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26/08/24

Laguna Sunrise e outras como ela


Estava ouvindo Laguna Sunrise e de repente me pareceu muito errado não escrever a respeito. Eu, quando era jovem e queria explorar o básico do gênero Heavy Metal (que alguns consideravam "satânico"), fiquei surpreso ao descobrir a bela melodia:

               

Até então eu jamais imaginara que uma banda como o Black Sabbath, conhecida por sua atuação agourenta, fosse capaz de produzir uma baladinha instrumental tão agradável e harmônica. Tive a certeza que se colocasse minha mãe crente para ouvir, dizendo que era uma música instrumental gospel, ela acreditaria. E foi exatamente o que fiz.

Antes que você me julgue um inveterado mitomaníaco corruptor de inocentes mães crentes, explico que era uma gambiarra moral necessária. Lá em casa não entrava "música do mundo". Era uma restrição da minha mãe que meu pai aceitava (e eu detestava). Então ou eu ficava apenas com música "gospel" ou mentia para poder ouvir outras músicas. Apelei para a santa ignorância dos meus pais: passei a mentir o gênero das bandas e cantores.

O resultado foi épico: os meus pais não só ouviam, mas cantavam e se deliciavam com as boas canções que eu descobria nas minhas explorações na internet. Entre elas, Laguna Sunrise. 

Curioso  pensar nisto agora, mas a minha mãezinha morreu sem saber que, durante alguns anos, foi ouvinte e apreciadora da obra de uma banda que, no olhar dos crentes, alegra o Satanás. Caso eu tivesse revelado, ela faria uma careta de desaprovação; e, no entanto, por ser patologicamente indulgente com os filhos, me perdoaria.

Não sei de qual álbum é Laguna Sunrise e não sei se ela representa alguma variação temporária no estilo do Black Sabbath ou nos interesses musicais dos membros à época. Só sei que no mesmo período eu descobri Changes, também do Black Sabbath, canção esta que é, com certeza, um dos pequenos dramas musicais mais famosos da história do Rock.



Desde então as duas canções me acompanham. A primeira geralmente em momentos noturnos, de reflexão e leitura. A segunda quando fico nostálgico ou passo por grande mudança. Como durante esta minha vida eu morei em uns cinco estados deste país, e também em variados lugares dentro do mesmo estado, Changes era uma canção que não podia faltar. 

Certo dia na casa nova, pela noite, olhando os livros e demais objetos empacotados, pensava nos amigos e amores que perderia pela falta de contato; pensava na vida nova, na cidade nova, nas novas perspectivas, e ouvia Changes, solitário, as vezes entorpecido...

Ouvi tanto que enjoei. Hoje em dia só as escuto em momentos especiais, e geralmente covers.

Este aqui, de Laguna Sunrise, é muito bom. (Eu, particularmente, prefiro assim - só no violão).



E este, de Changes, que coisa impressionante:



Alerto que a conexão emocional profunda com uma música específica é - perdoem-me a vulgaridade do termo - uma merda. Basta a música tocar e você é logo coberto de memórias-não-solicitadas-porém-inevitáveis (se for homem frouxo, pode até chorar).

Eu, confesso a vocês, tenho problemas de sentimentalismo com as baladinhas românticas, tristes e dramáticas. Gosto delas para valer, mas já não as ouço com a inocência dos primeiros dias, nem o que sinto é apenas deslumbramento estético. Não chego a chorar, porque homem não chora. Mas admito que algumas fomentam no meu espírito uma melancolia ponderada, autoconsciente e emocionalmente carregada. 

É música que me lembra que eu, apesar de frio e insensível, também tenho coração.

02/09/22

Com Família, com Música, com Coragem



Mamãe e eu no hospital, alguns meses antes...


Hoje, sexta feira, 02 de Setembro de 2022, dez dias antes do meu aniversário, mamãe morreu. Foi hoje, sei bem. Aconteceu às 16:35. No quarto do hospital, durante a partida, mamãe estava acompanhada por quatro dos membros mais próximos da família- Eraldo (papai), Juliane (minha irmã), Thiago (meu cunhado) e eu. Os outros dois - Eliseu e Lorena (meu irmão e minha cunhada) - estavam a caminho. 

