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23/03/22

Um Breve Resumo de Como Chegamos até Aqui


Cabe notar que não chegaríamos tão longe sozinhos. Antes de tudo, devemos compreender que fomos vitimados por influências terríveis.

Dessas influências terríveis, foram agentes: o liberal,  que atua contra a liberdade do vizinho em ser socialista; o socialista,  que sonha em mudar o mundo mas atenta contra a ordem moral que inspirou o socialismo; o conservador, que rejeita a latinidade, da qual é herdeiro histórico, despreza a alta cultura do país onde vive, deixa seus museus queimarem e fetichiza o modo de vida americano; o cristão, que não lê a Bíblia e ainda não descobriu que o cristianismo ensina uma vida simples de abnegação, caridade e retiro; o  educador, que abomina hierarquia, correção e superioridade intelectual; o jornalista, que nem tenta ser imparcial porque na verdade é um militante travestido; o policial miliciano, que é mais criminoso que bandido, e de quem o pobre frequentemente é vítima colateral; o político, que roubou ontem, roubou hoje, roubará amanhã e roubará sempre, e que continuará a se eleger pregando contra a corrupção; o empresário, que detesta concorrência e prefere os favores escusos de políticos que receberam seu dinheiro em campanhas eleitorais; o amante, apaixonado e volúvel, que trai e mata sua mulher; a amante, pródiga e volúvel, que é fatalmente seduzida pelo amante apaixonado que a matará; o funcionário público, que não sabe informar corretamente e prefere conversar com os colegas a nos atender; o artista, limitado, que nada vê na arte senão uma arma de guerra cultural e subversão; o pastor, o guru ou o líder espirital, que é na verdade grande empresário e marqueteiro; o escritor desiludido, que se  ressente com as panelinhas e hipocrisias da classe intelectual na qual outrora almejava ingressar; o raro homem honesto que, diante de toda essa estranha fauna, entende rapidamente que sua conduta está fora de moda e, fatalmente, se deprime.

Eis a surrealista marcha da vida social no país onde todos os pecados são pressentidos na véspera e esquecidos logo após a consumação. O país cuja vida nacional nas últimas décadas parece um pastiche de Chaves ou de Chapolim: história viciada e repetitiva onde conhecemos todos os personagens, todas as falas, todas as tiradas, mas, por algum motivo inexplicavel, continuamos assistindo e amando. Mais que meramente assistir, fazemos espetáculo: sorrimos, sambamos, bebemos e brindamos, e então, tarde da noite, entorpecidos, no auge de nosso hedonismo tropical imediatista, desregrados na vida e no gozo, nos vemos ante uma orgia sardônica e absurda: com anões, putas, travestis, padres pedófilos e crianças amputadas. O que aconteceu? Quem são essas pessoas? Onde estamos? Como chegamos a isto?  Queremos correr, escapar da cena, estamos arrependidos, envergonhados, queremos mudar, ficar sóbrios, sentimos culpa, confessamos, tentamos sair, mas não conseguimos: mãos e braços nos puxam, bocas deformadas por tratamentos com botox nos beijam, silicones exagerados de prostitutas televisivas nos atacam, corrompendo nossa face amedrontada. De um lado, a escandalosa gargalhada da Inês Brasil, do outro, o sorriso diabólico do Kid Bengala. E finalmente, depois de abusos que o pudor me impede de narrar, sentimos o mal imponderável: ELE: o elemento grosso, rijo, cilíndrico, pulsante, a violar sem qualquer piedade o nosso orifício sensível. Vindo sabe-se lá de quem e aviltando o que nos restava em dignidade.

E foi assim que, mais uma vez, no curso da vida nacional, por termos nos deixado levar, fomos magoados, naquele lugar.  Que ainda dói.

Agora só nos resta mancar. E agradecer, ou reclamar, a todos cuja influência foi decisiva. 

...

O texto acima foi originalmente publicado no Facebook. Abaixo, as reações:



10/03/22

Do Biquini à Piriquita: a ascensão do Kitsch nas metamorfoses da canção “Tédio”

 


Era 1985 quando a banda de rock Biquini Cavadão lançou a canção “Tédio”. Em cima de uma levada pop rock, a letra reproduzia o conteúdo de uma suposta ligação na qual uma das partes confessava sofrer do desagradável sentimento. 


Não era brilhante, mas era divertida e fazia sentido, já que tédio é algo que todo mundo sente ocasionalmente. A canção fez mais sucesso do que a banda esperava, tocou exaustivamente nas rádios e há relatos de que foi muito reproduzida em departamentos públicos.

