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25/05/24

Amigos como o Hugo Motta


Foto deste cronista com o mestre Hugo Motta. Tirada, talvez, em 2018


Certa vez o Hugo Motta, depois de perguntar como eu estava, disse que pretendia avaliar-se através da comparação aos cinco amigos mais próximos - uma brincadeira, claro. Fiquei envaidecido pela estima do Hugo, que é, eu preciso dizer, um grande sujeito. E já explico que não o meço grande apenas pela inteligência, que é enorme, nem pelo fato de ser meu amigo. Digo tal coisa apenas porque, conhecendo-o, não poderia dizer outra.

Somos amigos há mais de uma década e, coisa curiosa, encontrei-me pessoalmente com o Hugo, no máximo, umas quatro vezes na vida. Foi durante uma conversa literária com o Lucas Lopes que o conheci. Viajando de ônibus, eu contava ao Lucas minhas impressões de leitura de A Metamorfose, de Kafka, e expressava, com ares professorais, uma intepretação sociológica mequetrefe lida na internet. Lucas ouvia atenciosamente. Ao lado dele, o Hugo Motta, que eu nunca tinha visto na vida, ouvia tudo e me olhava fixamente. 

Quando Hugo finalmente entrou na conversa, eu já tinha deduzido que ele, na certa, conhecia o Lucas. Muitos anos depois, Hugo confessaria: ouvira-me falar "uma besteira enorme" e teve de intervir. Dei risada. Ainda naquele dia do ônibus, quando ele se meteu na conversa de dois desconhecidos, eu notei nele duas características: era estranho e muito bem informado. Justamente o tipo de gente que me interessava. Memorizei seu nome. Depois solicitei sua  amizade na rede social mais usada na época. Quis saber quem era aquele esquisitão intelectualizado que ousara me corrigir e que, aparentemente, morava no mesmo Cafundó do Judas que eu. Quando Hugo Motta desceu do ônibus passou-se entre eu e Lucas o seguinte diálogo:

- Rapaz inteligente esse aí. É seu amigo, né?

- Não, cara. Não o conheço. Não é seu amigo não?

- Nunca o tinha visto antes.

E caímos no riso, surpresos. 

Assim eu conheci um dos sujeitos mais inteligentes e intelectualmente honestos que já tive notícia. Alguém que é  bom exemplo do que eu chamo de "intelectual doméstico". De lá pra cá, eu muito me beneficiei da caridade intelectual do Hugo, que sempre me concedeu referências preciosas. Foi ele quem trouxe  Wittegenstein e a filosofia moderna pra o meu mundinho que, até então, restringia-se a referências  filosóficas do romantismo e do iluminismo (Rosseau, Locke, Voltaire). Também ele, Hugo Motta, emprestou-me livros que foram da maior importância.

Nossa amizade ancorou-se, sempre, no fluxo de ideias. Nas conversas e debates dos temas da vida intelectual, política, espiritual, social, cultural, esotérica. As leituras,  as opiniões dos filósofos, dos intelectuais, dos comentadores, dos críticos. Os casos políticos e culturais do momento. As polêmicas, as piadas, as mulheres. E, claro, o gosto comum pelos fatos absurdos, hediondos, improváveis. (Hugo é exímio colecionador de atos questionáveis das criaturas humanas e de fatos peculiares do universo). 

A curiosidade intelectual generalista que havia em mim eu encontrei também nele, porém em versão refinada, erudita, poliglota. Estabeleci com ele a saudável conexão mental e afetiva que ao longo da vida eu reproduziria com outros bons amigos extraídos das redes sociais. E foi por  meio deles que tive acesso a inteligências e raciocínios que, sozinho, eu nunca alcançaria. A amizade com o Hugo deu-me acesso a gênios como o Manuel Doria, a quem eu pude fazer algumas perguntas, obtendo inesquecíveis respostas. 

Acho engraçado quando gente que não me conhece diz, ou imagina, que eu me acho muito inteligente. Como é que eu vou me achar inteligente quando a minha referência de inteligência é gente como o Hugo Motta e o Manuel Doria? E isso para não falar dos amigos programadores, cientistas, escritores, aventureiros. Eu sou tão confessional na contemplação da minha ignorância que declaro-me agnóstico, e, inclusive, já escrevi sobre a aventura que é viver tentando diminuir minha burrice cósmica.


Entre os livros e o xadrez, com o amigo Hugo Motta (que não queria aparecer).

Mas eu falava do meu amigo Hugo Motta. Escrevo sobre ele, e escreverei sobre outros amigos intelectuais, para dizer e reforçar uma ideia, um segredo que não deveria ser tão secreto assim. Ao leitor destas palavras, peço que se lembre disto: muito do que se tira de bom da vida intelectual, e quase tudo o que se aprende de relevante, vem do aprendizado informal, aquele extraído na convivência com amigos e contatos que são muito mais inteligentes e culturalmente experientes do que nós. Até os livros que nos farão a cabeça, os primeiros, aqueles de formação, dependem da indicação desses mestres informais.

O próprio Hugo, quando perguntei a origem de sua inteligência e erudição, disse-me que estudava Direito, mas era para não morrer de fome; pois quase tudo o que ele sabia de relevante tinha aprendido na internet, com amigos, artigos, sites e livros. Mais tarde, quando o conheci melhor, pude descontruir um pouco dessa visão romântica que ele tinha de si mesmo. Não que ela fosse falsa, mas, seguramente, não era explicação suficiente. Havia duas outras chaves que ele não havia mencionado: sua fluência no inglês e sua condição de filho da classe média. Mas isso, a relação do inglês e da classe média com a vida intelectual, eu comentarei em outra ocasião.

