12/02/24

A Socialização Com os Iletrados

 



Os brasileiros de hoje são tagarelas e preguiçosos:não estudam nada e opinam sobre tudo… A importância da humildade no aprendizado já era enfatizada, na Idade Média, por Hugo de São Vítor, um dos maiores educadores de todos os tempos. Humildade significa, no fundo, apenas senso do real. O culto universal da juventude obscureceu essa verdade óbvia ao ponto de que todo mundo já acha natural esperar que, aos quinze ou dezoito anos, um sujeito tenha opiniões sobre todas as coisas e, miraculosamente, elas estejam mais certas que as de seus pais e avós.”
                                
Olavo de Carvalho  em "Jovens Paranaenses" 


Ao deparar-se com os primitivos hábitos mentais do povo brasileiro, o homem intelectualizado há de sofrer com os sérios entraves que encontrará em sua jornada. Pela experiência minha e de amigos, posso dizer que o primeiro e mais persistente desses problemas é, certamente, o da socialização. Como, afinal, obter a paciência necessária para interagir com a infinidade de iletrados, incultos e ignorantes populares, as vezes em posições de poder, que compõe a maioria da população do país?

Como responder, sem ser ofensivo, a quem fala de tudo sem ter estudado nada? Como respeitar as pretensões de sapiência de quem nenhuma afinidade tem com os livros, a pesquisa intelectual, o pensamento organizado, a reflexão ponderada e a cultura letrada? Como tolerar a doxa compulsiva de quem nunca se empenhou naquela atitude de humildade fundamental a qual os filósofos chamam epoché? Que fazer diante da pretensão desmedida de quem se mostra incapaz sequer de definir os conceitos e os termos que emprega? Pois, infelizmente, são esses os tipos que mais se julgam no direito de opinar sobre temas complexos e difíceis. Pior, porque, arrogantes e vaidosos, enfurecem-se quando corrigidos.

Eu, quando me relaciono com esses tipos pretensiosos e sem substância intelectual, entro sempre num dilema. Corrijo-os ou não? Se é  amigo, faço um teste: indico, para elevá-lo, algum livro e autor importante, e geralmente vejo, sem surpresa, que ele é incapaz de o ler. Ou seja: não tem real interesse em desenvolver seus raciocínios sobre o assunto. Se não manifesta nenhuma disposição em se informar adequadamente, a sua tomada de posição não pode ser encarada como uma posição intelectual, mas como uma performance social derivada de alguma necessidade psicológica; seja ela a de participar da conversa, de demonstrar uma opção política para sinalizar virtude ou outra razão qualquer que não se confunde com atividade intelectual.

Todos nós conhecemos, por exemplo, a divertida figura do “esquerdo-macho”; o sujeito que afeta ideias de esquerda para ter acesso às moças que circulam nesses ambientes. Lembro-me de um caso. Respondendo indagações minhas, um amigo boêmio falou-me das moças fogosas de uma universidade federal aqui da região. Uma de suas frases foi inesquecível. Com os olhos arregalados, ele me disse: “John, lá você não pega ninguém se não for de esquerda”. Sendo um safado de marca maior, ele confessou: chegou a andar com camiseta do Che Guevara e tudo. Eu caí na risada. Compreendo, e não o condeno. Qual é o homem que, numa situação dessas, não defenderia as ideias de Karl Marx com um malicioso sorriso no rosto? Eu, por um rabo de saia, defenderia até o Bolsonaro, com direito à camisa da seleção e gesto de arminha com as mãos. Esse tipo de dissimulação, muito humano, é antigo e, já nos anos sessenta, foi denunciado por Nelson Rodrigues. "É o golpe!", dizia o Palhares, o canalha sincero, personagem inesquecível das crônicas rodrigueanas.

