23/10/24

Nossa Sinistra Tramóia




Existe um tipo de escritor que não escreve para o público. Um tipo de escritor que escreve apesar do público. Ele escreve primeiro para si mesmo, e escreve não porque quer, mas porque não pode evitar fazê-lo. Escrever é, para ele, um vício degradante, purificador e inevitável.

Ele escreve também para seus amigos, que são escritores, poetas, intelectuais e podem compreendê-lo. Afora esse pequeno grupo de amigos, esse escritor, finalmente, escreve não para todos os leitores, mas para uma minoria de estranhíssimos e inesperados leitores, que, por milagre, podem compreendê-lo. E a minoria da minoria, por milagre ainda maior, parece necessitar de seu discurso - ideia essa que honra e apavora o escritor. Ele, quando desanima, não raro vê-se motivado por leitores que dizem: "Continue, você é bom"; "Não pare de escrever", "Quando você vai escrever sobre aquele assunto?".

Quem e quantos exatamente são os membros dessa cabala? O escritor, na maioria das vezes, não sabe. Sabe, contudo, que se o leem é porque com algo se identificam, ou ao menos reconhecem as mesmas verdades. Isso faz nascer uma ponte, um sentimento comum, uma simpatia. E um pacto se estabelece entre o escritor e seu leitor. Sem pretender, sem jamais terem visto um ao outro, tornam-se cúmplices numa conspiração literária.

Somente em duas áreas é possível ser cúmplice de alguém que nunca vimos: na Espionagem e na Literatura. São, creio eu, coisas assemelhadas. O leitor, afinal, não passa de um grande bisbilhoteiro que sempre quer saber mais, e por isso se mete a ler tudo de interessante que encontra. E o escritor lírico não passa dum grande delator, traidor de si mesmo; espião que na oralidade esconde a sua angústia apenas para melhor revela-la em sua prosa.

São ambos, escritor e leitor, espiões. Um informa o conhecimento secreto e íntimo, e o outro observa, acompanha na surdina; calado toma nota. Por serem espiões, ambos desconfiam um do outro. "Será verdade aquela história que ele contou? Ou será ficção?" Pergunta o leitor. "Será que não vão me delatar à polícia, aos guerreiros da justiça social, ou pior, ao psiquiatra?" Pergunta o escritor. Escritor, você sabe, é sempre meio neurótico, meio paranoico, desregulado. "Será que vão entender que é ironia? Será que posso fazer tal citação? Será que posso usar aquela expressão latina?" Pergunta o escritor, desconfiado do leitor.

É uma relação complicada, estranha, fascinante. Eu, escritor menor, confesso, tenho medo dos leitores. Se este blog chegar aos cem leitores, pararei de escrever aqui. Quanto mais leitores, menor a possibilidade de dizer coisas relevantes e desagradáveis. Quanto mais leitores, menor a maturidade possível ao discurso. Quem fala para multidões fica restrito a falar tolice ou superficialidade. A menos que tenha vocação para mártir, o que não é meu caso.

Essa minoria de leitores da qual falo não constitui um grupo público, mas um grupo privado. Trata-se duma cabala de leitores cuja maioria desconheço, que se fazem anônimos e que não se conhecem entre si. A eles, a vocês, não escrevo como um escritor que se dirige ao público, mas aos privados. Não escrevo para povos ou multidões, escrevo para indivíduos. Escrevo como um espião que se dirige a outros espiões. 

Afinal, como convém à ética do ofício, o bom espião deve revelar-se apenas aos outros espiões; nunca ao público. Sigamos, pois, com a nossa sinistra tramóia. Eu a me delatar em literatura, e você, silenciosamente, a tomar nota de tudo.

29/08/24

Rock Higiênico

Andou fazendo frio considerável há algumas semanas. Um frio bem considerável mesmo: incomum para o Rio de Janeiro. Frio assim tem lado bom e tem lado ruim. O bom é que eu prefiro o frio ao calor, o ruim é que o frio, quando acima do aceitável, traz algumas complicações. Uma delas é na hora do banho. Acontece que eu só tomo banho em temperatura ambiente, e para conseguir isso em época de alto frio... só com estratégia. 

A minha é pôr na caixa de som um Rock pesado, geralmente Heavy Metal ou Punk. Minha lista de músicas para tal ocasião - batizada apropriadamente de "Rock Higiênico" - inclui bandas como Slipknot e Offspring e músicas como "Before I Forget" e "The Kids Aren't All Right".

                   

Ponho no volume máximo e durante o banho eu canto junto, gritando (berrando mesmo), dançando e urrando como um doido; olhos arregalados, energia de psicopata. Quando dou por mim, recuperado do transe musical, o banho acabou e foi bem divertido. 

