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19/04/23

Tétano no Coração



 
Amizade em crise. Antes do bloqueio: Marina bonita, Marina culta, Marina inteligente, Marina autêntica, Marina singular. Depois do bloqueio: Marina desgraçada, Marina insensível, Marina vaca sagrada, Marina diamante, Marina deusa. Deusa não, deusinha. Deusinha de um metro e um biscoito, vestindo preto no calorzão de um sábado, quase gótica, cabelos muito pretos, pele branquinha branquinha, pálida feito a Murta-Que-Geme, porque Marina não pega muito sol. Marina, minha amiga do coração triste e ferido, transpassado pela lâmina da rejeição e do "não entendo".

Amigo ajudador, metido a sabe-tudo, eu vi a ferida aberta, pensei vou ajudar, plano arriscado, muito arriscado, intuitivo, mas por Marina vale arriscar, amiga a quem quero bem, afeto grande. Arrisquei. Falei com o Monstro do Passado de Marina. Queria bater nele, subjuga-lo, dominá-lo, mas não tinha esse poder. Melhor outra abordagem. Negociar, pedir, persuadir. O Monstro tinha forma de gente, talvez tivesse coração. Falei com o Monstro de Marina. Descobri que era mesmo monstro: não tinha coração; pedra pura e dura no peito. Homenzinho insensível, não ajuda, não se importa, deixa minha amiga sofrer. Tentei ajudar mas deu tudo errado, subestimei o monstro - achei que era homem mas era bicho. E agora Marina magoada, a ferida dobrada, a vergonha, a timidez, o coração agora dói muito e dói mais. Reativei dor antiga, fiz ativo um sofrimento vulcânico que adormecia. Culpa minha. Marina antes apenas não entendia, agora sofre mais e tem a quem culpar. O culpado: eu, com meu plano besta.
 
Pior: a dor é tanta que a afasta. Marina não mais amiga, mandou-me às favas, eu que me calasse, eu que me afastasse. Nosso contato bloqueado, seu carinho negado; agora  a raiva dela, o dedo indicador, o afastamento, a rejeição a mim e ao meu plano bem intencionado e idiota. O amigo idiota, por que foi se meter? Ficasse quieto, não era da sua conta. Deixasse o monstro lá, quieto, na dele. Só fiz piorar as coisas. E agora Marina sofre, sozinha. E eu sofro também: pelo sofrimento dela e pela culpa que agora sinto.
 
Que faço, Marina? Sem te poder salvar, que faço? Tu te salvas de mim, tu te afastas. E eu, Marina? Quem de ti me vai salvar? Esta minha culpa, esta minha dor, este meu arrependimento, até quando?
 
Puna-me, Marina, puna-me por favor. Pega um punhal do Tranca Rua e esfaqueia o meu peito esquerdo. Uma, duas, três facadas sinistras, que é número místico a me amaldiçoar os sentimentos. Se for isso brutal demais para tua alma cristã, faz diferente; pega um velho colt enferrujado, toma distância e atira no meu coração, quero nele um furinho feito por ti, bem redondinho, uma dor insuportável por ti provocada. Quero uma bala velha e também enferrujada, que é para ensejar tétano no coração, forma poética de adoecer. Ou, talvez, melhor o chicote: aproveita  minha cor negra, minha devoção ao feminino, minha resignação estoica - e  faz de mim um escravo, Marina. Dê-me cem, quinhentas, oitocentas, mil chibatadas! Vinga-te da minha bondade idiota, dê-me uma bondade cruel. Puna-me, Marina, puna-me por favor, por caridade, por compaixão, por sentimentalismo!
 
Não te afastes simplesmente, não me deixe sem algo teu. Dê-me algo, mesmo o teu ódio, mesmo o teu sadismo. Pois hei de aceitá-lo com ascetismo e fidelidade, porque se é para a tua satisfação, o meu martírio é uma bênção e um dever. Deita o meu corpo numa cama de faquir, cheia de pregos, e caminha sobre mim: põe de fundo A Cavalgada  das Valquírias e com teus lindos pezinhos de princesa erudita executa uma gloriosa dança cigana sob a minha carapaça, olha vitoriosa nos meus olhinhos úmidos e arrependidos enquanto a minha carne se afunda, se corrompe e sangra entre pregos. Então diz, maravilhada, emocionada, que sou bom amigo, que me sacrifico, e que ao me punir me perdoa. Diz que entende, que não tenho culpa de te querer bem e nem de ser idiota e tentar o improvável. Puna-me, Marina, puna-me por favor. Puna-me por afeto, por pena, por dó.
 
Faça-me gastar uma fortuna com as formigas mais perigosas do mundo, egressas da nossa selvagem Amazônia, bestas cuja picada dói até mais que um tiro. Faça-me encher uma piscina com elas, manda-me então nadar inteiramente nu, e eu irei. Não posso imaginar quanta dor, quanto sofrimento, quanta mutilação. Ah, mas se essa minha dor te fizer feliz,  se te arrancar um sorriso, que dia maravilhoso, que vida maravilhosa, que conquista!  Faça o que for, mas não te fechas, Marina.  Abre o teu coração para essa nova dimensão do afeto; descobre em ti o mal que liberta, o mal que purifica.
 
Puna-me, Marina, puna-me, queridinha, puna-me, meu amor. Puna-me com fervor e com justiça. Derrama o meu sangue na terra, enriquece a minha vida com o teu mal, porque, se ele existe, é melhor aplicá-lo em mim do que em ti. Quando, em tenebrosas horas tardias, a auto violência te assolar o pensamento, lembras deste aqui, teu bode de expiação. Impõe a mim o sofrimento físico, porque , mesmo sendo de outra natureza, nos fará cúmplices na dor. E de ti eu só quero a cumplicidade. Se em ti gerei dor, de ti mereço recebê-la. Puna-me, Marina, puna-me, minha amiga. Puna-me por piedade, puna-me por gentileza, puna-me por  favor.