São dificuldades como essas - as pretensões dos iletrados e seus joguinhos psicológicos - que infernizam a vida social dos tipos intelectualizados. Para o homem de letras o discurso é o principal meio de transmissão da verdade, e por isso deve ser levado a sério. Quando é jovem e inexperiente, o tipo intelectualizado não sabe que essa mentalidade não existe, ou é rara, nas outras pessoas. No Brasil o falar é visto como meio de socialização vazia ou como meio de obter vantagem social. As pessoas dizem o que julgam necessário dizer para fomentar as relações, os afetos ou as vantagens que desejam obter. Isso é precisamente o contrário da conduta do homem letrado, para quem a palavra é expressão de sua personalidade, de suas reflexões, estudos, dúvidas, angústias e verdades interiores.

Por esse motivo, quando não está com seus pares, quando é obrigado a interagir com populares, iletrados e ignorantes, o homem intelectualizado se sente horrorizado, solitário, incompreendido e deslocado. Ao usar o discurso para manifestar-se, prezando pela reflexão sincera e informada, é visto com estranheza, fascínio e, a depender do que diz, com animosidade. Fica estupefato ao constatar a dificuldade de encontrar interlocutores conscientes, articulados, bem informados, maduros, racionais e moderados. Tem a impressão de que os falantes estão imersos em caos mental e linguístico, em emocionalismo infantil e incoerências lógicas insuperáveis.

A resposta dos homens letrados a essa realidade diverge. Alguns intelectualizados, depois da experiência com os populares, desiludem-se. Cientes da fragilidade intelectual dos iletrados, passam a considera-los como subcivilizados, ralés que devem ser tutoreadas pelo Estado, com auxílio das classes intelectuais. É a teoria do Estado como agente civilizador. Para quem pensa assim, muitas das condutas equivocadas e viciosas do homem comum devem ser toleradas ou relativizadas, inclusive alguns crimes, porque, afinal, não se trata de um homem livre em sua expressão digna e saudável, mas uma anomalia, um homo ferus, animalizado pela barbaridade de sua condição mental e social. Mentalidade frequentemente associada ao esquerdismo, essa tem sido, há duas décadas, a corrente cultural majoritária no país.

Outros acreditam que o dever número um dos homens e mulheres de cultura é capturar a atenção do público e elevá-lo, mostrando que além da vida instintiva e civil, de hábitos precários consolidados, existe uma vida espiritual, de cultura, de imaginação, de racionalidade, de beleza e de aspiração à virtude. Mentalidade frequentemente associada ao chamados classicistas, “conservadores culturais” e aos poucos artistas que ainda acreditam na Arte como expressão do que há de universal e transcendente nos dramas humanos.

E há, finalmente, aqueles que se rendem ao mais deslavado cinismo. Se pudessem expressar com sinceridade seus pensamentos, diriam: “Que me importa o povo? Não é responsabilidade minha resolver um problema que eu não criei. Darei ao povo o lixo que ele quiser consumir, assim enriquecerei e, com minha família, desfrutarei da mais vasta sofisticação cultural que o dinheiro pode comprar”. Esses são os de mentalidade liberal. São os Sílvios Santos e Robertos Marinhos deste mundo.

Assim o problema da ignorância pública, infelizmente, continua e se agrava, de modo que não é fácil a socialização do homem culto. Quanto a mim, que mesclo a sensibilidade social esquerdista com a filosofia moral conservadora, o desafio é manter a fé de que a elevação do povo é possível, ou ao menos a dos indivíduos que ainda se importam com suas almas, sem jamais ceder ao cinismo. Conseguirei? Convivendo com a plebe, é difícil. É provável que eu fracasse. Mas, ao menos moralmente, é uma luta que vale o esforço. Nem aceitar os tolos, nem os odiar, antes, o caminho da serenidade: procurar compreendê-los e ajudá-los no que me for possível. Mas de preferência à distância, sem precisar ouvir suas tolices mais que o mínimo suportável.


Notas:

1-  A tirinha exibida é do cartunista Laerte.

2 - Aqui o texto "Jovens Parananeses", do Olavo de Carvalho

3- E aqui a crônica de Nelson Rodrigues sobre o Palhares

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