Salvo pelo rock. Rock higiênico. 

Você pode até achar um método estranho, mas tem de admitir que, ao menos, é original e divertido.

28/08/24

O sistema dos três níveis de produção literária para escritores iniciantes


Aqui eu lhes apresento o meu sistema dos três níveis de produção literária, até então inédito. Se bem que compartilhado em conversa com uns dois amigos, que, espero eu, não o tenham divulgado.

O que ele é e pra que ele serve? Trata-se de uma estrutura que formaliza, em etapas lógicas progressivas, a organização, treino e exposição da produção literária de escritores iniciantes. 

O sistema é meu por que eu o inventei. Não o tirei do zero, pois, como se poderá ver, ele é extremamente lógico, e, há vinte anos atrás, era praticado intuitivamente por escritores iniciantes. Meu pioneirismo está em formalizá-lo e apresentá-lo aos novatos. O que há de interessante nele é que, além de valorizar os diários secretos, apregoa o uso do blogspot como um dos melhores ambientes, senão o melhor, para  o desenvolvimento literário de escritores iniciantes.  

Como não sou possessivo, até deixo você usa-lo, desde que me dê o devido crédito e não o divulgue a terceiros. Fica reservado exclusivamente aos meus amigos, afilhados intelectuais e demais leitores deste blog.

Pois bem. Os três níveis de produção literária contidos no meu sistema são: 

1) O nível secreto, 

2) O nível discreto (ou doméstico)

 e 3) O nível público.

O nível um consiste em escrever num diário pessoal secreto (virtual ou físico). O nível dois consiste em fazer um blog reservado e treinar nele vários estilos. E por fim, no terceiro nível, o objetivo é escrever numa mídia totalmente aberta. As etapas não são excludentes: trata-se duma progressão cumulativa.

O diário secreto confere total privacidade. Isso significa a possibilidade de dizer qualquer coisa, inclusive coisas que não podem ser ditas em público - como os crimes de pensamento e os crimes em pensamento. No diário secreto você pode planejar meticulosamente, passo por passo, o assassinato de todos os seus companheiros de classe idiotas, dos seus inimigos, daquele professor iletrado que não reconhece sua genialidade e, claro, do seu insuportável vizinho funkeiro. 

Mas só escreva isso se for da sua vontade e do seu gosto, ao menos no momento da raiva. Vale, no diário, a máxima sinceridade. Se depois de cinco ou dez anos você não se envergonhar do que escreveu nele, então não escreveu do jeito certo.

Se não houve nele a manifestação letrada e explícita do crápula interior que habita em você, então não serviu para nada: pois (se não sabia então fique sabendo): um diário secreto é, sempre, um veículo para o autoconhecimento. Nele toda autocensura é proibida. É como falar ou discursar o que quiser quando ninguém está olhando. Simplesmente não tem como não ser uma prática atrativa e interessante para um escritor. E outra vantagem é que, em termos gramaticais, você pode errar à vontade, ao menos no início.

Ao se habituar a escrever no  diário secreto, o novato desenvolverá, com a sua prática, os primeiros rudimentos de um estilo. Esses rudimentos devem ser desenvolvidos, expandidos, trabalhados, de modo a criar um estilo pessoal e único, que é o objetivo primário da expressão literária. Tal treinamento, por sua vez, deve ocorrer num blog restrito, acessado apenas por amigos entendidos, para que esses leiam, critiquem e dêem dicas de melhoria. 

A vantagem do blogspot é que, além de ser fácil e prático para uso,  tem um sistema de organização muito intuitivo, e é uma mídia naturalmente restrita, que não se destaca tanto nos buscadores. Os textos do blog devem ser reeditados e constantemente melhorados. Ele é o laboratório de produção textual por excelência. E serve também para que o escritor possa mapear, com as tags, seus temas de interesse.

Quando o novato sentir, ou seus amigos lhe mostrarem, que já consolidou um estilo e melhorou sua gramaticidade, é hora de pensar em expor alguns de seus textos - os melhores e mostráveis - para um público mais amplo, numa mídia mais aberta. 

Essa é a etapa mais problemática, porque nela o escritor tem de reagir aos humores do público amplo. Sempre há o risco de ficar refém do público, escrever apenas num estilo ao qual ele esteja acostumado, ou apenas sobre temas que já são comuns, pois assim o retorno positivo é garantido. 

Os dois primeiros níveis de produção servem, entre outras coisas, para fomentar no escritor as seguintes habilidades: independência, identidade, autonomia e paciência.  Jovens escritores que começam escrevendo em redes sociais, expondo-se ao público geral, são acometidos de vários defeitos, mas os dois maiores são, sem sombra de dúvidas, a ansiedade e o desejo de ser apreciado pelos leitores, isto é: a fome de reações rápidas.

