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28/08/24

O sistema dos três níveis de produção literária para escritores iniciantes


Aqui eu lhes apresento o meu sistema dos três níveis de produção literária, até então inédito. Se bem que compartilhado em conversa com uns dois amigos, que, espero eu, não o tenham divulgado.

O que ele é e pra que ele serve? Trata-se de uma estrutura que formaliza, em etapas lógicas progressivas, a organização, treino e exposição da produção literária de escritores iniciantes. 

O sistema é meu por que eu o inventei. Não o tirei do zero, pois, como se poderá ver, ele é extremamente lógico, e, há vinte anos atrás, era praticado intuitivamente por escritores iniciantes. Meu pioneirismo está em formalizá-lo e apresentá-lo aos novatos. O que há de interessante nele é que, além de valorizar os diários secretos, apregoa o uso do blogspot como um dos melhores ambientes, senão o melhor, para  o desenvolvimento literário de escritores iniciantes.  

Como não sou possessivo, até deixo você usa-lo, desde que me dê o devido crédito e não o divulgue a terceiros. Fica reservado exclusivamente aos meus amigos, afilhados intelectuais e demais leitores deste blog.

Pois bem. Os três níveis de produção literária contidos no meu sistema são: 

1) O nível secreto, 

2) O nível discreto (ou doméstico)

 e 3) O nível público.

O nível um consiste em escrever num diário pessoal secreto (virtual ou físico). O nível dois consiste em fazer um blog reservado e treinar nele vários estilos. E por fim, no terceiro nível, o objetivo é escrever numa mídia totalmente aberta. As etapas não são excludentes: trata-se duma progressão cumulativa.

O diário secreto confere total privacidade. Isso significa a possibilidade de dizer qualquer coisa, inclusive coisas que não podem ser ditas em público - como os crimes de pensamento e os crimes em pensamento. No diário secreto você pode planejar meticulosamente, passo por passo, o assassinato de todos os seus companheiros de classe idiotas, dos seus inimigos, daquele professor iletrado que não reconhece sua genialidade e, claro, do seu insuportável vizinho funkeiro. 

Mas só escreva isso se for da sua vontade e do seu gosto, ao menos no momento da raiva. Vale, no diário, a máxima sinceridade. Se depois de cinco ou dez anos você não se envergonhar do que escreveu nele, então não escreveu do jeito certo.

Se não houve nele a manifestação letrada e explícita do crápula interior que habita em você, então não serviu para nada: pois (se não sabia então fique sabendo): um diário secreto é, sempre, um veículo para o autoconhecimento. Nele toda autocensura é proibida. É como falar ou discursar o que quiser quando ninguém está olhando. Simplesmente não tem como não ser uma prática atrativa e interessante para um escritor. E outra vantagem é que, em termos gramaticais, você pode errar à vontade, ao menos no início.

Ao se habituar a escrever no  diário secreto, o novato desenvolverá, com a sua prática, os primeiros rudimentos de um estilo. Esses rudimentos devem ser desenvolvidos, expandidos, trabalhados, de modo a criar um estilo pessoal e único, que é o objetivo primário da expressão literária. Tal treinamento, por sua vez, deve ocorrer num blog restrito, acessado apenas por amigos entendidos, para que esses leiam, critiquem e dêem dicas de melhoria. 

A vantagem do blogspot é que, além de ser fácil e prático para uso,  tem um sistema de organização muito intuitivo, e é uma mídia naturalmente restrita, que não se destaca tanto nos buscadores. Os textos do blog devem ser reeditados e constantemente melhorados. Ele é o laboratório de produção textual por excelência. E serve também para que o escritor possa mapear, com as tags, seus temas de interesse.

Quando o novato sentir, ou seus amigos lhe mostrarem, que já consolidou um estilo e melhorou sua gramaticidade, é hora de pensar em expor alguns de seus textos - os melhores e mostráveis - para um público mais amplo, numa mídia mais aberta. 

Essa é a etapa mais problemática, porque nela o escritor tem de reagir aos humores do público amplo. Sempre há o risco de ficar refém do público, escrever apenas num estilo ao qual ele esteja acostumado, ou apenas sobre temas que já são comuns, pois assim o retorno positivo é garantido. 

