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14/02/24

Academia Individual do Esforço Intelectual e Literário




Na sua condição de criatura pensante, o filósofo  questiona até mesmo a natureza de seu ofício. Que é a filosofia e o que é o filosofar? Por que fazer tantas perguntas, desfilar tantas ideias e passar a vida investigando problemas talvez insolucionáveis? Refletindo a respeito ele percebe que, como tudo em filosofia, não existe apenas uma resposta possível.


A mesmíssima conclusão acomete os escritores que se indagam na tentativa de compreender suas motivações. E eu, escrevendo aqui no blog, não escapo desse comum destino do filósofo e do escritor. Assim, ponho-me a questionar o porquê escrevo.


Penso que é preciso, tanto para mim quanto para o meu leitor, que  as ideias na cabeça e as coisas no mundo fiquem claras. Busco organização e clareza. Não terá sido esse, desde sempre, o meu objetivo ao escrever? Quis sempre organizar meus pensamentos, sentimentos, experiências e entendimentos. Tudo nomear, classificar, empacotar, analisar e guardar para consulta e revisão futura. Demandava conhecer, ponderar, e a partir disso, orientar-me.


Isso dito, devo, agora, voltar-me ao passado. Devo, num esforço de auto-compreensão, recordar meus primeiros sentimentos na feitura dos primeiros textos dotados de ambição. Esse exercício há de me revelar detalhes. Daí a pergunta: qual era, aos treze anos, ao escrever o primeiro registro na primeira agenda, a minha ambição?


Sei bem a resposta. Eu queria memória. O que havia de específico naquele tempo, na minha vivência individual, no meu mundinho de adolescente letrado, eu queria fixar. Tencionava uma fotografia dos meus estados interiores, eu queria descrever, dar a conhecer, trazer luz ao que ao mundo era oculto. Era a ânsia do testemunho, a necessidade de contar minha história, com os atos e angústias dos quais era eu a única testemunha. 


Mas... Por quê? Donde é que me vinha essa ambição do testemunho? Qual era sua origem externa? Lembro de algumas influências.  Um homem interessante que escrevia reflexões em seu diário, e que vi num filme épico - O Último Samurai. Alguns livros infanto-juvenis da coleção Vaga-Lume, por terem histórias protagonizadas por adolescentes, como O Mistério do Cinco Estrelas e A Serra dos Dois Meninos. Os quadrinhos do Homem Aranha, onde eram mostrados os pensamentos, a voz interior do personagem. E o evento decisivo; que foi ler, na casa de um bom amigo, um trecho de seu diário (na verdade uma agenda), mostrado por ele com a casualidade de quem mostra um novo relógio ou uma fita de video-game. Esse amigo chamava-se Tiago e foi também ele quem me  apresentou a estética e o Rock do Guns N' Roses, além de outras referências culturais que, em meu meio neopentecostal, eu não tinha acesso. 


Foi pela soma dessas primeiras influências que pesou sobre mim uma intuição histórica: a necessidade de registrar e recordar. Registrar para recordar. Reflexões e memórias anotadas, lidas e relidas, eis a matéria prima da consciência. Eis o motivo pelo qual sei hoje sobre mim o que não vejo os outros saberem sobre si mesmos.  Com o tempo, Tiago abandonou seu diário. Eu continuei o meu. Continuo ainda hoje, e, até morrer, ou ser impedido, continuarei.


Feita essa retrospectiva, eu já consigo distinguir, com mais clareza, algumas causas do meu escrever. É certo que havia em mim tanto a sensibilidade quanto a vocação do memorialista. Sendo esse o gênero no qual, até hoje, a maior parte da minha literatura foi escrita. Gênero eminentemente doméstico, privado, familiar, e que só se torna célebre quando é também célebre o seu autor. 