É preciso ter em mente que um bom texto pode demorar. É normal que demore, que seja resultado de um esforço que inclui várias revisões e reescritas. Se o jovem escritor não adquirir essa habilidade, de trabalhar o texto no ambiente solitário, com calma, ele será privado de um recurso fundamental.  Ele deve compreender que um dos grandes segredos dos bons textos está na edição. Portanto, é imperativo ser paciente: reler e editar, reler e reeditar - sempre.

26/08/24

Laguna Sunrise e outras como ela


Estava ouvindo Laguna Sunrise e de repente me pareceu muito errado não escrever a respeito. Eu, quando era jovem e queria explorar o básico do gênero Heavy Metal (que alguns consideravam "satânico"), fiquei surpreso ao descobrir a bela melodia:

               

Até então eu jamais imaginara que uma banda como o Black Sabbath, conhecida por sua atuação agourenta, fosse capaz de produzir uma baladinha instrumental tão agradável e harmônica. Tive a certeza que se colocasse minha mãe crente para ouvir, dizendo que era uma música instrumental gospel, ela acreditaria. E foi exatamente o que fiz.

Antes que você me julgue um inveterado mitomaníaco corruptor de inocentes mães crentes, explico que era uma gambiarra moral necessária. Lá em casa não entrava "música do mundo". Era uma restrição da minha mãe que meu pai aceitava (e eu detestava). Então ou eu ficava apenas com música "gospel" ou mentia para poder ouvir outras músicas. Apelei para a santa ignorância dos meus pais: passei a mentir o gênero das bandas e cantores.

O resultado foi épico: os meus pais não só ouviam, mas cantavam e se deliciavam com as boas canções que eu descobria nas minhas explorações na internet. Entre elas, Laguna Sunrise. 

Curioso  pensar nisto agora, mas a minha mãezinha morreu sem saber que, durante alguns anos, foi ouvinte e apreciadora da obra de uma banda que, no olhar dos crentes, alegra o Satanás. Caso eu tivesse revelado, ela faria uma careta de desaprovação; e, no entanto, por ser patologicamente indulgente com os filhos, me perdoaria.

Não sei de qual álbum é Laguna Sunrise e não sei se ela representa alguma variação temporária no estilo do Black Sabbath ou nos interesses musicais dos membros à época. Só sei que no mesmo período eu descobri Changes, também do Black Sabbath, canção esta que é, com certeza, um dos pequenos dramas musicais mais famosos da história do Rock.



Desde então as duas canções me acompanham. A primeira geralmente em momentos noturnos, de reflexão e leitura. A segunda quando fico nostálgico ou passo por grande mudança. Como durante esta minha vida eu morei em uns cinco estados deste país, e também em variados lugares dentro do mesmo estado, Changes era uma canção que não podia faltar. 

Certo dia na casa nova, pela noite, olhando os livros e demais objetos empacotados, pensava nos amigos e amores que perderia pela falta de contato; pensava na vida nova, na cidade nova, nas novas perspectivas, e ouvia Changes, solitário, as vezes entorpecido...

Ouvi tanto que enjoei. Hoje em dia só as escuto em momentos especiais, e geralmente covers.

Este aqui, de Laguna Sunrise, é muito bom. (Eu, particularmente, prefiro assim - só no violão).



E este, de Changes, que coisa impressionante:



Alerto que a conexão emocional profunda com uma música específica é - perdoem-me a vulgaridade do termo - uma merda. Basta a música tocar e você é logo coberto de memórias-não-solicitadas-porém-inevitáveis (se for homem frouxo, pode até chorar).

Eu, confesso a vocês, tenho problemas de sentimentalismo com as baladinhas românticas, tristes e dramáticas. Gosto delas para valer, mas já não as ouço com a inocência dos primeiros dias, nem o que sinto é apenas deslumbramento estético. Não chego a chorar, porque homem não chora. Mas admito que algumas fomentam no meu espírito uma melancolia ponderada, autoconsciente e emocionalmente carregada. 

É música que me lembra que eu, apesar de frio e insensível, também tenho coração.

24/08/24

Teclado Novo, Mente Antiga


 O escritor Cory Doctorow, que eu não conheço e nunca li, em seu belo ambiente de trabalho.

Depois de um bom tempo de abstinência, fiquei com saudades de escrever usando o teclado do notebook - essa coisa deliciosa que faço agora (num teclado novo vagabundíssimo e maravilhoso). 

Escrever no teclado físico é bem diferente de escrever no teclado virtual do celular. Usualmente, pela praticidade, recorro ao celular para escrever notas curtas, registrar ideias, referências, dicas, auto conselhos e pensamentos diversos. Porém, é com o teclado físico que eu me sinto mais confortável e mais disposto. No celular eu só escrevo pela necessidade, ou quando tomado da "febre da nota", o sentimento de urgência originado de alguma ideia que parece proveitosa e que, caso não anotada naquele momento, pode ser perdida para sempre.