Chorávamos, nós quatro, e ao mesmo tempo a confortávamos expressando nosso amor. Papai a abraçava, Juju lhe segurava as mãos em um momento, eu em outro. Thiago lhe beijava a testa. "Estamos com você"; "Te amamos"; "Não tenha medo" era o que dizíamos. Embora tudo nela fosse fraqueza e decadência física, mamãe pareceu sentir algo. Mudou o semblante e também a posição. Antes deitada, inclinou-se a frente e tirou a máscara de oxigênio. Papai tentou repor, mas por três vezes ela o repeliu. Ele a questionou: "-mas, meu bem, não queres a máscara? É isso mesmo?" Ela fez que sim com a cabeça.

Sem máscara, abraçada pelo esposo, assistida pelos filhos e genro, mamãe, segurando as mãos de papai, revirou os olhos e depois aquietou-se. Assim, enquanto nós chorávamos, o seu elevado espírito deixou o seu debilitado corpo. Partiu sem dor, sem violência, sem medo. Naquele momento, tocava a versão instrumental, em sax, de "Alvo Mais Que a Neve". Choramos, nos abraçamos, choramos, oramos. O momento derradeiro finalmente chegara, e mamãe foi de peito aberto, preparada, sem medo. 

Estava consumado. Agora mamãe não mais sofreria, agora; ficaria em paz. O corpo padece e fenece, mas eu acredito que a alma é imortal. Eu sei que vive a alma de minha mãe, Julia Ramalho Barbosa, que foi professora, esposa, filha exemplar, anjo doméstico, cuidadora, fiel devota, ativista social, artesã, excelente cozinheira e amiga leal.

Sei que ela partiu preparada. Sei que foram feitas as suas vontades. Despediu-se dos parentes amados, inclusive dos pais. Passou alguns dias em casa, recebendo pessoas, despedindo-se. Contou aos filhos os seus desejos. No fim, ela, que não se achava forte, foi muito mais forte do que todos nós imaginávamos.

Registro que mamãe foi um anjo que, muitas vezes, de muitas formas, salvou-me a vida. Viveu para e pela família, e - não poderia ser diferente - durante o momento de maior sofrimento de sua vida, sua família esteve literalmente a seu lado, dia após dia, impressionando médicos e enfermeiras pela união ativa e altiva (nós enlouquecíamos os burocratas do hospital que tentavam limitar as visitas). 

Mamãe viveu uma vida repleta de honestidade, generosidade, responsabilidade, caridade, amor e fé. Odiava mentiras. Era inocente, de uma pureza infantil, muito meiga, tímida, não sabia receber elogios, e era sempre muito preocupada com os entes queridos. Mulher de outros tempos - eu nunca a vi dizer um palavrão.  Era daquele tipo raro de gente que a feiura do mundo não conseguiu macular. 

Quanto menos eu merecia, mais me amava. Quanto menos eu acreditava na vida, mais insistia que eu não deveria parar. Tudo o que tenho de qualidade moral, de amor às artes e ciências, tudo que tenho de fé, devo a ela e a meu pai. 

Apesar da tristeza, e do luto, não me permito tragificar o que é fenômeno natural. Mamãe viveu, e viveu bem, como mulher honrada. Partiu, e partiu bem, sentindo a mulher amada que era, com família, com música, com coragem. Sua vida foi bela, e seu derradeiro momento também. Sou imensamente grato pelo que com ela vivi, sou grato de ter seu sangue, seus traços, seu temperamento caseiro e letrado, sua cor, seu conservadorismo. Foi uma grande mulher, uma grande mãe, uma esposa fiel e cuidadora, uma inconformada com a pobreza e a injustiça social (cursava Direito quando descobriu a doença...). Não deixou inimigos e não há neste mundo quem a maldiga. Por tudo isso, deixará imensas saudades e jamais será esquecida pelos que a amam. 

Obrigado por tudo, mamãe.