No curso da vida o meu conhecimento literário foi crescendo e eu passei a apreciar, e as vezes cortejar, outros gêneros. O artigo, a crônica, o prefácio, o manual, o manifesto, o ensaio, o conto, a novela, o romance, a confissão, a análise crítica, o obituário, a poesia, a resenha crítica, o texto filosófico, a carta, o e-mail literário, o texto humorístico, a sátira, a polêmica, a retórica, a elaboração fina e sarcástica em redes sociais, o diálogo, as respostas em sites de perguntas, os relatos de internet, os bilhetes suicidas, a trollagem; as confissões, piadas, reflexões e relatos emocionados dos comentários dos vídeos de músicas antigas no Youtube; os roteiros de cinema e quadrinhos, as notas soltas; e, finalmente, o texto de blog, que é o mais contemporâneo, o mais completo, o que comporta todos os outros, mas o que em status é talvez o menor gênero, o menos prestigiado, sendo a um só tempo o mais acessível e o mais inacessível de todos.


Direi que esses gêneros, por mais diversos que pareçam entre si,  pertencem todos  a um mesmo grupo, um macrogênero que chamo de "o vasto conjunto das ideias interessantes que podem ser  transmitidas textualmente com beleza e charme". E como escrevinhador eu entendo que, por aqui, é nesse macrogênero que devo atuar.


O que quero aqui, no blog, é clarear as ideias, desenvolver e registrar os meus raciocínios sobre os meus temas de interesse. Não, não é verdade, eu quero mais. Preciso pôr aqui o meu pensamento primário, e depois, relendo-o, revisá-lo e apará-lo. Devo plantar aqui reflexões como quem planta arbustos e depois, carinhoso, faz a poda. É isso. Quero aqui não só os primeiros pensamentos, mas as revisões e reanálises. Quero, em suma, fazer da minha selva mental um belo jardim frutífero, único e singular, extirpando sempre as ervas daninhas. Quero dizer o que só eu posso dizer, numa minha linguagem própria e precisa; bela, porque simples.


É com essa pretensão que escrevo neste blog, e não com outra. Se algum bem eu posso fazer aqui, este bem é, primeiramente, em prol do meu pensamento e do meu progresso enquanto escritor. Lutar pelo encontro da própria voz, lutar pela descoberta dos próprios valores e conhecimentos fundamentais, e lutar pela  melhor expressão das próprias ideias. São essas as três grandes batalhas do escritor.


Devo pensar neste blog como o espaço público, embora discreto, de uma minha Academia Individual do Esforço Intelectual e Literário. Entidade essa que é a soma dos meus esforços, públicos e privados, nesse âmbito. Nela treino e fortaleço meus músculos da mente, do raciocínio e do estilo para avançar nas batalhas que o mundo literário e intelectual me impõe.

15/03/23

Um Dervixe Muito Louco

 


Cresci numa cidade superpovoada por doidos. Um dos mais icônicos era o "Rodadinha". O sujeito ganhara tal apelido porque exibia reação totalmente passiva e obediente ao comando: "Dá uma rodadinha!". Era dizer isso e ver o doidinho girar e girar, tal qual um dervixe em êxtase místico.
Óbvio que todo moleque satânico adorava encontrar com ele na rua; e, sem piedade alguma, berrar: "DÁ UMA RODADINHA!"
Havia também os "comandos secretos", aos quais ele também respondia. Eram ainda mais deliciosos: "Põe a mão no cu e cheira!"; e o diabólico: "Senta no vergalhão da obra!"
Como sempre fui um menino de Jesus, fiz ele fazer os três, várias e várias vezes. O coitado só faltava chorar quando me via. Eram horas e horas de um gostoso sadismo opressor. E eu, adolescente, aprendiz de capiroto, gargalhava, de lacrimejar de rir.
Depois dessa "iniciação", fiquei totalmente obcecado pela temática do controle mental. E sou até hoje.
***
(PS: O doidinho existiu mesmo, muita gente da cidade o conheceu. A história é absurda, mas verídica. Familiares e amigos de infância podem comprovar.)

18/03/22

A Erva Que Não Era do Capeta - Um Breve Relato de Experiência Psiconauta

  

[Paulo Francis fumando um… cigarro…]

Certa vez, acho que no Manhathan Connection, perguntaram ao Paulo Francis quais drogas ele já havia usado, ao que ele respondeu:

"Todas. A melhor é speed ball. E maconha não faz mal algum".


