Havia neles uma seriedade, um compromisso, um brio intelectual, uma racionalidade analítica, que, sentia, faltava em meu meio de origem. Isso para não mencionar também a beleza estética da linguagem empregada.

Entre os 13 e 16 anos, enquanto meus amigos mais integrados "comiam todas as menininhas da cidade", eu lia “O Último dos Moicanos” e também “As Viagens de Gulliver”. Livros que fizeram-me um estrago brutal. Deles vieram meus primeiros rudimentos de sensibilidade e consciência moral. Desvelaram a mim os absurdos, as incoerências, as injustiças e as loucuras dos homens. O primeiro de forma épica e trágica, o segundo de forma mordaz e satírica.


                                                        [Dança com Lobos.]


O bom cinema estragou-me também. Filmes que muito me influenciaram nessa faixa etária foram: “Sete Anos no Tibet”, “Dança com Lobos”, "O Conde de Monte Cristo" e “O Último Samurai”; todos envolviam homens perdidos, amargurados, em situação de distância e isolamento de seu mundo de origem. Filmes que retratavam a alienação do herói, primeiro passo para a evolução filosófica e espiritual, lugar-comum da estrutura narrativa. Fizeram-me equacionar solidão e distanciamento com aquisição de sabedoria.

Sentia falta de pessoas (adultos) extraordinários e inspiradores. Escasseavam na vida real, mas superabundavam nos livros e nos bons filmes. Na biblioteca da escola, disponíveis para me instruir, estavam: EinsteinMichiu KakuJonathan SwfitBill BryssonCurzio Malaparte e centenas de outros cavalheiros com a mais vasta erudição, sofisticação e experiência de vida. Todos indivíduos de espírito e distinção. Fora da biblioteca, não conhecia nenhum ser humano que trouxesse em si tanta magnitude. Via naquele local silencioso, que eu considerava um Templo da Sabedoria, o ambiente de uma comunidade de sábios, gênios e aventureiros. Era jovem, mas já intuía a existência de uma Cultura Universal, de uma Sabedoria Universal. Ali eu poderia ter acesso as palavras desses homens, saber o que pensaram, o que viveram, como viram o mundo, o que tinham a ensinar. E descobrir o porquê eram considerados tão importantes.


                [ Einstein. Não basta ser inteligente, é preciso ser também irreverente.]


Sendo eles de tamanha importância histórica e cultural, pensava que deveriam ter alguma orientação, deveriam saber como o mundo funcionava; saber de coisas importantes que os outros não sabiam. Afinal, não eram eles os chamados gênios? As chamadas “grandes mentes”? Certamente não haviam chegado onde chegaram por acaso. Certamente tinham algo a ensinar. Eu aprenderia com eles. Com suas vivências, ensinamentos, opiniões, conselhos; e, possível fosse, seria tão grande quanto.

Pois quanto mais interagia com as obras originadas por essas e outras mentes ilustres, mais ampliava a percepção da futilidade e decrepitude das mentes ao meu redor. Vendo que a futilidade era a regra, a sabedoria tornava-se um bem raro; e, portanto, altamente valoroso. Percebi a futilidade das gentes, decepcionei-me com a futilidade das gentes: afastei-me da futilidade das gentes. Busquei a sabedoria. Dos sábios.


                               [Perder tempo com os tolos? Não eu..]


A verdade é que ninguém pode imergir na parvoíce das gentes sem tornar-se também um tanto quanto parvo. A mente não apenas é moldada pelo conteúdo com o qual a alimentamos, mas torna-se também uma reprodutora desse conteúdo. A mente é uma replicante de memes*. Daí a importância de uma cultura que eleve e nos instigue à virtude e não ao vício. Já jovem sabia muito bem disso. Como a cultura ao meu redor parecia induzir ao vício e a confusão, julguei necessário me resguardar. Busquei pessoalmente, muitas vezes isoladamente (algumas vezes socialmente, em pequenos grupos de amigos), cultivar uma outra cultura. Uma que não apenas me entretesse, mas que me inspirasse, que me ensinasse a ter alguma orientação no mundo, a responder minhas dúvidas capitais, a compreender melhor e a ser alguém melhor.

Assim o fiz. Assim o faço. Por isso o afastamento.

Fato é que nunca me tornei exatamente alguém melhor. Na maior parte das vezes, sigo sendo o mesmo traste de sempre, entretanto, ao menos alguma orientação mínima e alguma compreensão mínima (do mundo, dos homens e dos deuses) eu obtive. Não é muito, mas é já alguma coisa.

Me arrependo de me ter afastado das pessoas?

Nem por um segundo.


*O termo "meme" é usado aqui em seu sentido original, isto é: uma unidade mínima de ideia ou conteúdo mental reproduzível culturalmente.