Ao constatar a grandeza de  amigos como o Hugo Motta, A Ruiva e tantos outros, fico satisfeito e envaidecido. Julgo por bem celebrá-los. Trazem-me esperança. É preciso que se diga: há grandes sujeitos neste país, muitos deles anônimos, não reconhecidos, esquecidos. Sei disso muito bem, pois conheço vários. Gente como o meu amigo Hugo, intelectual que morava em periferia e andava de ônibus. Gente assim existe. Mas, notem vocês, eu só pude chegar a ele porque conversava sobre literatura com um amigo culto. Semelhante atrai semelhante. Estivesse em roda de imbecis, idiotas, superficiais, aquela conversa não teria acontecido e eu jamais teria conhecido o Hugo. Foi sorte, mas foi aquela sorte que só acontece quando o contexto e o círculo social é favorável.

A lição é esta: não tenha demasiado medo de errar em seus comentários. Com sorte haverá, próximo, um sábio caridoso o suficiente para corrigi-lo. É claro que você sentirá vergonha depois. Mas a melhor hora para errar nas opiniões e interpretações é enquanto você é jovem. Admita ser corrigido por alguém que sabe mais. Ou, melhor ainda: queira, deseje ardentemente, ser corrigido por alguém que sabe muito mais que você; procure quem o possa corrigir. Pense na sua inteligência como um diamante bruto que a inteligência dos seus mestres ajudará a lapidar. Atue assim e naturalmente você ficará mais refinado - os outros hão de notar e te acusar o fato. Ficando mais refinado você será capaz de autolapidar-se; sem desprezar, claro, a boa e velha ajuda dos mestres.

Mostrei ao Hugo a minha melhor crônica. Ele, leitor de Umberto Eco e Roberto Bolano, honesto e impiedoso, deu nota 6. Caridoso, indicou-me alguns autores. "Imite-os para aprimorar seu estilo", ele disse. Grande Hugo! Bom e fiel amigo! Há mais de uma década atura-me e ilustra-me. 

Você, leitor jovem, trate de fazer bons amigos. Cultive amigos como o Hugo Motta. Ao ver-se beneficiada e enriquecida, a sua inteligência agradecerá. Acredite em mim, tenho outros bons amigos como Hugo. Sei bem o que digo.

19/02/24

Secreto Quixotismo


Hermes, do escultor Giovanni Bologna

Disse-me que apanhara da vida. Tão fortes as pancadas que muito de sua sensibilidade poética foi perdida. Sem desistir de si, quer agora recuperá-la.

Eis aí, em resumo, a confidência de um velho amigo, também escritor - outrora jornalista, cronista, poeta e blogueiro. Amigo que me ensinou coisas importantes, que me inspirou e ajudou. Camarada irmão de letras, tanto que ostenta igual sobrenome, companheiro de fé, de dúvida e de voracidade cultural.

No momento da revelação, fui pego de surpresa, emudeci. Depois pensei, pensei e pensei. Agora, aqui, mais uma vez expondo minhas reflexões, eu o respondo.                                                    

Compreendo-te, meu bom amigo.

Esse desarranjo é sempre um risco à espreita. Para superá-lo eu penso que o escritor deve impor-se uma missão. Deve a todo custo lutar para manter vivo, em si e em seus leitores, um quixotismo: o desejo de elevar-se pela apreensão criativa das verdades e das belezas. Precisa ter a consciência que trava uma batalha. E deve tornar-se sagaz, pois, diante das inversões desta era, necessita disfarçar sua ânsia pelo superior, sua vontade de virtude e transcendência. Caso diga em público que busca uma linguagem superior, sagrada e divina, prontamente será condenado como reacionário. Terá sua honra questionada, será tiranizado, e, por não ver beleza ou verdade em toscas tentativas de linguagem inventadas ontem, será considerado um mestre do ódio, tendo a cabeça posta a prêmio. Vemos esse padrão repetir-se mundo afora.

Como fosse judeu marrano, o poeta destes tempos, querendo manter viva a sua tradição, cala e dissimula. Vive numa era em que não é permitido aos homens, nem mesmo aos poetas, contemplar as almas das criaturas ou espiar as vastidões dos céus, pois já não existe na imaginação dos mestres coisas como almas ou céus a serem contemplados. Há apenas matéria, moléculas, átomos, partículas. Tudo é fragmento, nada é absoluto. Assim dizem os doutos.

O poeta, tolo e sonhador, querendo-se algo mais do que a soma de seus neurônios, deve proteger-se. Numa sociedade que rejeita a beleza e a virtude, corre o risco de ver insuperáveis as suas dores e angústias; caminho que o levará ao suicídio. Ou, tão terrível quanto: pode testemunhar o clamor, proferido pela virtual tribuna dos ótimos cidadãos que jamais o conheceram, para que sofra um covarde apedrejamento público.

Ele demonstra, portanto, grande sensatez ao procurar resguardar-se. Mas deve tomar cuidado para não ceder ao desânimo, deixando esmorecer suas inquietações. Seu desafio, sua luta, é preservar o anseio pelo sublime, a eterna procura da alma das coisas. Deve cuidar dessa chama quixotesca como quem cuida de um tesouro precioso e frágil.

Confesso ao amigo que eu, menos tolo do que pareço, tratei de esconder do mundo o meu coração romântico, a minha alminha de pequeno poeta - perigosíssima para o mundo moderno, pois cheia de vontade de Deus e de Beleza.

Defensivo, pus em torno dela camadas de frieza, mordacidade, deboche e sarcasmo. Acossado pelo monstro que é a ignorância da vida social neste país, encontrei no escárnio a minha defesa. Aprendi a ser cruel nos atos e nas palavras, desmascarador na análise, niilista, simulador do mais profundo desprezo pelo mundo; sempre pronto a cuspir nas afetações dos pretensiosos e nas mediocridades dos conformistas.