Pois bem. Diferente do Francis, eu usei poucas drogas.

E só as usei quando já havia saído de casa, tinha já meu emprego, minha independência e, finalmente, era "o dono do meu nariz": livre para cometer a burrada que me desse na telha.

Mas devo confessar que, de início, drogas não me atraiam. Como fui criado numa cultura puritana, não via o entorpecimento com bons olhos. Lembro de, já adulto, um amigo ter me oferecido maconha várias vezes e eu sempre ter recusado, cheio de orgulho do que considerava minha pureza de caráter. E eu teria permanecido em tal postura não fosse um motivo de ordem puramente intelectual:


Um amigo me apresentou as teorias de Terence Mckenna sobre a influência dos psicotrópicos e enteógenos no desenvolimento da cultura humana e na origem das experiências religiosas. Em 'O Alimento dos Deuses', Mckenna, que era um etnobotânico e pensador bastante heterodoxo, especula sobre a tese de que o uso gradativo e irregular de determinados tipos de cogumelos alucinógenos podem ter levado o ser humano a desenvolver a linguagem e um nivel maior de autoconsciência, provocando nosso salto evolutivo.

22/02/22

Foi-se o Comentarista



Imagino que os amigos de mesma geração tiveram experiência semelhante. No meu caso, aconteceu assim: sentado no sofá da sala, acompanhando meus pais enquanto assistiam ao Jornal Nacional (evento rigidamente tradicional para famílias brasileiras dos anos noventa), eu ficava deslumbrado e perturbado quando, em algum momento do noticiário, surgia um senhor grisalho e muito eloquente; que falava dos principais eventos com comentários irônicos, certeiros, perversamente bem-humorados e espirituosos.

Pré-adolescente, eu não entendia muito, mas catava, numa frase ou em outra, um deboche, uma sátira, um pastiche. Notava que ali havia humor e achava estranho, pois contrastava com a sisudez do jornal. E não era o humor que eu conhecia. Era algo novo, mais refinado.
Esse curioso comentarista tinha nome: Arnaldo Jabor.
Mais tarde, soube que ele era um figurão da cultura nacional. Participou do Cinema Novo, ajudando a fazer história num período de grande efervescência da cultura brasileira. Como colunista, antes de se focar no mundo político, entreteve e ilustrou milhares de leitores durante décadas. Publicado semanalmente em 23 jornais, esbanjava crônicas culturais engraçadas, inteligentes e enriquecidas com referências à dramaturgia, cinema, pintura, música, quadrinhos, literatura e história. Há em sua prosa o olhar desiludido de um ex-militante comunista, mas também a confissão cínica de quem viveu nossa história; e, para não enlouquecer, fez tragicomédia com nossos personagens e enredos quotidianos.
Certo ou errado, sempre culto e opinativo, era uma mente instigante.

02/01/22

Lucas Fez Contato: Breve Nota Sobre o Meu Amigo Mais Descolado

A foto do Lucas que capturou um interessante período de nossas vidas.

Fotógrafo e mestre em historia da arte, Lucas Lopes está entre os amigos que mais invejei. Um dos meus  mais longevos camaradas, a origem de nossa amizade deu-se há muitos anos numa divertida turma de oitava série. A paixão por rock, cinema, terror e contracultura nos uniu; assim como nossa sensibilidade melancólica, ou existencialista. Veio dele o primeiro CD do System of a Down que eu ouvi na vida. Sempre gentil, Lucas emprestou-me até o discman para que eu ouvisse o cd. Era 2006 e eu o achava muito descolado por ter um discman, além disso, simpatizava com seu estilo grunge, de cabelos grandes e desgrenhados, vez ou outra declamando alguma frase triste de Kurt Cobain.