Para os críticos musicais da época, o rock brasileiro oitentista, cheio de influências Punk e New Wave, era musicalmente inferior ao que fora produzido nos anos 70 e 60, como Jovem Guarda e Mutantes. De tal modo que as músicas do Biquini Cavadão eram consideradas como expressão de uma vertente cultural simplória e menos interessante em termos artísticos. Era música medíocre. Mesmo assim, ou talvez por isso, a melodia de “Tédio” grudou na cabeça do público.

Vinte e quatro anos depois, uma irrelevante banda de brega pop paraense chamada Banda Katrina, numa explosão de humor de duplo sentido, ressuscitou a melodia de “Tédio”, dessa vez expressando-a junto a uma letra criativa ao estilo Raimundos, na qual destacava-se o título: “Quem Vai Querer A Minha Piriquita”. Contava a história de moça fogosa, ou brincalhona, interessada em dar a piriquita. Música extremamente ruim, porém engraçada, foi sucesso instantâneo. A velha melodia voltou a grudar na cabeça do povo. 



Dois anos depois do estrago da Banda Katrina, o funkeiro Mr. Catra, que no início da carreira tocava numa banda de rock, entrou na onda e resolveu dispor da melodia de “Tédio”. Uma versão funk, por que não? Pôs na música batidas mais acentuadas, maior destaque na melodia e, claro, uma letra para lá de sacana. Chamou a canção de “Adultério”.



O perfil artístico de Catra é o de um oportunista que submeteu o pouco talento que tinha ao escracho, ao cinismo e ao deboche. Suas músicas mais relevantes são brincadeiras sacanas ou paródias. Produziu Kitsch e surfou no Trash Culture do funk proibidão. Nessa área a performance e a ousadia — ousadia aqui nada mais é do que a coragem de exibir sua mediocridade musical em público — são muito mais importantes que o talento. Catra era desinibido, excêntrico, bem humorado e carismático. Foi o suficiente para que os brasileiros ouvissem suas músicas e lhe devotassem atenção. A música “Adultério” foi um imenso sucesso. Tanto que até hoje muitos jovems quando escutam “Tédio” acreditam que é uma cópia da canção de Catra. É a criatura devorando o criador. A melodia, mais uma vez, grudou na cabeça do povo.

Finalmente, como o Brasil não é para amadores, neste ano de 2022 as coisas chegaram a um nível ainda mais estranho. Uma espertinha chamada Juliana Bonde, vocalista do Bonde do Forró, resolveu repaginar a versão da Banda Katrina, alterando um pouco a letra, mantendo o terrível teclado eletrônico e elevando a sonoridade forró. Eis a versão mais lixo de todas, o que no Brasil significa a fórmula mágica do sucesso. Mas como Juliana Bonde além de bela é astuta, deu o golpe fatal: tratou de ridicularizar na letra uns nomes famosos da cultura nacional. Atirou para todos os lados: religiosos, políticos e músicos. Disse que daria sua piriquita para o padre Fábio de Melo, mas não para Luan SantanaLula e Bolsonaro.

Antes dela, o último a dar o golpe das citações foi Serginho Malandro; em sua espirituosa paródia de Drake.



Desnecessário dizer, mas a versão de Juliana ( que o dileto leitor pode conferir no video abaixo) está fazendo tremendo sucesso. A melodia está grudando na cabeça do público.



O que não é bom sinal, e provavelmente indica que em breve vem coisa pior por aí.  E assim, uma vez mais, constatamos o Kitsch como expressão máxima da preferência nacional, neste caso — que está longe de ser um evento isolado, e por isso serve para ilustrar a tendência mais geral que assola a música comercial brasileira — temos uma canção boboca que é a cópia da cópia, sempre prometendo uma futura versão ainda pior; numa sucessão sempre previsível, numa dinâmica perpetuamente monótona.

É ou não é de entediar qualquer um?

07/03/22

Adeus, Mérlin...


Mérlin contemplativo, depois de algumas leituras.

Apesar de gostar de animais, eu não queria um gato. Assim, ao morar com meu querido irmão, Eliseu Ramalho, eu não tinha pretensão nem interesse de criar um bichano. Criar também significa cuidar, e eu, egoísta, não simpatizo com a ideia de dedicar-me à vida de outrem, seja gente seja bicho. Mas aconteceu. Quem banca é quem manda, e meu irmão, que me bancava, decidiu que criaríamos um gato. Decisão tomada, não havia o que discutir: criaríamos um gato.

