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02/08/23

Como é a vida de um vagabundo

 

[Novos Baianos - A face da vagabundagem artística]


Embora seja verdade que ando procurando emprego, não posso, não devo e não tenho a mínima pretensão de negar que sou, em espírito e em ideologia, um vagabundo.

"Vagabundo Intelectual", "Ocioso Profissional", "Vagabundo de Elite" são alguns dos termos que poderia usar para me descrever. O que mais gosto, no entanto, é o sonoro e retumbante "Elite da Escória" (Será, se tudo der certo, título de algum livro ou conto futuro).

A vida de um vagabundo profissional, dentro dos seus limites, é boa - provavelmente melhor que a vida de muitos de vocês. Certamente não é para qualquer um, já que exige um nível de desapego e de distanciamento social considerável; junto da permanente instabilidade financeira, é claro.

Contarei já tudo o que é necessário saber sobre esse estilo de vida. Mas antes, como me é típico, trarei alguns esclarecimentos prévios. O amigo leitor, caso queira, pode pular para a segunda parte.


[Colin Wilson - o vagabundo literato]

  1. De como me tornei um vagabundo profissional

Ao contrário do que se pensa, não é fácil se tornar um vagabundo. Não estou considerando aqui aqueles casos em que não houve escolha, onde o processo foi consequência de fracassos pessoais e de uma certa maré de azar. Não foi o meu caso, nem o dos meus amigos. O nosso processo foi ideológico/ filosófico: está totalmente atrelado a um sistema de crenças e valores que desafia os modelos e as imposições sociais da civilização atual.

Sofri influências diversas. Literárias, cinematográficas, filosóficas. A ideia de uma vida simples e contemplativa, do Thoreau; a sugestão de uma vida boêmia e calorosa, do Jack Keruac. Um modelo mais próximo e contemporâneo, Eduardo Marinho, outro; o Alexander Supertramp. A história do Leonardo Maceira; viajar sem dinheiro pelo Brasil tirando fotos de belas mulheres nuas em meio à natureza. Contagiante. Qual artista aventureiro não gostaria de uma experiência dessas? E a base filosófica mais profunda veio do Bertrand Russel em seu Elogio ao Ócio. Também os relatos de Orwell sobre seu tempo de vagabundo - Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios - e o ensaio de Tocqueville sobre a pobreza me cativaram. Tolstoi, com seu cristianismo anarquista naturalista, uma influência mais distante. Thomas Merton, com sua apologia da solidão, também.

Enfim, modelos não me faltaram. Fossem aristocratas, burgueses, intelectuais, drogados, monges ou pobretões.

Entendam: sou um sujeito livresco, artístico, cultural e contracultural, com certa admiração pelo que foge à regra. O que as pessoas normais acham absurdo, fora do comum, coisa de maluco, acho interessante, faz parte do meu imaginário. Então viajar de carona, levar uma vida boêmia ou ser um tanto vagabundo sempre foram ideias bastante aceitáveis para mim, pois me lembravam as experiências de pessoas que eu admirava.

No entanto, perceber que o modelo de vida vagabundo era, para mim, psicologicamente mais saudável do que uma vida integrada ao sistema foi algo que só aprendi com o tempo. Já fui um agente do sistema. Já estive em suas entranhas, vi seu funcionamento torpe e corruptor por dentro. Estive nas forças armadas, convivi com autoridades, tinha uma carreira estável. Estive numa das melhores universidades públicas do país, tive acesso à nossa elite, seja a intelectual seja a econômica. Em todos esses lugares, sempre me impressionou a mesquinharia, o imaginário débil, a preguiça intelectual, a burrice, o medo da superioridade alheia, a hipocrisia, o corporativismo tacanho, a sujeição bovina aos símbolos de status e autoridade, a burocracia kafkaniana, as leis sem sentido, o fuzuê geral que se instaura em cada instituição, em cada debate, em cada círculo do funcionalismo.

Com o tempo, foi ficando claro que eu tinha uma forma de pensar, um tipo psicológico, um certo sentimento filosófico - outsider - que não era comum. Fui percebendo que nessa sociedade, nessa cultura, as pessoas como eu acabavam enlouquecendo. Alguns dos meus amigos, iguais à mim, foram parar no hospício. Outros, no caixão. Eu iria pelo mesmo caminho, não tenho dúvidas. Já tinha até carta de suicídio pronta.

Por outro lado, minha vocação em escrever e ter uma vida contemplativa, em ser um observador da loucura do mundo, em pôr o dedo nas feridas, se fazia cada vez mais pujante. Até que uma série de tragédias - incluindo o suicídio de alguns bons amigos - me fez perceber que minha sanidade estava também indo para o ralo, e logo eu teria que - como a maioria de vocês- viver à base de psicoterapia, remédios de tarja preta, sessões de auto-hipnose na igreja evangélica e conselhos do Dráuzio Varíola e do Flavio Gikovate. Então, apreensivo, optei por um período de isolamento com a tríade: eremistismo urbano + misticismo cristão + vagabundagem filosófica.