Já quando uso o teclado físico, num sábado pela noite, geralmente ouvindo música, eu sinto que posso escrever mesmo sem nenhuma ideia prévia na cabeça; escrever pelo exercício de escrever. É como se a presença do teclado e da tela em branco no notebook formassem o ambiente visual adequado para engrenar minha escrita. 

Suspeito que isso aconteça por que a imagem  mental que tenho do escritor contemporâneo inclui o elemento teclado físico (seja ele de máquina de datilografar ou de computador doméstico). Por algum motivo - talvez por não existirem "celulares espertos" quando eu era adolescente - não tenho na cabeça a imagem de um escritor que usasse apenas o celular para escrever. Bom, não tinha, até me surgir agora essa ideia terrível. Mas foi só pensar nela e já reagi com careta, considerando-a esteticamente horrorosa. 

Um dia, num futuro distópico não tão distante, as revistas e sites de literatura mostrarão a foto de algum escritor hipster (tatuado, minimalista, barbudinho, nômade digital) sentado num barzinho gourmet paulistano e digitando um micro-romance a ser publicado em micro-capítulos nas redes sociais. Quando este dia chegar, eu, ao defender os notebooks, as bibliotecas físicas e os grandes romances, serei considerado ainda mais reacionário e demodé... 

27/07/24

Quase revelação


Uma leitora leu-me pelada
Às três da manhã de um domingo
Sei que a história é estranha
Culpa do álcool ingerido

Um leitor talvez de voz fanha
Que leu algo neste blog e não gostou
Chegou por aqui curioso
Saiu arrependido e me culpou

O imortal da Academia de Letras
Que leu neste blog uma crônica minha
Achou pretensiosa e mal escrita
Tão ruim que ele nem terminou

A bela doutora da Universidade Importante
Que leu algo neste blog e me elogiou
Considerou-me um escritor de verdade
E um inesquecível convite enviou

Se o que digo aqui é verdade ou mentira
A seguir eu lhes vou revelar
Três estrofes são verdadeiras
E duas são fabular

23/07/24

Platônica Perversão


Apareceu para mim
Moça bela demais
Eu gritei para ela
Saia Satanás!

Uma sábia resolução
Tomei eu tempos atrás
Se ela não reza em Latim
Ela não me satisfaz

O meu celibato
Via Crucis de expiação
E para os tantos desejos tortos
Eu já vou dizendo não

Tenho a mente imunda
E o coração pervertido
Mas fico no abstrato
Como verso jamais dito


15/07/24

O Mais Difícil Exercício



Em certa noite, levado por um desses fluxos de memória involuntários, ele se lembrou do velho amigo Plácido. Dele há muito não tinha notícias. Por onde andaria? Era grato ao antigo amigo. Na escola militar, Plácido dera-lhe uma satisfação incrível: o melhor soco na cara que receberia de um amigo. Foi pura adrenalina. A cabeça tonteou, zonzo ele ficou. Poder-se-ia dizer que vira passarinhos: colibris, bem-te-vis, sanhaços. Sentiu-se como o Coyote ao receber na cabeça a bigorna endereçada ao Papa-Léguas.

Dera o primeiro soco, começando a briga; o segundo veio do Plácido, encerrando-a. Lembrava de vê-lo de costas, saindo, caminhando, magnânimo, certo do nocaute. Ia atrás ou deixava pra lá? Deixou pra lá, porque era o Plácido, era amigo. Briga entre amigo: esporte íntimo e elevado. Amizade só se prova verdadeira quando permanece após umas boas desavenças. Além disso, Plácido dera um cruzado de direita muito respeitável, demonstrara coragem ao bater num amigo.

Não brigar (ao menos uma vez) com um amigo era não ter um amigo. Violência moderada era expressão emocional tão rica, pura e verdadeira quanto um abraço. Devia ser vivida, explorada, manifestada. Por isso, adolescente, ele correra com a faca atrás do primo Tiago. O primo, seu melhor amigo de infância, era sempre o mais forte; então quis dominá-lo.

Também por isso - para dominar– golpeara Ricardo com um chute no íntimo; que o fez chorar, andar torto e recorrer à medicina doméstica que a mãe dominava. Por isso fora para cima do pai, fazendo-se livre da autoridade opressiva, provando que, por ama-lo, não temia lhe dar uns sopapos. Pobre do pai, o triste e alegre pai, a quem amava e continuaria amando... Por isso empurrou a mãe, defenestrou Renata, ameaçou Larissa, deu no Gilberto um soco que lhe arrancou um dente; e, pouco antes de uma crise de choro, trocou sopapos com o Maurício Antunes.