Ganhamos uma gata preta, filhote de duas ou três semanas. Nada sabíamos sobre gatos. Primeira descoberta: eles fazem um estranho barulho com a garganta quando se sentem seguros e confortáveis com os donos, chama-se ronronar. Segunda descoberta: eles adoram camas. Terceira: eles mordiscam e arranham tudo enquanto crescem. Quarta: eles odeiam água. Quinta: de início eles acham que podem voar, mas, depois de cair do terceiro ou quarto andar, descobrem que não podem. Sexta: eles são tão famintos por peixes que podem pular em poços, atraídos pelo movimento e cheiro dos bichos. Sétima: para leigos, gatos e gatas são praticamente indistinguíveis nas primeiras semanas, o que, em nosso caso, fez ascender a polêmica. Nossa gata - Morgana - seria, afinal, gata ou gato? O tempo nos ensinou que era, na verdade, um gato. E assim Morgana virou Mérlin, o primeiro gato transgênero da história felina mundial.

Depois, veio a mudança. O mano foi morar mais perto do trampo e eu mais perto dos pais. Como fiquei numa casa com quintal, e tinha mais tempo livre, o gato veio comigo. Eu não queria, mas era tarde demais. O bichano já me havia cativado. Agora seríamos só eu e ele.

Não foi fácil. Gatos gostam de rotina e estabilidade, e eu sou mais desorganizado que o próprio caos. O coitado sofria comigo. As vezes eu passava dias fora e ele tinha de se virar. Quando eu voltava, lá estava ele, todo lanhado das brigas com os gatos da vizinhança. E lá ia eu, fulo da vida, cuidar. Ligava para o mano, explicava, pedia compaixão, dinheiro, ajuda, ânimo, apelava ao seu instinto compassivo e afetuoso, ao seu carinho pela natureza e pelos bichos. E ele, irritado, me intimava a cuidar do bicho como se minha vida dependesse disso.

Logo vi no gato um argumento para extorquir meu querido e exemplar irmão, o que fez minha afeição pelo bichinho crescer. De lá pra cá, mais de um ano, Eliseu Ramalho foi extremamente gentil e custeou 99% das despesas com a pequena pantera, ao que sou grato. Mês sim, mês não, o mano vinha visitar o gato, ver como estava, criticar-me pelos maus tratos.

Maltratei, é verdade. Dava-lhe, ocasionalmente, umas bicudas, uns gritos de psicopata, chamava-o de merdinha, idiota, carente, imbecil, burro, lerdo, mimado; jogava-o a uns dois ou três metros de altura, deixava-o sem comer por pura maldade, e fazia seu banho durar mais tempo apenas para deleitar-me com os gritos de horror do felino em protesto. Mas apesar de meus traços tendentes ao sadismo, confesso de todo o coração que eu amava aquele bicho. Vezes houve em que ele dormiu junto a mim, em que o carinhei efusivamente e abundei em afagos. Se em alguns momentos o furor me arrebatou, creio que os muitos outros de animação e carinho compensaram. Prova disso é que o gato jamais se mostrou agressivo diante de mim. Quando raivoso, chegou a mostrar os dentes ao meu irmão, a mim, nunca (talvez porque soubesse que se fizesse eu o espancaria na hora).

Com o tempo e os estudos, eu lhe devotava cada vez menor atenção. Por isso Mérlin, que foi criado em apartamento e sem contato com outros gatos, já vinha sofrendo tédio demasiado, o que lhe gerou uma psicodermatite: lambia-se excessivamente, retirando os próprios pêlos, sinal de stress elevado. Concluímos que era melhor doá-lo. Papai, que conhece todo mundo na cidade, encontrou interessado. Ontem, levou Mérlin para sua nova casa. Hoje, já sinto falta de seus miados e grunhidos.

Obrigado, Mérlin; você foi um bom amigo. Agora, ficarei por aqui, sozinho... e sentirei saudades.

Vai o gato, fica a homenagem registrada em vídeo:


05/01/22

Como Não Fazer Amigos, Não Pegar Gatinhas e Não Influenciar Pessoas


Como alguns adolescentes, aos treze anos eu era inseguro e assombrado pela interação social.  Mas com o terrível incoveniente de ser nerd: adorava quadrinhos de super-herois musculosos, revistas, programas de animes com japinhas gostosas, desenhos, filmes da Sessão da Tarde, do Cinema em Casa, Cine Band Privê e, muitas, muitas punhetas pela madrugada afora.

Tudo isso coisas que não me aproximavam nem das gatinhas nem da estima alheia.

 A stranger in a strange land.

