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15/07/24

O Mais Difícil Exercício



Em certa noite, levado por um desses fluxos de memória involuntários, ele se lembrou do velho amigo Plácido. Dele há muito não tinha notícias. Por onde andaria? Era grato ao antigo amigo. Na escola militar, Plácido dera-lhe uma satisfação incrível: o melhor soco na cara que receberia de um amigo. Foi pura adrenalina. A cabeça tonteou, zonzo ele ficou. Poder-se-ia dizer que vira passarinhos: colibris, bem-te-vis, sanhaços. Sentiu-se como o Coyote ao receber na cabeça a bigorna endereçada ao Papa-Léguas.

Dera o primeiro soco, começando a briga; o segundo veio do Plácido, encerrando-a. Lembrava de vê-lo de costas, saindo, caminhando, magnânimo, certo do nocaute. Ia atrás ou deixava pra lá? Deixou pra lá, porque era o Plácido, era amigo. Briga entre amigo: esporte íntimo e elevado. Amizade só se prova verdadeira quando permanece após umas boas desavenças. Além disso, Plácido dera um cruzado de direita muito respeitável, demonstrara coragem ao bater num amigo.

Não brigar (ao menos uma vez) com um amigo era não ter um amigo. Violência moderada era expressão emocional tão rica, pura e verdadeira quanto um abraço. Devia ser vivida, explorada, manifestada. Por isso, adolescente, ele correra com a faca atrás do primo Tiago. O primo, seu melhor amigo de infância, era sempre o mais forte; então quis dominá-lo.

Também por isso - para dominar– golpeara Ricardo com um chute no íntimo; que o fez chorar, andar torto e recorrer à medicina doméstica que a mãe dominava. Por isso fora para cima do pai, fazendo-se livre da autoridade opressiva, provando que, por ama-lo, não temia lhe dar uns sopapos. Pobre do pai, o triste e alegre pai, a quem amava e continuaria amando... Por isso empurrou a mãe, defenestrou Renata, ameaçou Larissa, deu no Gilberto um soco que lhe arrancou um dente; e, pouco antes de uma crise de choro, trocou sopapos com o Maurício Antunes.

Era um tipo demasiado sensível, com uma expressão de afeto reativa e furiosa, definitivamente marcante; e por muitos era tido como bruto. Camila disse que a culpa era da "Lua em Escorpião" (e finalizou o comentário com um "Valha-me, Deus!"). Ele sabia que sua singularidade era difícil de entender, que tinha ímpeto agressivo e aos outros causava temor. Sendo assim ele procurava, no mais das vezes, evitar o amor, a companhia e o afeto. E na solidão cultivava a violência da palavra crítica, talvez sofisticada, mas não menos violenta.

Dos excessos se arrependia, mas não lhes negava a utilidade. Permitiram aos entes queridos conhece-lo em profundidade, assim aprenderam a amá-lo pelo que ele era - sem enganos e ilusões. Amando-o em essência puderam perdoa-lo, coisa que ele nunca pôde fazer por si mesmo. Ele, vendo-se capaz de tamanho barbarismo contra os queridos, soube-se imediatamente capaz de crueldades inomináveis contra os inimigos.


Fora seu Rito de Passagem.

Fez-se homem ao enxergar no coração a primitiva vocação do animal selvagem. Ferocidade de besta que se compraz na dominação; um partidário do confronto desleal, da humilhação alheia, da opressão sádica. Tropeçara na própria essência tirânica, o talento para pequeno bárbaro, a sensibilidade aguda rapidamente convertida em ressentimento e emotividade tóxica. O mal não vinha de fora, mas de dentro; ele era o mal, ele sabia-se o mal, e pior que isso: ele, as vezes, sentia-se forte ao ser violento. Era inimigo da paz e da prudência.

Teve fascínio e teve medo. Decidiu lutar contra o instinto. Estabeleceu regras. Primeiro, jamais repetir agressões aos entes queridos. Segundo, em qualquer situação, evitar a violência máxima. Terceiro, caso optasse pelo mal, direcionaria-o aos inimigos (neste caso com máxima violência).

Ele, que era um bruto, aprendera que violência pouca aliena, violência moderada educa e violência máxima embrutece. Por isso ouvia o próprio coração e expressava a pequena e média violência; deixava-as sair para vê-las melhor. Vendo-as; elevava a consciência e calculava sua inclinação destrutiva. Calculando, tratava de se prevenir...

Considerava tolos os homens que, tendo em si o mal, nada faziam para conhecer-lhe a extensão ou a profundidade. Como poderia um homem desconhecer seu mais íntimo inimigo? Não, não era correto. Não devia o homem fugir ao mais difícil exercício. Era imperativo medir cada centímetro do próprio coração como o agrimensor mede cada metro do próprio terreno. Era preciso investigar a própria alma, revirar o lixo ali enterrado. Urgente era encontrar primeiro o que é mal, porque está mais baixo e por isso está mais perto. Depois cultivar a melancolia da maldade, provendo-se da vontade de redenção que ela inspira, e daí então procurar, com afinco desesperado, o que há no homem de divino; a alma superior - mais alta, mais bela e mais distante.

Para ele havia neste mundo os homens que por Deus chegavam a Deus; mas havia também – e isto ninguém deveria negar – os estranhos homens que chegavam a Deus pelo Diabo. Deus certamente apreciava os primeiros, porém, como todo pai, era a redenção dos filhos perdidos – o drama maior da vida espiritual-, que mais envolvia e comovia o Criador. Como por água anseia a corsa; pela elevação do perdido anseia o Senhor.

Uma dúvida incomodava. Monstro amoroso que era: teria ele, algum dia, vergonha de seu drama? Por hora aderia ao caminho do meio: nem a vergonha nem o orgulho, antes a contemplação perplexa, a nota ponderada, o estudo minucioso do que carregava na alma. Mesmo o que era treva...

E assim, naquelas horas lunares, ele ia rememorando e refletindo; consciente de si e saudoso do velho amigo, que, com ajustada bravura, lhe respondera o pugilato em medida equilibrada, sem perder a amizade e o respeito. Ética distinta e masculina, por vezes incompreendida. Coisa, talvez, de quem tenha sangue indígena...