Pôr a mente no lugar, deixar a vocação fluir. Encontrar Deus no Silêncio, nas Trevas e na música de Wagner. Foda-se o resto.

Inteligência, orientação e sanidade sempre foram importantes para mim. Se o único jeito de mantê-las era me afastando da sociedade e frustrando as expectativas dos meus pais, tudo bem; era um preço que eu podia pagar. Aceito bem a infâmia.


[Renton e sua trupe de vagabundos junkies - Trainspotting]

2. Aspectos da vida de um vagabundo.

Tempo

O vagabundo tem tempo, não tem pressa para quase nada. A únicas grandes preocupações são com o mínimo de comida, de saúde e de moradia (E, no meu caso, com o caminhar da vida intelectual e espiritual).

Se o vagabundo acorda e diz: "Declaro hoje feriado pessoal. Está proibido trabalhar." É a Lei e não se fala mais nisso.

Podemos passar horas sentados, descompromissadamente, observando o ambiente ao redor, refletindo, comparando nossa vida livre com as das outras pessoas, cheias de compromissos, presas a todo tipo de senhores, padrões, comportamentos, relações e ideias.

A noção do tempo dos vagabundos, obviamente, não é das melhores. O vagabundo pode demorar muito para fazer as coisas. Hoje é quinta? Sexta? Sábado? O vagabundo não sabe. E nem se importa.

Stress

Em decorrência dessa liberdade de ação, o vagabundo não tem stress, ou o tem em pouquíssima quantidade. Pode ficar ansioso quando se aproxima o dia de pagar o aluguel, ou temerário depois do segundo dia sem comer, mas a vida lhe ensinou que há, quase sempre, alguma resolução, que a Providência não abandona os justos, nem aqueles que tentam sê-lo. O vagabundo tem fé, tem fé em Deus, tem fé no Destino, tem fé em milagres, tem fé na bondade humana.

Ele é, a um só tempo, um homem só, abandonado, e um exército de resiliência.

Renda

O vagabundo sabe, mais do que todos, que dinheiro, por mais importante que seja, está longe de ser a coisa mais importante. Ele consegue as coisas, muitas vezes, na base da lábia, da amizade e da boa fé. Ele não teme se expor. Sabe de sua condição e não pretende negá-la. Mesmo não sendo apegado ao dinheiro, sabe que deve honrar seus compromissos financeiros quando são com pessoas. Como o vagabundo entende que pessoas jurídicas não são pessoas, ele se permite furtar algumas coisas do supermercado e dar alguns calotes institucionais aqui e ali.

Mas sempre há algo que o vagabundo sabe fazer. Eu, por exemplo, escrevo - mal, mas escrevo. Também desenho - mal, mas desenho. Eu sei hipnose - pouco, mas já impressiona. Também sei falar, dar aulas, entreter. Quando o vagabundo não é bom em obter dinheiro com seus talentos (meu caso), ele sabe ao menos onde ir e obter recursos de graça ou a preços irrisórios. Vai recorrer, evidentemente a caridade dos bem afortunados, sejam parentes, sejam amigos, sejam desconhecidos. Ou aos órgãos públicos destinados ao serviço social. Aqui em Brasília há, por exemplo, o "Rorizão", Restaurante Comunitário cujas refeições (café da manhã e almoço) custam apenas dois reais cada.

Os caridosos, por sua vez, amam o vagabundo, especialmente quando é esclarecido. A maioria das roupas que tenho, ganhei. Perfumes, ganhei. Relógios, ganhei. Livros, também.

Saúde

O vagabundo conhece os melhores métodos de sobreviver às intempéries e privações. Ele sabe o que comer para manter a imunidade elevada, sabe como se exercitar, conhece as receitas mágicas, passadas de geração em geração, para curar as moléstias. Conhece as plantas, sabe onde obtê-las. E se ele não sabe de nada disso, conhece quem sabe.

Vida interior

Não dispondo de muitos recursos externos, o vagabundo se volta para si mesmo. É um homem cuja vida interior é invejável, de imaginação aflorada, com uma memória vívida do passado. A prática da reflexão, pelo tempo, fez dele um filósofo, naquele sentido kantiano do termo, segundo a qual a maior característica do filósofo está na reflexão aprofundada e não necessariamente no conteúdo da reflexão.

O vagabundo pode conversar sobre qualquer assunto que envolva aspectos humanos. Ele desenvolveu uma capacidade incrível de separar o que é realmente importante na vida e o que não é.