Fiz antipático o meu exterior, mas não o fiz por completo. Fui deixando pistas sutis de que minha rabugem não era tudo, de que havia nas entrelinhas uma filosofia moral, uma sensibilidade, um anseio de virtude. E mesmo eu me passando por amargo, houve quem soube decifrar-me o caráter íntimo sensível, e até quem me acusasse de poeta.

Eu, evidentemente, negava, e em público negarei sempre essas coisas, pois sei que há multidões de embrutecidos que odeiam os sensíveis e que se esforçam por ridicularizá-los. Lembro bem do que ouvi sobre um dos meus primeiros poemas, o qual, meramente por ser poema, seria, conforme a opinião de um verme, prova de pederastia. Pois eu pensava, como sempre pensei, que ser poeta significa querer ser como o rei Davi - o salmista, o guerreiro corajoso, o mulherengo, o canalha assassino, miserável em todos os seus equívocos, mas, apesar disso, homem nobre e arrependido que pela oração buscava as virtudes faltantes. Pensava também, como ainda penso, que ser poeta significa querer ser como Fernando Pessoa, o fidalgo de alma múltipla; fascinante literato que, sendo humano e usando palavras humanas, falava com a eloquência do deus Hermes, e que mostrava ao mundo ter não uma alma, nem duas ou três, mas tantas quanto quisesse.

Busquei proteger-me de outros vermes falantes antes que obstruíssem meu ingresso na aristocracia do pensamento e na iniciação ao sacerdócio hermético. Astuto, compreendi que não poderiam destruir o que não eram capazes de perceber. Tornei-me um eremita; e, quando em contato com essa gente, fiz-me tóxico como arsênico, o quanto mais eu pude, para que vissem em mim apenas um desviante louco, agressivo, caótico e perigoso. As minhas aspirações superiores, a fim de dar-lhes sobrevida, eu tive de segredar, restringindo-as a confidência de uns poucos amigos. Somente assim logrei manter vivo esse meu quixotismo, a extraordinária ousadia da pretensão poética.

Por tudo isso, ao meu bom amigo eu aconselho: esconde com maestria a tua sensibilidade. Guarde-a codificada nas suas melhores palavras, faladas nunca, escritas sempre. Põe nelas as mais belas imagens, com seus mais elevados sonhos e utopias. Vai, dia após dia, no silêncio da noite, cultivando a leitura dos grandes poetas, rezando baixinho aos teus deuses, resguardando e nutrindo em segredo a tua sensibilidade. 

Cria um sonho impossível, uma utopia romântica, loucura íntima que te traga imenso prazer no imaginar. E quando notar que a capacidade de sentimento voltou, continue em segredo. Não faz alarde da tua imaginação poética, esse grandioso bem que há em ti. Deixa ela protegida, eternizada em arte nos teus versos ou na tua elaborada prosa, e põe cada uma das tuas obras de arte, grandes ou pequenas, num destino esotérico; como livro sagrado em baú enterrado, só disponível aos templários, em caminho só percorrido por gente estranha que é cada vez mais rara: gente que, como eu e tu, luta não apenas para ter alma, mas para expressá-la com a eloquência dos deuses.

16/09/23

Não Era O Que Parecia





Pessoa que até a véspera nos tratava amigavelmente. Sorria, falava. Demonstrava interesse em manter conosco a boa relação, e depois surpreendeu virando a casaca: riscou o fósforo do desencontro para acender a dinamite do silêncio. O efeito, uma explosão de energia negativa. Antes, sua conversa receptiva sugeria uma conexão que, no futuro, continuasse tudo constante, daria em agradável amizade. 

Ser humano a quem nos abrimos, e a quem procuramos ajudar, aceitando com zelo o autoimposto dever do amigo. Imaginávamos, é claro, ser de confiança. E ao revelarmos elevada disposição afetiva, esperávamos tudo, até que risse de nós, os românticos do afeto; o que não esperávamos nunca é o gratuito desdém, o desprezo, a falta de consideração.

Diante de tamanho descaso, que podemos fazer? Como em tudo o que não podemos mudar, deve-se aceitar o ocorrido e refletir, buscando compreender o que de fato aconteceu. E, claro, aprender a evitar esse tipo de situação no futuro.

Eu sei, nós sabemos: há instabilidade no comportamento humano. As pessoas mudam: crenças, atitudes, ideias e sentimentos. Há em cada um de nós caprichos, defeitos, idiossincrasias, preconceitos, ansiedades e sentimentos não declaráveis. Algumas pessoas são mais volúveis, outras mais estáveis.

Vale entender que é possível uma relação muito agradável sem que exista de fato uma amizade. Isso porque, via de regra, as pessoas não expressam diretamente a desimportância que podem dar a alguém que consideram divertido, agradável, inteligente e gentil. Sem expressar verbalmente, tendem a demonstrar em atitudes negativas; descumprindo acordos e não honrando as próprias palavras. Também as pessoas não se revelam por completo. Podem mostrar uma coisa e pensar outra. Ao tratá-las de forma agradável e amigável, elas tendem a responder de igual forma, o que não implica, necessariamente, em amizade.

O amigo é aquele que já conhecemos o suficiente para nele confiar. O amigo é definido pelo grau de confiança, previsibilidade, cumplicidade e experiência que temos com ele, não pelo tamanho de nossa atração ou disposição afetiva. Não importa o quão elevados sejam nossos sentimentos por uma pessoa. Por mais querida que ela seja, nosso sentimento isolado não é suficiente para compor amizade. O que importa é o modo como ela nos trata: se nos valoriza ou não. Se nos valoriza e respeita, como a valorizamos e respeitamos, então a relação vale à pena. Se nos trata com desdém, o melhor é nos afastarmos.