Branco, de olhos claros, volumosos cabelos negros, lábios de um vermelho incisivo, olhar sereno, corpo magro e esbelto, deve ter quase um metro e setenta e cinco de altura. Seu rosto, fino e alongado, lembra um pouco o do escritor Robert Louis Stenvenson. Sua aparência, que sugere um perfil de modelo ou ator, sempre encantou as meninas. Daí parte de minha inveja, já que era impossível vencê-lo na arte de encantar as fêmeas. E, de fato, o safado abocanhou algumas meninas com quem eu gostaria de ter ficado, incluindo a bela e badalada Miss R.... Apesar da inveja, nunca levei para o lado pessoal. Não se pode ter tudo, afinal.

Desde os tempos do ensino fundamental continuamos amigos, travando contato as vezes mais e as vezes menos. Acho curioso notar que nosso desenvolvimento pessoal ocorreu por vias contrárias. Enquanto eu tornava-me cada vez mais ressentido, antissocial e arrogante intelectualmente, Lucas tornava-se cada vez mais aberto, humilde e acessível. Enquanto eu permanecia trancado em meu quarto cultuando filósofos mortos, Lucas desbravava o mundo, cultivando as pessoas legais e artísticas que existem nele. Sempre que nos encontrávamos eu ficava admirado com a popularidade e o carisma de meu amigo, que eu percebia pela quantidade de pessoas interessantes que o cercavam. Apesar disso, na maior parte do tempo eu desprezava sua abertura social. Apesar de bom leitor, Lucas não era tão intelectualizado quanto eu - ele era um hipster, e eu um projeto de intelectual diletante - ou ao menos era o que eu pensava, e por esse raciocínio eu concluía que para ele era mais fácil socializar com não-literatos e "cult-bacaninhas". (Na época, não me passava pela cabeça que o nível intelectual não é o melhor critério para julgar as pessoas. Eu realmente achava que era.)

Lucas e eu numa foto improvisada, num momento lúdico-canábico, há oito ou nove anos.

Hoje eu sei perfeitamente bem que a abertura social é uma das melhores qualidades de meu amigo, e que isso lhe proporcionou  muitas  experiências interessantes com gente diversa. Qualidade que aprendi a admirar e invejar. 

Por vezes noto certa atmosfera de mistério em meu amigo, algo difícil de descrever... Sempre achei que ele tinha algo de melancólico, não digo depressivo, mas uma aura de solidão resignada, com certo ar de nouvelle vague, apesar de vê-lo muito mais sociável e melhor integrado. Posso estar errado, mas parece que há um sentimento nele... Algo profundo e doloroso que eu não sei o que é. Impressão que faz lembrar a frase de Cobain que ele costumava citar: "Se meus olhos mostrassem minha alma, todos, ao me verem sorrir, chorariam comigo".

Eu e Lucas vivemos algumas boas aventuras juntos (uma delas foi acampar com amigos em comum). A última vez que o vi foi no início de 2019. Como eu visitava o Rio de Janeiro, marcamos encontro na casa do Matheus Antunes, um velho amigo em comum, aproveitando a ocasião para reunir alguns membros de nossa antiga gangue juvenil, os "Pés Pretos". Foi uma divertida noite, regada a boas substâncias ilícitas, bom álcool, boa conversa, sentimentos nostálgicos e boas músicas. Infelizmente, meu contato com Lucas arrefeceu consideravelmente nos últimos tempos, em parte porque passei anos morando em outro estado (Brasília) e em parte devido a escolhas naturais que nos levaram a caminhos distintos, o imprevisível fluxo da vida. Mas a amizade continua. Quem tem um bom amigo sabe como é: o respeito e o carinho permanece mesmo quando a frequência do contato se vai.

Em fins de 2021, uma grande surpresa: Lucas, que tem redes sociais mas raramente as usa, enviou enorme texto a um de meus perfis no Facebook. Com sua prosa poética e intimista, o amigo trazia sua perplexidade diante da vida, mandava um abraço e denunciava sua saudade. Foi inesperado mas ótimo presente de fim de ano. Uma dessas boas surpresas que a vida traz, e ótima oportunidade para retomar o contato.