Amizades

Está aí o que talvez seja a maior fonte de prazer para o vagabundo. Ele pode ficar sem comer, sem pagar o aluguel, sem atualizar seu vestuário, mas não pode ficar sem beber com seus amigos. Muitas vezes, os amigos acabam o induzindo a se entorpecer além do álcool, o que ele faz, embora vá se arrepender depois.

Há momentos em que a rabugem lhe toma conta e então ele se torna agressivo e desdenhoso. Mas logo se arrependerá e recorrerá, novamente, aos amigos. De onde sempre extraí ânimo de viver e alguma força. Por isso o vagabundo é extremamente fiel aos amigos, como um cachorro. Está disposto não só a fazer o bem, mas mesmo a fazer o mal para defender os seus.

Tragédia Existencial

O vagabundo tem muito claro para si a dimensão trágica da vida. Ele não nega suas dores, seus sofrimentos, nem os alheios. Mas nada disso o faz fraco, pelo contrário. Encara a morte de um amigo, por mais que o ame, como encara a morte de uma borboleta ou a imprevisibilidade geográfica dos raios: são fatos da vida, inevitáveis, inescapáveis.

O vagabundo é, sobretudo, um estoico. Jamais se incomoda ou se revolta com aquilo que não pode mudar. Longe de se rebelar contra a Natureza, ele a respeita profundamente.


E há, certamente, muito o que poderia ser dito. Mas creio que pude lhes dar ao menos uma breve dimensão desse estilo de vida. Não recomendo. É só para os doidos.

"As únicas pessoas que me interessam são as loucas, aquelas que são loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas; as que desejam tudo ao mesmo tempo. As que nunca bocejam ou dizem algo desinteressante, mas que queimam e brilham, brilham, brilham como luminosos fogos de artifícios cruzando o céu."

Jack Kerouac


03/08/22

Um Óculos Para Mersault


Um simples óculos evitaria o homicídio mais idiota da Literatura.

Agonia ao reler O Estrangeiro. Que bem faria a Mersault um óculos de sol! (já existia em 1942...)E que mania horrível aquela de "tanto faz", uma indiferença cuja origem só pode ser a apatia ou um germinal niilismo. Sugere o segundo quando, várias vezes, inclusive diante da proposta de casamento, reage com "isto não significa nada", negando o valor das convenções.

Tipinho hedonista e sem ambições, Mersault é motivado sempre por ideias de jerico e pelo seu caráter morno, sem sangue e sem sal. Tipinho que dá nos nervos. Homem sem drama, sem dor, sem paixão. Tem o espectro emocional resumido em duas sentenças: "isto me aborrece" e "isto me agrada". Se lhe cortassem os bagos, era capaz de reagir com:"Tanto se me faz" ou "Aborrecia-me viver sem os bagos".

Mesmo o crime que comete não lhe é fruto da vontade, mas antes de equívoco. Evento descrito numa cena que, aliás, é mal escrita e deficiente em credibilidade: como é que se explica que Mersault, desnorteado e cego pelo calor excessivo, a nove metros de seu inimigo, acerte-lhe nada menos do que cinco tiros?! Falta coerência nesse arranjo: a cena não convence. Ora, àquela distância, nem a navalha do árabe oferecia ameaça e nem Mersault lhe poderia acertar os cinco tiros, visto a sua condição ser a de um fotossensível cego pela luz solar. O mais cabível na cena era que este atirasse aos céus e que o outro, assustado, fugisse.

Ante personalidade tão mequetrefe, entende-se bem o incômodo da sociedade julgadora: que mais se admira da falta de emoção do homem do que propriamente de seu crime.

É dito que essa obra de Albert Camus - considerada indevidamente um clássico - trata da filosofia do autor, que explora o conceito de Absurdo. É explicação leviana e equivocada, uma coisa nada tem a ver com a outra. O Mito de Sísifo é interessante e bem escrito. Em O Estrangeiro, exceto pela cena mal escrita de homicídio, nada há de absurdo no que acontece à Mersault.

Absurdo, absurdo mesmo, é que uma obra tal, tão tímida na forma e tão baixa no conteúdo, seja tão recomendada e tão lida por aí.

A minha vontade de leitor era a de aprender magia negra, ressuscitar Camus, pegar os meus volumes de Celine e Victor Hugo e dar-lhe incessantes bordoadas aos berros de: "Está vendo? É assim que se conta uma história, desgraçado!";"Tome! Sinta! Sinta, desgraçado! Sinta na pele a Literatura de gente!"

Concluo com o meu preconceito: quem nasce argelino, jamais chega a ser francês. Nasce pobre e faz pobre a literatura. Uma literatura assim, sem o L maiúsculo.