Esse desapego afetivo pode ser doloroso, mas exercê-lo é se livrar de uma dor ainda maior: a que viria caso tivéssemos alimentado a relação, pois estaríamos nos iludindo, e quanto maior o apego, maior a frustração. Fato é que nem todos que apreciamos podem nos conceder a atenção e estima que precisamos. Eis o mundo como ele é. Portanto, quando percebemos que alguém de quem gostamos não nos valoriza, é mais inteligente desapegar e se afastar o quanto antes. Não é apenas questão de orgulho, mas de saúde mental e moral. A regra é simples: não existe amizade sem reciprocidade.

É nas atitudes que reconhecemos quem são as pessoas confiáveis, que devemos incluir como amigos, e quem são aquelas que, embora eventualmente agradáveis, não se importam de verdade conosco. O discurso mascara, mas as atitudes revelam. Aquele que nos diz "sou teu amigo", mas não age como tal; é sempre traiçoeiro e perigoso, porque fomenta em nós expectativas que jamais se poderão concretizar. Mais leal é um verdadeiro inimigo, que deixa claro a sua indiferença e não cria conosco uma relação dupla, mostrando uma face e agindo com outra. Vale mais esse inimigo franco que um amigo aparente.

Encontramos na vida pessoas cordiais, receptivas e agradáveis que parecem amigas, mas que, na realidade, são autocentradas, desinteressadas, desdenhosas e no fundo fazem de nós pouco caso. Quando não somos maliciosos e desconfiados, caímos na armadilha das aparências e nos deixamos levar, imaginando termos ganho uma boa relação. Chega cedo a primeira frustração e vemos que fomos enganados, que não eram por dentro o que pareciam por fora. Nesse momento, é hora de sorrir, lembrar que as aparências enganam, erguer a cabeça e continuar em busca de melhores relações.

A vida afetiva é um imenso garimpo: com paciência encontra-se o precioso, mas não vem sempre e não vem fácil; há sempre percalços no caminho. Como já dizia o bardo: "nem tudo o que reluz é ouro".

10/05/23

Ela Dança Enquanto Come





E se ela não gostasse? Meus amigos gastronômicos achavam maravilhoso, eu adorava, não conhecia quem reclamasse, mas... e se ela não gostasse? Ela cozinhava, parecia entendida. Talvez fosse chata com comida. Será? Tarde demais, porque já estávamos sentados esperando o yakisoba do china.

Eu apreensivo, ela revelando que lhe era habitual dançar levemente enquanto comia. Justificava se dizendo esquisita. Mas eu a pensava divertida, animada, espontânea. Fiquei de olho quando ela foi comer. Rejeitou a carne e pediu um mar de shoyu. Logo nas primeiras garfadas a expressão de satisfação despontou, e ela, tão bonita, meneava a cabeça em dança sutil enquanto comia. Eu assistia, dava risada e me deliciava com aquela presença. Porém, em meu íntimo, ainda duvidava. Estaria mesmo ali, com ela? Não seria delírio, sonho, ilusão?

Dois meses antes, numa festa infantil, eu a vi pela primeira vez. Ela estava lá, muito peculiar, distinta, dona duma beleza mediterrânea e tropical; os traços finos, a cor morena, vestindo preto, um ar de mistério e de mulher interessante que lhe é tão próprio. Ela e o filhinho, muito novo, ambos num canto da festa, esparramados ao chão, brincavam, concentrados um no outro. Imensa devoção ao filho. Moça linda e encantadora, pensei, de aura magnética... Quem será? Donde vem? O que sente? O que pensa? Que dores, que amores, que temores? Que veria neste perdido? Daria-me amizade, carinho, afeto ou desdém?

Eu acompanhava a amiga Marina Lemos e conversava com agradáveis pessoas, mas a figura daquela mãe misteriosa me fazia a cabeça e me atiçava o olhar. Meu sentimento era estranho, vago, indefinido. Um repentino e aparentemente injustificável encantamento, vontade de conexão que me fazia querer mais dela: a voz, o sorriso, a personalidade, o jeito.

Impossível conhecê-la. O motivo: ela mãe, eu vagabundo. Ela integrada ao mundo, eu deslocado dele. Ela viva, muito viva, eu meio morto, meio suicida. Apesar do encanto, fui racional, optei pela renúncia. Um notívago na vida de uma mulher tão solar? Difícil. Se - mesmo sem malícia - eu lhe dissesse que ela se fazia radiante ao brincar com o filho, e que emanava um magnetismo muito próprio, passaria ridículo. Que pensariam? Sujeito mau caráter, cortejando mãe que cuida do filho, tarado implacável, canalha, imoral, pervertido, pornógrafo disfarçado de escritor. Não, eu não deveria aborda-la, não era prudente.

Ignorar a atração. Seguir a vida. Assim, sem saber quem ela era, tendo só a lembrança de um encantamento talvez injustificado. Capricho de minha imaginação literária, que via coisa onde nada havia. E tudo o que eu teria dela: um vislumbre.

Para renunciar sem lamento, uma técnica sofisticada. Primeiro, convenci-me de que foi a beleza o que me atraiu, depois imaginei nela uma personalidade banal. Evangélica, caretíssima, sem ideias próprias, experiências traumáticas ou um grande sofrimento na alma. Seria essa a minha verdade. Uma pena existirem no mundo pessoas de aura tão encantadora e conteúdo tão precário. Mais uma das grandes contradições da vida, pensei. E fiz-me liberto daquela atração. Deu muito certo, ao menos por um tempo.

Não mais a vi e já imaginava-me livre de seus encantos.  Assim foi até ontem - dia maldito no qual aquela moça me enredou de vez...