Era um tipo demasiado sensível, com uma expressão de afeto reativa e furiosa, definitivamente marcante; e por muitos era tido como bruto. Camila disse que a culpa era da "Lua em Escorpião" (e finalizou o comentário com um "Valha-me, Deus!"). Ele sabia que sua singularidade era difícil de entender, que tinha ímpeto agressivo e aos outros causava temor. Sendo assim ele procurava, no mais das vezes, evitar o amor, a companhia e o afeto. E na solidão cultivava a violência da palavra crítica, talvez sofisticada, mas não menos violenta.

Dos excessos se arrependia, mas não lhes negava a utilidade. Permitiram aos entes queridos conhece-lo em profundidade, assim aprenderam a amá-lo pelo que ele era - sem enganos e ilusões. Amando-o em essência puderam perdoa-lo, coisa que ele nunca pôde fazer por si mesmo. Ele, vendo-se capaz de tamanho barbarismo contra os queridos, soube-se imediatamente capaz de crueldades inomináveis contra os inimigos.


Fora seu Rito de Passagem.

Fez-se homem ao enxergar no coração a primitiva vocação do animal selvagem. Ferocidade de besta que se compraz na dominação; um partidário do confronto desleal, da humilhação alheia, da opressão sádica. Tropeçara na própria essência tirânica, o talento para pequeno bárbaro, a sensibilidade aguda rapidamente convertida em ressentimento e emotividade tóxica. O mal não vinha de fora, mas de dentro; ele era o mal, ele sabia-se o mal, e pior que isso: ele, as vezes, sentia-se forte ao ser violento. Era inimigo da paz e da prudência.

Teve fascínio e teve medo. Decidiu lutar contra o instinto. Estabeleceu regras. Primeiro, jamais repetir agressões aos entes queridos. Segundo, em qualquer situação, evitar a violência máxima. Terceiro, caso optasse pelo mal, direcionaria-o aos inimigos (neste caso com máxima violência).

Ele, que era um bruto, aprendera que violência pouca aliena, violência moderada educa e violência máxima embrutece. Por isso ouvia o próprio coração e expressava a pequena e média violência; deixava-as sair para vê-las melhor. Vendo-as; elevava a consciência e calculava sua inclinação destrutiva. Calculando, tratava de se prevenir...

Considerava tolos os homens que, tendo em si o mal, nada faziam para conhecer-lhe a extensão ou a profundidade. Como poderia um homem desconhecer seu mais íntimo inimigo? Não, não era correto. Não devia o homem fugir ao mais difícil exercício. Era imperativo medir cada centímetro do próprio coração como o agrimensor mede cada metro do próprio terreno. Era preciso investigar a própria alma, revirar o lixo ali enterrado. Urgente era encontrar primeiro o que é mal, porque está mais baixo e por isso está mais perto. Depois cultivar a melancolia da maldade, provendo-se da vontade de redenção que ela inspira, e daí então procurar, com afinco desesperado, o que há no homem de divino; a alma superior - mais alta, mais bela e mais distante.

Para ele havia neste mundo os homens que por Deus chegavam a Deus; mas havia também – e isto ninguém deveria negar – os estranhos homens que chegavam a Deus pelo Diabo. Deus certamente apreciava os primeiros, porém, como todo pai, era a redenção dos filhos perdidos – o drama maior da vida espiritual-, que mais envolvia e comovia o Criador. Como por água anseia a corsa; pela elevação do perdido anseia o Senhor.

Uma dúvida incomodava. Monstro amoroso que era: teria ele, algum dia, vergonha de seu drama? Por hora aderia ao caminho do meio: nem a vergonha nem o orgulho, antes a contemplação perplexa, a nota ponderada, o estudo minucioso do que carregava na alma. Mesmo o que era treva...

E assim, naquelas horas lunares, ele ia rememorando e refletindo; consciente de si e saudoso do velho amigo, que, com ajustada bravura, lhe respondera o pugilato em medida equilibrada, sem perder a amizade e o respeito. Ética distinta e masculina, por vezes incompreendida...