Os dois primeiros níveis de produção servem, entre outras coisas, para fomentar no escritor as seguintes habilidades: independência, identidade, autonomia e paciência.  Jovens escritores que começam escrevendo em redes sociais, expondo-se ao público geral, são acometidos de vários defeitos, mas os dois maiores são, sem sombra de dúvidas, a ansiedade e o desejo de ser apreciado pelos leitores, isto é: a fome de reações rápidas.

É preciso ter em mente que um bom texto pode demorar. É normal que demore, que seja resultado de um esforço que inclui várias revisões e reescritas. Se o jovem escritor não adquirir essa habilidade, de trabalhar o texto no ambiente solitário, com calma, ele será privado de um recurso fundamental.  Ele deve compreender que um dos grandes segredos dos bons textos está na edição. Portanto, é imperativo ser paciente: reler e editar, reler e reeditar - sempre.

25/05/24

Amigos como o Hugo Motta


Foto deste cronista com o mestre Hugo Motta. Tirada, talvez, em 2018


Certa vez o Hugo Motta, depois de perguntar como eu estava, disse que pretendia avaliar-se através da comparação aos cinco amigos mais próximos - uma brincadeira, claro. Fiquei envaidecido pela estima do Hugo, que é, eu preciso dizer, um grande sujeito. E já explico que não o meço grande apenas pela inteligência, que é enorme, nem pelo fato de ser meu amigo. Digo tal coisa apenas porque, conhecendo-o, não poderia dizer outra.

Somos amigos há mais de uma década e, coisa curiosa, encontrei-me pessoalmente com o Hugo, no máximo, umas quatro vezes na vida. Foi durante uma conversa literária com o Lucas Lopes que o conheci. Viajando de ônibus, eu contava ao Lucas minhas impressões de leitura de A Metamorfose, de Kafka, e expressava, com ares professorais, uma intepretação sociológica mequetrefe lida na internet. Lucas ouvia atenciosamente. Ao lado dele, o Hugo Motta, que eu nunca tinha visto na vida, ouvia tudo e me olhava fixamente. 

Quando Hugo finalmente entrou na conversa, eu já tinha deduzido que ele, na certa, conhecia o Lucas. Muitos anos depois, Hugo confessaria: ouvira-me falar "uma besteira enorme" e teve de intervir. Dei risada. Ainda naquele dia do ônibus, quando ele se meteu na conversa de dois desconhecidos, eu notei nele duas características: era estranho e muito bem informado. Justamente o tipo de gente que me interessava. Memorizei seu nome. Depois solicitei sua  amizade na rede social mais usada na época. Quis saber quem era aquele esquisitão intelectualizado que ousara me corrigir e que, aparentemente, morava no mesmo Cafundó do Judas que eu. Quando Hugo Motta desceu do ônibus passou-se entre eu e Lucas o seguinte diálogo:

- Rapaz inteligente esse aí. É seu amigo, né?

- Não, cara. Não o conheço. Não é seu amigo não?

- Nunca o tinha visto antes.

E caímos no riso, surpresos. 

Assim eu conheci um dos sujeitos mais inteligentes e intelectualmente honestos que já tive notícia. Alguém que é  bom exemplo do que eu chamo de "intelectual doméstico". De lá pra cá, eu muito me beneficiei da caridade intelectual do Hugo, que sempre me concedeu referências preciosas. Foi ele quem trouxe  Wittegenstein e a filosofia moderna pra o meu mundinho que, até então, restringia-se a referências  filosóficas do romantismo e do iluminismo (Rosseau, Locke, Voltaire). Também ele, Hugo Motta, emprestou-me livros que foram da maior importância.

Nossa amizade ancorou-se, sempre, no fluxo de ideias. Nas conversas e debates dos temas da vida intelectual, política, espiritual, social, cultural, esotérica. As leituras,  as opiniões dos filósofos, dos intelectuais, dos comentadores, dos críticos. Os casos políticos e culturais do momento. As polêmicas, as piadas, as mulheres. E, claro, o gosto comum pelos fatos absurdos, hediondos, improváveis. (Hugo é exímio colecionador de atos questionáveis das criaturas humanas e de fatos peculiares do universo). 

A curiosidade intelectual generalista que havia em mim eu encontrei também nele, porém em versão refinada, erudita, poliglota. Estabeleci com ele a saudável conexão mental e afetiva que ao longo da vida eu reproduziria com outros bons amigos extraídos das redes sociais. E foi por  meio deles que tive acesso a inteligências e raciocínios que, sozinho, eu nunca alcançaria. A amizade com o Hugo deu-me acesso a gênios como o Manuel Doria, a quem eu pude fazer algumas perguntas, obtendo inesquecíveis respostas. 