Ontem: o segundo e fortuito encontro. Outro lugar, outro contexto. Com ela lá, tive de novo o sentimento, a curiosidade, o interesse. Havia algo novo, uma informação que dizia: "Erraste feio, João Ramalho, porque ela não é medíocre coisa nenhuma, deve ser muito interessante, isso sim". A conduta diferente, inusitada. Naquele show de Rock, ela de aura solar, todos de preto e ela de regata amarela. No meio do caos, ela lia, sozinha, independente, certa de si, livre. Livro volumoso, capa dura, ela sentada em semi-lótus, arvore atrás, as pessoas passando, este autor  inebriado pelo álcool, o cover de Led Zeppeling tocando Immigrant Song, o entardecer, tudo ocasião propícia, tudo convidativo. Deveria falar com ela, era óbvio, era um chamado.

E então, passadas  algumas horas, nós estávamos ali, entrosados, atentos, falando sem parar e curiosos um com o outro. Ela mãe e trabalhadora, eu solitário e vagabundo. Ela solar, eu lunático. Nossa divertida interação incluiu peregrinar na noite pela cidade (ideia dela), apreciar o melhor yakisoba da região (ideia minha) e desfrutar uma rica conversa que esmiuçaria detalhes complicados de nossas biografias.

Já tarde, pouco antes das dez, depois de muita prosa, andanças, sorrisos e revelações, nos despedimos.

Longe de casa e do show, nas ruas escuras e quase desertas de uma região talvez perigosa, eu regressava ouvindo música no headphone, e pensava no inusitado daquela conexão.

Difícil compreender a nossa insuspeita harmonia. Antes, tentara fugir dela, renunciá-la. Mas agora me via girando em seu vórtex de charme, carisma e seu imenso fogo de vida. Uma sensação que aquilo devia acontecer, que não podia ter evitado. E ela... a personalidade tão parecida com algumas mulheres do meu passado... Relação déjà-vu? Fatalidade? Eterno retorno? Destino? Não sei, não sei...

Ainda penso no seu jeito divertido, na história de vida tão interessante, com episódios muito tristes, dramas e mistérios. Se a verei novamente eu não sei, nem me atrevo a especular.  Satisfeito com o encontro, alegro-me ao pensar naquela moça tão incomum. O brilho no olhar, o sorriso, o bom humor...

Lembro, sempre lembro e sorrio: se a refeição é boa, ela dança enquanto come.

19/04/23

Tétano no Coração



 
Amizade em crise. Antes do bloqueio: Marina bonita, Marina culta, Marina inteligente, Marina autêntica, Marina singular. Depois do bloqueio: Marina desgraçada, Marina insensível, Marina vaca sagrada, Marina diamante, Marina deusa. Deusa não, deusinha. Deusinha de um metro e um biscoito, vestindo preto no calorzão de um sábado, quase gótica, cabelos muito pretos, pele branquinha branquinha, pálida feito a Murta-Que-Geme, porque Marina não pega muito sol. Marina, minha amiga do coração triste e ferido, transpassado pela lâmina da rejeição e do "não entendo".

Amigo ajudador, metido a sabe-tudo, eu vi a ferida aberta, pensei vou ajudar, plano arriscado, muito arriscado, intuitivo, mas por Marina vale arriscar, amiga a quem quero bem, afeto grande. Arrisquei. Falei com o Monstro do Passado de Marina. Queria bater nele, subjuga-lo, dominá-lo, mas não tinha esse poder. Melhor outra abordagem. Negociar, pedir, persuadir. O Monstro tinha forma de gente, talvez tivesse coração. Falei com o Monstro de Marina. Descobri que era mesmo monstro: não tinha coração; pedra pura e dura no peito. Homenzinho insensível, não ajuda, não se importa, deixa minha amiga sofrer. Tentei ajudar mas deu tudo errado, subestimei o monstro - achei que era homem mas era bicho. E agora Marina magoada, a ferida dobrada, a vergonha, a timidez, o coração agora dói muito e dói mais. Reativei dor antiga, fiz ativo um sofrimento vulcânico que adormecia. Culpa minha. Marina antes apenas não entendia, agora sofre mais e tem a quem culpar. O culpado: eu, com meu plano besta.
 
Pior: a dor é tanta que a afasta. Marina não mais amiga, mandou-me às favas, eu que me calasse, eu que me afastasse. Nosso contato bloqueado, seu carinho negado; agora  a raiva dela, o dedo indicador, o afastamento, a rejeição a mim e ao meu plano bem intencionado e idiota. O amigo idiota, por que foi se meter? Ficasse quieto, não era da sua conta. Deixasse o monstro lá, quieto, na dele. Só fiz piorar as coisas. E agora Marina sofre, sozinha. E eu sofro também: pelo sofrimento dela e pela culpa que agora sinto.
 
Que faço, Marina? Sem te poder salvar, que faço? Tu te salvas de mim, tu te afastas. E eu, Marina? Quem de ti me vai salvar? Esta minha culpa, esta minha dor, este meu arrependimento, até quando?
 
Puna-me, Marina, puna-me por favor. Pega um punhal do Tranca Rua e esfaqueia o meu peito esquerdo. Uma, duas, três facadas sinistras, que é número místico a me amaldiçoar os sentimentos. Se for isso brutal demais para tua alma cristã, faz diferente; pega um velho colt enferrujado, toma distância e atira no meu coração, quero nele um furinho feito por ti, bem redondinho, uma dor insuportável por ti provocada. Quero uma bala velha e também enferrujada, que é para ensejar tétano no coração, forma poética de adoecer. Ou, talvez, melhor o chicote: aproveita  minha cor negra, minha devoção ao feminino, minha resignação estoica - e  faz de mim um escravo, Marina. Dê-me cem, quinhentas, oitocentas, mil chibatadas! Vinga-te da minha bondade idiota, dê-me uma bondade cruel. Puna-me, Marina, puna-me por favor, por caridade, por compaixão, por sentimentalismo!
 