A moda na época era fazer cursinhos, e o Inglês era a bola da vez. Sorteado, caí de paraquedas no cursinho gratuito do município. Eu detestava o idioma gringo, principalmente por conta de dificuldades na pronúncia. ‘Strawberry’ — Oh, céus! — como querem que eu fale esse treco? A possibilidade de ser zoado por mais uma inadequação me era quase tão assustadora quanto o apocalipse cristão. Pouco importava. Quem mandava em casa era o coroa. Lembram da ‘vondade geral’ de Rosseau? Era a vontade do meu pai.

No primeiro dia de aula, várias mulheres na turma. A maioria mais velhas que eu, o que achava menos pior. Na cadeira ao lado, Fernando, o garanhão da minha rua (‘Fernandinho’ para as meninas que, como a minha irmã, caiam babando por ele). Era meu completo antípoda: falso cristão, falso ‘cara legal’, sucesso com as mulheres, muito prestígio social (sei disso por que depois viramos amigos). E eu lá, ‘o carinha esquisito’, torcendo pra aula acabar antes que fizesse alguma vergonha.Mas quem disse que a vida é fácil? Não dei sorte; a teacher pediu que nos apresentássemos, começando por “hi, my name is… “ e depois seguindo no idioma de Camões.

Falar em publico, e falar inglês, na frente de uma dúziza ou mais de desconhecidos, recebendo todos aqueles olhares curiosos e julgadores. Enquanto os outros falavam, eu transpirava, nervoso. “Por que senhor ? Por quê ? Não tenho sido um bom cristão ? Tudo bem, eu prometo que paro de ver putaria, prometo!” Era uma prova, pensei. Eu tinha que passar. Se quisesse ser pregador, teria que aprender a falar em público um dia. O dia chegara. Enfim, aceitei meu destino, encarando o desafio com resignação e coragem. Chegada minha vez, fui confiante. Como todos antes de mim, levantei e falei.

Mal abri a boca e, em uníssono, todos gargalharam.

Demorei alguns minutos para perceber: o nervosismo foi tanto que eu falara ‘Hau’ ao invés de ‘Hi’. Com isso, entregara-lhes precisamente o que tencionava esconder; o fato de que eu era, naquela época e circunstâncias, um completo bicho do mato, comunicando-me tal qual um selvagem.



***


Nota do editor: a crônica acima  foi originalmente escrita no ano de 2015.

29/12/21

Educação e Crescimento do Pênis


Concordo cem por cento com a frase do Daniel Fraga de que “pobre deveria pedir licença para existir”. Contudo, devo esclarecer: penso em outro tipo de pobre.

O Sr.Fraga, um anarco-capitalista, provavelmente se refere ao pobre da classificação econômica. Já eu, estudioso de Psicologia, penso numa pobreza mais séria, mais profunda e mais difícil de ser resolvida: a pobreza mental, da psique, do espírito.

Daniel Fraga
O lendário Daniel Fraga
Como apesar de novo sou um tanto vivido, já conheci fortes candidatos a mais baixos exemplares de nossa espécie (excluindo a hipótese — bastante provável — de que fossem neanderthais infiltrados).

Durante dois anos, senti-me como Immanuel Kant se sentiria se fosse obrigado a viver entre galinhas, que são, como diz meu irmão, os bichos mais burros que existem. A burrice, no meio onde fiquei, era tanta, mais tanta, que cheguei a me sentir primeiro um sujeito esperto; depois, inteligente; e, por fim, um gênio de capacidade incontestável.

conhecimento
O pobre de mente

Nesse lugar, superabundavam os pobres de mente. Pessoas que são incapazes de compreender a função de um livro, ou o prazer do aprendizado, ou de qualquer coisa que exija algum grau de abstração pós-primário.

Nesse antro, um sujeito me questionou certa vez o porquê eu lia tanto. Pensei que era impossível explicar sobre educação àquela criatura. Então, respondi apenas que gostava e que aprendia como o mundo funcionava. Dizendo também que, caso ele se interessasse por algum assunto, ler a respeito poderia informá-lo e esclarecê-lo.
 

Ele, brilhante, filosoficamente me respondeu:

“Ah, fala sério, ler não vai fazer minha pica crescer!”

Depois disso, eu compreendi que existem pessoas que realmente não tem interesse algum de enriquecer a própria mente. Foi só então que percebi que há membros da massa, meus caros, que adoram ser massa.
 
O mais curioso, no entanto, é que ele estava errado.




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Nota do editor: a crônica acima  foi originalmente escrita no ano de 2015.