08/07/24

Faz


Dia após dia
Numa labuta só minha
A voz interior
Combate a anedonia

Ergue a cabeça
Olha pra frente 
Ignora a fraqueza
Fortalece a mente

Decora cada verso
Deste estribilho simplório
Pois assim tu evitas
Um futuro inglório

Faz diariamente o teu trabalho
Com o heroísmo da formiga
Para cantar em dia vindouro
Como cigarra erudita

01/07/24

Lembranças de Uma Utopia Virtual


Samuel Fernando polemizando
                                             

Há alguns anos eu tive um perfil excluído pela moderação do Facebook. O feice diz oferecer ao usuário um espaço de discurso, mas seu verdadeiro objetivo  é monitorar as ações dos usuários para criar perfis de consumo precisos; e, com isso, otimizar algoritmos de escolha de anúncios personalizados. Todos sabem disso, e eu sabia na época, mas quis jogar o jogo perigoso da liberdade de expressão, testar os limites, até porque, ingênuo, eu não esperava o pior. Deu no que deu, e me arrependo, pois havia conversas interessantes no perfil. 

Uma delas foi com o professor Adonai Santana, que é um importante físico teórico do país, e discípulo de Newton da Costa, um dos nossos maiores filósofos da ciência. Na conversa perdida, o ilustre professor (que durante a Pândemia escreveu um esclarecedor guia de Matemática) disse que o meu perfil era um dos mais divertidos, e que comentara a meu respeito com sua esposa.

John Ramalho: um caso psiquiátrico.

                     

Outro que disse coisa semelhante foi o meu mestre e amigo Paulo Cesar Santos. Programador, físico, músico e professor de Ciência Política da UFF, nas palavras dele o meu (antigo) perfil faria muito sucesso se o público geral fosse mais inteligente (disse isso ou algo parecido com isso). Era, de fato, um perfil bastante irreverente. Meio tresloucado, as vezes de um humor pitoresco, geralmente maligno, anti-humanista, misantrópico, apaixonadamente anti-sionista, muito politicamente incorreto e as vezes de uma paranoia quase delirante, palatável apenas às mais altas mentes. Prova disso é que até mesmo a Natália Sulman, essa modesta musa maior do olavismo, chegou a curtir e comentar uma minha humilde publicação.

Mas o arauto maior, o grande entusiasta das Más Letras Ramalhescas, aquele que me conduziu ao Olimpo dos Intelectuais e Musas Letradas do Facebook, foi, certamente, o indefectível Samuel Fernando. Biólogo, neurocientista e polímata paulista que, por algum período, engajou-se no mais elevado ativismo cultural que a comunidade letrada da internet tupiniquim já testemunhou. 

O perfil do Samuel Fernando – “Samuca” para os íntimos – era a Meca dos Pedantes. Todo mundo que achava que sabia muito (ou que desejava saber muito) acabava chegando lá, e, entre o deslumbramento e a inveja, descobria que o Samuel sabia mais; muito, muito mais

No que ele postava, e sobre o que ele postava, comentavam físicos, matemáticos, filósofos, biólogos, autistas com hiperfoco em ciências, altos QIs, professores, psiquiatras, psicólogos, neuropesquisadores, literatos, marxistas, olavetes, engenheiros, programadores; gente de todo o Brasil e de fora dele também. Era uma verdadeira utopia de gente articulada, que falava coisas com sentido e com algum (ou muito) conhecimento. E o Samuel, para o meu espanto e prazer, compartilhava, vez ou outra, algumas das minhas postagens. Logo pessoas começaram a me adicionar. Mulheres, inclusive. Era bom. Foi legal. Mas acabou. E acabou mal: com meu perfil excluído.


Diagnóstico rápido: "ele é doido".
       

Lembro carinhosamente desse período, não apenas por minha pequena popularidade de subcelebridade letrada de alto nicho, mas principalmente pelos amigos que fiz, as pessoas legais, divertidas e inteligentes que conheci. 

Gente como o querido Mateus Marcuzzo, engenheiro de software brasiliense e leitor filosófico com um coração nobre e ético, alguém cuja sensibilidade humanista exerce sobre mim um inegável efeito positivo. A Maria Cristina Batoni Abdalla Ribeiro, uma das maiores físicas do país - amiga de figurões como Marcelo Gleiser. Maria tornou-se uma amiga querida, uma fonte de inspiração e de bons conselhos. Cheguei a me encontrar com ela na UnB. 

Também o brilhante Stanis Lucksys, um expert em Linux que chegou a desenvolver seu próprio sistema operacional. Autodidata no que quisesse, Stan era também filósofo, músico, intelectual e um talentoso cronista. Amigo querido e cuja identificação foi grande e mútua. Stan cunhou para o nosso grupo de amigos a divertida alcunha de "Os Irresistíveis"

Enriquecia-nos a presença da Isa Murphy, apelidada “Lady Murphy”, uma goiana bela e cativante, melancolicamente solitária, falava francês, apreciava HQs, o gosto musical excelente, alma compatível, flertamos, claro. 



Havia também o sempre ponderado, lúcido, filosófico e divertido Marcus Vinícius. Psicólogo erudito, Marcus vive a combater os excessos e equívocos do identitarismo progressista. Por sua prosa bela, sóbria e profunda, considero-o um dos melhores escritores e comentaristas culturais do país. Tinha o Pedro Luiz Borba, de grande pendor argumentativo e estimulante inteligência, com quem travei alguns respeitáveis debates.