Não te afastes simplesmente, não me deixe sem algo teu. Dê-me algo, mesmo o teu ódio, mesmo o teu sadismo. Pois hei de aceitá-lo com ascetismo e fidelidade, porque se é para a tua satisfação, o meu martírio é uma bênção e um dever. Deita o meu corpo numa cama de faquir, cheia de pregos, e caminha sobre mim: põe de fundo A Cavalgada  das Valquírias e com teus lindos pezinhos de princesa erudita executa uma gloriosa dança cigana sob a minha carapaça, olha vitoriosa nos meus olhinhos úmidos e arrependidos enquanto a minha carne se afunda, se corrompe e sangra entre pregos. Então diz, maravilhada, emocionada, que sou bom amigo, que me sacrifico, e que ao me punir me perdoa. Diz que entende, que não tenho culpa de te querer bem e nem de ser idiota e tentar o improvável. Puna-me, Marina, puna-me por favor. Puna-me por afeto, por pena, por dó.
 
Faça-me gastar uma fortuna com as formigas mais perigosas do mundo, egressas da nossa selvagem Amazônia, bestas cuja picada dói até mais que um tiro. Faça-me encher uma piscina com elas, manda-me então nadar inteiramente nu, e eu irei. Não posso imaginar quanta dor, quanto sofrimento, quanta mutilação. Ah, mas se essa minha dor te fizer feliz,  se te arrancar um sorriso, que dia maravilhoso, que vida maravilhosa, que conquista!  Faça o que for, mas não te fechas, Marina.  Abre o teu coração para essa nova dimensão do afeto; descobre em ti o mal que liberta, o mal que purifica.
 
Puna-me, Marina, puna-me, queridinha, puna-me, meu amor. Puna-me com fervor e com justiça. Derrama o meu sangue na terra, enriquece a minha vida com o teu mal, porque, se ele existe, é melhor aplicá-lo em mim do que em ti. Quando, em tenebrosas horas tardias, a auto violência te assolar o pensamento, lembras deste aqui, teu bode de expiação. Impõe a mim o sofrimento físico, porque , mesmo sendo de outra natureza, nos fará cúmplices na dor. E de ti eu só quero a cumplicidade. Se em ti gerei dor, de ti mereço recebê-la. Puna-me, Marina, puna-me, minha amiga. Puna-me por piedade, puna-me por gentileza, puna-me por  favor.

29/03/23

A Culpa é da Marina


Gostei muito de Dona Marilene. Seu temperamento expansivo, sorridente, transbordava afetuosidade. Devia ter lá os seus cinquenta e tantos, talvez sessenta - idade sem importância, pois que vigor, que energia, que brilho no olhar. Toda bom-humor, divertida, moleca, beijou-me o rosto fazendo trocadilho com o doce ("beijinho"); depois repetiu a galhofa em Juan, que lhe era como um neto. Eu os conhecera apenas há algumas horas. Quem diria que, sábado pela tarde, um calor daqueles, eu estaria numa festa infantil, entrosado com um roqueiro e admirando o afeto cósmico de uma avó.

A culpa, é claro, foi da Marina Lemos. Não fosse por ela eu jamais teria saído de casa. Passaria o sábado enfurnado, tentando estudar, lendo livros e ouvindo Manu Chao nos intervalos. E sim, eu percebo a ironia: John Ramalho, o eremita que gosta de Manu Chao. Logo ele, o eterno viajante e autor dos versos: "Me chamam de desaparecido/Fantasma que nunca está/Me chamam de desagradecido/Mas essa não é a verdade/Eu levo no corpo uma dor/Que não me deixa respirar/Levo no corpo um castigo/Que sempre me põe pra caminhar". John Ramalho, inconsistente, contraditório: gosta da lírica de quem viaja, mas não gosta de viajar.

Mas preciso falar dela, a culpada: Marina Lemos. Sobrinha do ex-prefeito, ex-namorada de um dos meus amigos mais eruditos e licenciada em letras-grego. A rotina de nossa amizade consiste em três constantes: 1) dar rolês aleatórios, 2) passar eras sem se ver e sem se falar e 3) se reencontrar por acaso e voltar a dar rolês aleatórios. A aleatoriedade, devo dizer, vinha toda dela. Eu talvez gostasse porque era um desafio ao meu jeito tão metódico. Com a Marina eu não sabia o que iria acontecer ou quem iríamos encontrar, o que era horrível, agonizante, mas interessante também.

Eu em casa, o telefone toca, olho e vejo que é Marina. "Ou está ligando por engano ou vai me chamar para algum rolê aleatório bem em cima da hora" pensei.

- Oi Jônatas, tem compromisso hoje à tarde? (Marina é uma das poucas pessoas no mundo que ainda me chama por meu nome de batismo. Coisa de quem me conheceu há dez anos, imagino.)

Escuto a voz de contralto dela e passo a me sentir muito importante. Vem a tentação de esnobar, dizer não, bancar o difícil. Por que sair nesse calor? Não, não vou.

- Oi, amor da minha vida. Provoco.

- O quê? Eu te enviei vídeo? Marina, sem me entender.

Não sei por que, mas com ela é sempre assim, bastam poucas palavras e um de nós já está passando raiva com o outro.

- Não, eu disse "amor da minha vida". Explico, de mau-humor.
- "Amor da minha vida"? Nossa, que infantil.
- Você acha "amor da minha vida" infantil?
- Acho.