Acho engraçado quando gente que não me conhece diz, ou imagina, que eu me acho muito inteligente. Como é que eu vou me achar inteligente quando a minha referência de inteligência é gente como o Hugo Motta e o Manuel Doria? E isso para não falar dos amigos programadores, cientistas, escritores, aventureiros. Eu sou tão confessional na contemplação da minha ignorância que declaro-me agnóstico, e, inclusive, já escrevi sobre a aventura que é viver tentando diminuir minha burrice cósmica.


Entre os livros e o xadrez, com o amigo Hugo Motta (que não queria aparecer).

Mas eu falava do meu amigo Hugo Motta. Escrevo sobre ele, e escreverei sobre outros amigos intelectuais, para dizer e reforçar uma ideia, um segredo que não deveria ser tão secreto assim. Ao leitor destas palavras, peço que se lembre disto: muito do que se tira de bom da vida intelectual, e quase tudo o que se aprende de relevante, vem do aprendizado informal, aquele extraído na convivência com amigos e contatos que são muito mais inteligentes e culturalmente experientes do que nós. Até os livros que nos farão a cabeça, os primeiros, aqueles de formação, dependem da indicação desses mestres informais.

O próprio Hugo, quando perguntei a origem de sua inteligência e erudição, disse-me que estudava Direito, mas era para não morrer de fome; pois quase tudo o que ele sabia de relevante tinha aprendido na internet, com amigos, artigos, sites e livros. Mais tarde, quando o conheci melhor, pude descontruir um pouco dessa visão romântica que ele tinha de si mesmo. Não que ela fosse falsa, mas, seguramente, não era explicação suficiente. Havia duas outras chaves que ele não havia mencionado: sua fluência no inglês e sua condição de filho da classe média. Mas isso, a relação do inglês e da classe média com a vida intelectual, eu comentarei em outra ocasião.

Ao constatar a grandeza de  amigos como o Hugo Motta, A Ruiva e tantos outros, fico satisfeito e envaidecido. Julgo por bem celebrá-los. Trazem-me esperança. É preciso que se diga: há grandes sujeitos neste país, muitos deles anônimos, não reconhecidos, esquecidos. Sei disso muito bem, pois conheço vários. Gente como o meu amigo Hugo, intelectual que morava em periferia e andava de ônibus. Gente assim existe. Mas, notem vocês, eu só pude chegar a ele porque conversava sobre literatura com um amigo culto. Semelhante atrai semelhante. Estivesse em roda de imbecis, idiotas, superficiais, aquela conversa não teria acontecido e eu jamais teria conhecido o Hugo. Foi sorte, mas foi aquela sorte que só acontece quando o contexto e o círculo social é favorável.

A lição é esta: não tenha demasiado medo de errar em seus comentários. Com sorte haverá, próximo, um sábio caridoso o suficiente para corrigi-lo. É claro que você sentirá vergonha depois. Mas a melhor hora para errar nas opiniões e interpretações é enquanto você é jovem. Admita ser corrigido por alguém que sabe mais. Ou, melhor ainda: queira, deseje ardentemente, ser corrigido por alguém que sabe muito mais que você; procure quem o possa corrigir. Pense na sua inteligência como um diamante bruto que a inteligência dos seus mestres ajudará a lapidar. Atue assim e naturalmente você ficará mais refinado - os outros hão de notar e te acusar o fato. Ficando mais refinado você será capaz de autolapidar-se; sem desprezar, claro, a boa e velha ajuda dos mestres.

Mostrei ao Hugo a minha melhor crônica. Ele, leitor de Umberto Eco e Roberto Bolano, honesto e impiedoso, deu nota 6. Caridoso, indicou-me alguns autores. "Imite-os para aprimorar seu estilo", ele disse. Grande Hugo! Bom e fiel amigo! Há mais de uma década atura-me e ilustra-me. 

Você, leitor jovem, trate de fazer bons amigos. Cultive amigos como o Hugo Motta. Ao ver-se beneficiada e enriquecida, a sua inteligência agradecerá. Acredite em mim, tenho outros bons amigos como Hugo. Sei bem o que digo.