E a Carol Sorokin, que namorava o Stanis, mas que eu sonhava em ter para mim, porque era brilhante, linda e amiga. Também a queridíssima Paloma Rangel, de quem eu já falei numa carinhosa crônica e de quem pretendo falar ainda mais em outras. E não posso esquecer da doutora Ana, uma médica autista fascinante, com ouvido absoluto, inteligentíssima, a quem eu gostava de confundir com contradições, ironias e afetações de insanidade. Ela, a bela doutora de olhos hipnotizantes, fazendo o corolário de nossa divertida interação, proferiu a que talvez seja a melhor descrição que já fizeram deste blogueiro. Além desses amigos, havia outros cujo contato era menos frequente, mas de inegável enriquecimento mútuo. 

                                 Richard Nixon sorri no inferno..

Compartilho aqui as palavras da doutora Ana, pois até hoje me deliciam e divertem. Disse ela uma frase que, por seu poder de síntese, deverá constar nos comentários dos meus críticos futuros: “John Ramalho é para mentes privilegiadas”.


***

Abaixo, publico um inesquecível presente da Carol Sorokin. Gaúcha e psicóloga formada pela USP, a Carol era também enxadrista, poliglota, musicista e escritora. Sua aparência era tão sublime que ela evitava as fotos. De fato, Carol era praticamente uma sósia da Natalie Portman

Lembro dela mais pelas ótimas conversas madrugada afora, pela mente afiada e pela foto peculiar do perfil, que mostrava apenas dois pezinhos envoltos em meias de lã vermelha. Mas incluo aqui o fato da sua beleza, que era notável, e que ninguém poderia negar, ou esquecer. Nunca falei disso com ela, nem sequer um elogio, e conto a vocês apenas porque é verdade e ajuda a dimensionar as muitas qualidades dessa moça impressionante. Quando ela cismou de homenagear as pessoas que lhe eram queridas, fui um dos contemplados, e ganhei dela um tocante discurso: 

                                

O Homem Que Ri


Que as pessoas são todas diferentes todos dizem! Todos parecem ter decorado isto como se fosse a tabuada do um, mas na prática pouca gente compreende o significado dessa afirmação. Que existem problemas cuja a solução está fora do nosso alcance, seja na vida pessoal, ou em termos científicos, isso já é algo que nem todos sabem.

Ele sabe tudo isto! Ele manja de todas as coisas que não importam para quase ninguém, mas que na verdade são as coisas que mais importam para quem não é ninguém, é muito alguém!

E eu converso com ele e vivo elogiando terceiros e ele talvez não saiba que também falo dele pelas costas. Todas as suas qualidades! Mas só depois de minuciar cada mísero defeito, claro...

O que faz ele especial é que não é vaidoso, soberbo nem invejoso, é um romancista, filosofista, cronista, psicologista e até letrista, em crise com seu próprio lado romântico, que ele desesperadamente tenta esconder e não consegue. Mas nem todos percebem, só nós, os outros românticos. Pois ele é um personagem de um livro do Victor Hugo com ideias do século XXIII.

Assim, ele é bem humorado e carinhoso com as palavras. Com as palavras! Não necessariamente com quem ele as dirige. Tem um ar sedutor, dispendido para com as meninas inocentes em fóruns de literatura e filosofia, e é do tipo que escreve cartas e não envia. Depois, ainda reescreve para não reenviar!

Tem um carisma incomparável e não há quem não fique bravo com tamanhas bobagens inteligentes que ele fala. O carisma dele consiste em ser belo e imagético, mas só até certo ponto e até certa hora, depois ele muda de ideia em 180 graus e, num segundo, já é pela sua voz de locutor de radionovela da extinta Tupi.

E isto tudo é só um tiquinho, pois eu não conheço ele tão bem quanto eu gostaria, mas é uma brincadera com muito fundo de verdade, porque ele é, e todos sabem disso, uma pessoa excepcional, no melhor sentido. Em nada eu menti e espero sempre conhecer mais dele.

E como eu estou escrevendo essa série e disse que ia incluir algumas pessoas, hoje é o meu homenageado. De coração!

John, meu querido, é uma felicidade saber que a internet e as pessoas em comum que temos afinidades proporcionaram que eu pudesse lhe conhecer. Você é um amigo, quero que você considere-se assim, como se nos conhecêssemos há tempos e vidas. Você é especial, tem uma mente e um coração especial que trabalham em plena sintonia entre si e com os outros.

John Ramalho é mais ou menos isto tudo, mais mais do que menos.