Marina tinha essas opiniões esquisitas. No passado eu a apelidara "Luna Lovegood", por causa de sua excentricidade charmosa, como a personagem de Harry Potter. O divertido é que, antes de mim, outros amigos dela já haviam notado a semelhança e carimbado o mesmíssimo apelido. Marina: duas vezes Luna Lovegood.

- Olha, depende, Marina. Largo meus compromissos se você me convidar para algum rolê indecente.

Ela bufa, mau-humorada. Mas logo se acalma e, meio relutante, pergunta:

- Quer ir numa festa de criança comigo?
- Festa de criança? Indago, incrédulo.
- É. Ela responde.

Enchi os pulmões de ar e preparei meu sermão para dizer que não fazia nada que não fosse planejado, pensado com antecedência, premeditado, infinitesimamente calculado. Mas quando fui falar, ela me quebrou:

- Pô, é que eu tenho que ir, mas não quero ficar lá sozinha.

"Sozinha". A palavra ecoou e, de um jeito inesperado, me tocou. Marina era amiga, e amigos fazem companhia a amigos que precisam de companhia, certo? Certo, certíssimo - bonito até. E foi assim - pelo fascínio estético de cumprir meu dever como amigo - que, num sábado calorento, eu abandonei meus diligentes estudos, leituras e meu Manu Chao para dar um rolê aleatório com a Marina Lemos numa festa infantil, na casa de quem eu nunca havia visto, sem saber se seria bom ou ruim, chato ou divertido.

Para não sair no prejuízo, fiz uma condição: Marina deveria ler minha última crônica, analisá-la e me dar uma opinião sincera. Ela disse que leria na festa. Se ela diz, eu confio. Confio nos meus amigos. Tenho amigos para poder confiar em alguém.

Solícito e benevolente, eu a acompanhei até a festa. Fui esforçado: sorri para gente desconhecida, socializei, conversei, fiz piadas, conheci gente agradável e saí de lá sem cometer infanticídio, mesmo diante de tanta algazarra infantil e infernal. Fiz minha parte.

E Marina?

Marina nem leu minha crônica.

Cheguei em casa me sentindo meio idiota e um tanto irritado. Marina não cumprira o acordo, fiquei chateado. No entanto, meditando a respeito, percebi meu apego exagerado ao texto, minha volição comunal em compartilhar com amigos, ouvir deles opiniões. Antigamente a mera sugestão de precisar da atenção alheia já me soava ofensiva. Hoje, porém, reconheço a verdade: não fosse o afeto dos amigos e entes queridos, nenhuma literatura (nem mesmo esta subliteratura) me seria possível.

Mesmo assim, ao escrever esta crônica, na primeira versão, ainda colérico, pus nela um ultimo parágrafo rancoroso e um tanto ofensivo. Nele eu dizia a Marina uma crueldade; vileza grande, coisa imbecil que, sei bem, a magoaria. Foi cruel mas foi ótimo. Limpou-me a alma, exorcizou o sentimento tenebroso, deu um tom final triste e trágico. Uma beleza, e como o pessimismo está na moda, os leitores adorariam. Pena que eu não gostei. (Como sou mercenário, estou cobrando 50 reais pelo parágrafo proibido, desde que ninguém o mostre à Luna).

Marina não leu a outra crônica, mas leu esta. Deu risada, divertiu-se. Disse que Dona Marilene é mesmo incrível, que ficou feliz pela amizade que fiz com Juan, pelo meu esforço na socialização, e declarou que foi a melhor crônica que eu já escrevi na vida. Equivoca-se, claro, pois é apenas a terceira que ela lê.

Um pouquinho ainda de raiva de você, Marina. Tu é esquisita. Duas não: três, quatro, cinco vezes Luna Lovegood. Esquisita, mas amiga.

Não só pela minha raiva, mas também por esta crônica: a culpa é da Marina.

22/03/23

Um Milagre na Madrugada

Para cada homem e mulher, a vida social se mostra como uma perpétua Torre de Babel, povoada por gente de todo o tipo que, via de regra, não se entende de forma alguma. A comunicação, alma da vida social, desponta como drama absurdo no qual todos falam e ninguém se entende, porque tudo vira cacofonia e ruído, toda ideia de valor proferida termina obscurecida por conveniências, omissões, covardias, cooptações, ilusões, condicionamentos e desconfianças. Tudo o que é complexo acaba simplificado, diminuído, compactado e consequentemente falseado.


Rebelde, eu sonhei, pela honestidade de minhas pequenas letras, instigar mentes humanas com as minhas tímidas e pouco usuais verdades - porque a verdade, mesmo a minha verdade, que é a angústia da dúvida, e mesmo nas mãos de um tímido, é uma arma tremenda - mas me deparei com tanta barreira, tanta pedra no caminho, tanta incompreensão. Desiludido, por vezes deixei de acreditar na palavra, no entendimento e na virtude. Cheguei mesmo a divinizar o silêncio. E no entanto, por uma vontade que não se explica, fiz-me cético sobre meu ceticismo e lutei contra minha descrença. Dom Quixote filosófico, persigo agora uma miragem: a utopia da compreensão entre os homens, e nessa perseguição faço-me cronista, prosador, ridículo crente na palavra, no diálogo com a cultura letrada, seguidor do caminho da consciência, caridoso distribuidor de verdadezinhas íntimas, sensíveis, pessoais, grandes porque talvez irrelevantes.

Vida difícil essa, pois há nela mais solidão que comunhão. Entretanto, se nenhuma felicidade é completa, nenhum infortúnio pode sê-lo também. Mesmo a mais pungente solidão letrada não está livre de uma eventual contingência que traga o afeto luminoso, no qual, numa irrupção verbal imprevista, a compreensão se faz solene, abrangente, total. Ocorrência essa que considero verdadeiro milagre. Talvez pequeno, mas ainda assim milagroso. Foi isso o que, inesperadamente, me aconteceu. E para que os homens saibam ser possível, dou-lhes testemunho desse milagre que, passado na última madrugada, infundiu-me senso de fraternidade, uma paz, uma leveza, uma elevação, e mais do que tudo uma esperança em relação ao humano, como há muito este aqui não sentia.

***

A voz era doce, afinada, limpa. A inflexão, embora temperada por uma excitação mental que ela não pretendia esconder, sugeria uma sobriedade, uma perspicácia, uma inteligência felina e ferina. Como eu, aquela mulher tinha algo de fera, também ela nutria a rebeldia que viceja nos espíritos altivos, angustiados; os tipos sombrios e deslumbrados que sofrem a posse duma inteligência diabólica, uma falha na consciência que os impele a contemplar o abismo de todas as coisas. Muito consciente, ela sabia de seu valor, e no entanto, diferente deste, não tinha em si o pecado do orgulho. Verdade é que, para ela, a própria superioridade era apenas subproduto de sua disposição livresca, uma febre de filósofo humanista, de latinista medieval, de erudito e de polímata subjugavam-na: tinha a curiosidade voraz e expansiva de quem tudo quer saber - não apenas acreditar, ela queria mesmo é saber! - um amor inegociável pela vida letrada e contemplativa, pela investigação e pelo conhecimento. Admirava-se disso: a curiosidade abundante, raiz indubitável de toda aquela inteligência que ela, ruiva fatal, desnudava sem pudores para o amigo cronista.

"Falamos a mesma linguagem" ela me disse. Com seu discurso pródigo, lúcido, culto e refinado. Com toda certeza o resultado da busca intelectual de uma vida inteira, de seu esforço e persistência, que permaneceria com ou sem estímulos da cultura exterior. Era assim a minha amiga: em tudo diferente do tipo de mulher vulgar e pretensiosa que parece ter dominado a maior parte dos espaços públicos deste século. Época trágica, na qual muitas mulheres se empenham em condutas bárbaras tão ou mais escabrosas que as praticadas pelos homens. Mulheres que se apequenam ao buscar paridade com uma coisa tão débil e ridícula quanto um homem.

Distinta, superior, impondo a si mesma os mais altos padrões, os gostos mais refinados, a sensibilidade mais poética, a inteligência mais penetrante, dispondo de enorme paixão pelo mistério perene que é a origem de cada coisa deste mundo, e apesar de tudo, de tão grandioso espírito, de tanta sabedoria, era ainda jovem, tão jovem que me causava espanto.

Eu a ouvi deslumbrado. Por todas aquelas horas, quando não era eu a divagar, em cada segundo, mesmo nos silêncios, eu a ouvi, deslumbrado. Com desenvoltura ela me falava de Emil Cioram, Mírcea Elíade, Terrence Mackena, Georges Bataille, Carlos Castaneda e tantos outros. Quantos? Não saberia dizer. Parecia-me um verdadeiro exército de homens e mulheres criativos, heterodoxos e instigantes; uma galeria de malditos, místicos e rebeldes cultivada com carinho e afeição. A riqueza cultural daquela mulher, a sua grandiosidade de espírito, tão rara, tão preciosa, tão única, era como se os deuses, cansados das minhas reclamações sobre a debilitada constituição mental e moral da mulher pátria, me tivessem concedido um gostinho do paraíso. Como uma resolução de Apolo a me dizer: "Para que não te atormentes em demasia, tu, criatura piedosa e de espírito trágico, que a todos os deuses venera, e que em todos eles inspira compaixão, conhecerá uma ninfa e nela encontrará abundância na formosura e na inteligência". Assim disse o deus, assim aconteceu ao mortal. E ali, naquele telefonema, naquela madrugada, travei a mais íntima relação mente a mente, alma a alma, com a ninfa de cabelos vermelhos e olhos esverdeados, tendo mais que um vislumbre de sua irrevogável grandeza.

A conexão verbal que se enriquecia no silêncio da noite. Como passou rápido o tempo! Foi a primeira parte da noite e veio a segunda, a madrugada. Passou a primeira, passou a segunda, e nenhum de nós, nem eu nem ela, ousou largar o telefone. Aquele elo, aquela conexão, aquela cumplicidade, aquilo talvez não fosse tudo na vida, mas era, certamente, uma das coisas mais valiosas, mais significativas, mais belas e mais poderosas. Era o que eu buscava numa relação, ela também. Como faríamos na despedida? Como desligar? Não havia vontade, mas, em algum momento, seria necessário.

Foi somente ao raiar da aurora que nos despedimos, não sem antes denunciar ao outro a gratidão por aquela vivência. Naqueles momentos finais, a surpresa: a ligação durara até ali 7 horas e 30 minutos de conversa ininterrupta. Apesar da cifra, na história das afeições intelectuais não chegamos a bater o recorde. Nossa prosa daquela noite resulta cinco horas e meia a menos que as famosas 13 horas que Jung e Freud conversaram quando se encontraram pela primeira vez. Ainda assim, 7 horas e meia de conversa ininterrupta, sem sair dela entediado, parece-me uma comunhão deveras significativa. Além disso, eu e a ruiva ainda não nos encontramos pessoalmente. É nossa opinião que boas amizades e excelentes conversas são terapêuticas. Essa com certeza foi. Saí dela pensando na divindade de algumas mulheres, na grande comunhão que pode haver entre amigos, na magia da mútua e profunda compreensão.

Tudo isso eu digo e ainda provoco: o recorde dos mestres da psicanálise que se cuide: pois a ruiva e eu estamos no páreo.