***

E eu respondi:

 

Sempre me perguntei se, numa amizade, é possível fugir à pieguice. Sempre concluí, indignado, que não. A coisa é inevitável: quando temos amigos, em algum momento seremos obrigados a demonstrar afeto. Pois não tendo ânimo para pieguices e demonstrações de afeto, decidi, por bem, não ter amigos. E assim matei dois coelhos numa cajadada só. Ou, ao menos, tentei.


Curiosamente, como em tudo o mais na vida, também nisso eu fracassei. Não só não consegui não ter amigos, como também não consegui não me afeiçoar a eles.


Coitados. Pobres coitados dos meus amigos. Coitados, porque meu amor é como um vírus sorrateiro: intoxica e faz adoecer. Por isso sempre aviso: não ande com o John, não converse com o John, não dê ideia para o John. O John é perigoso. Ele pode te fazer pensar. Ele pode te fazer duvidar. Ele pode te ferir, te fazer desistir ou te fazer tentar. E pior de tudo, ele pode te fazer acreditar. E nunca, nunquinha, jamais, você irá entender o John, porque ele é tão etéreo quanto as ideias que professa e tão verdadeiro quanto o éter que os físicos teorizaram no século XIX.

O John é como o átomo: é divisível e formado mais por vazio que por matéria. Ele é um nada que existe. John Ramalho é alguma coisa como um fantasma. Sua mãe sempre lhe disse que, em decorrência de dificuldades pulmonares que teve após o nascimento, ele "nasceu sem respirar" e, portanto, "nasceu praticamente morto".

Como vocês sabem, não é todo mundo que nasce praticamente morto. A maioria, segundo consta, nasce praticamente vivo. John Ramalho, portanto, é uma raridade. É um zumbi. Nasceu praticamente morto e viveu ainda mais morto. Sobre o Fernando Sabino dizem que nasceu homem e morreu menino. Sobre o John Ramalho dirão que nasceu morrendo e viveu a morte.

Seja como for, apesar dos avisos, há sempre algum tolo, ou tola, que não escuta. E lá vai, desprevenido ou desprevenida, fazer o pacto com o Fantasma, com o Zumbi, com a Besta. E acaba descobrindo que o Diabo, apesar de feio, é menos feio do que parece.

Há gente nesse mundo que tem o coração tão grande e tão generoso que consegue apaziguar mesmo aqueles que estão destinados ao inferno.

Você é uma dessas pessoas, Carol Sorokin.

Agradeço a amizade, a paciência, a boa prosa e as palavras, tão belas e divertidas, e que foram muito mais gentis do que a verdade. Não que tenhas feito mal, afinal, pelos amigos, sempre vale a pena mentir.

A Isa se foi e me deixou cá no peito um vazio. Um sentimento de trouxa. Mas quer saber? A Isa era legal, mas ela que se foda. Se ela era legal, você é muito mais.

 

        ***

 

Apesar da boa amizade e do afeto verdadeiro entre nós, pouco tempo depois de escrever isso, Carol desapareceu da minha vida. Sei bem porquê, e não posso dizer que não havia motivo, já que não foi só comigo. Mas ainda não sei se perdoo. Talvez a homenagem fosse a sua forma de despedida...

Fato astrológico curioso é que Carol fazia aniversário apenas um dia antes de mim. Era virginiana. Na verdade: eram; tanto ela quanto a Isa. Mas para a Lady Murphy eu nunca perguntei o dia do aniversário. Ao descobrir que a Isa era virginiana eu soube imediatamente da atração fatal que nos acometeria. Caso descobrisse que ela fazia aniversário no mesmo dia que eu, tal coisa teria um efeito profundo em minha mente, gerando uma ansiedade mística que eu preferia evitar.

Antes do sumiço da Carol, eu e Isa nos afastamos, não por brigas ou rancores, mas por contingências da vida que se colocaram entre nós. Ou, talvez, por conta da minha covardia afetiva; a constante fuga de tudo o que pode me levar a uma grande paixão.

Não foram elas as primeiras moças virginianas de quem eu fui próximo, nem serão as últimas. Na verdade essa tem sido uma ocorrência tão peculiar e recorrente em minha vida que mudou minhas antigas ideias sobre a Astrologia (coisa sobre a qual devo escrever noutra ocasião).

 

***


Além de mim, e dos amigos já citados, há outra testemunha. O amigo Maycon Antônio, um jovem universitário com boa ambição intelectual, estudante da UFPR e leitor deste blog. Maycon frequentava o meu perfil e lá interagiu com essas pessoas, presenciando muitos dos debates e episódios divertidos. 

Registro tudo isso, pois aconteceu; e é bom que saibam que aconteceu. Resta a consciência de que, usando adequadamente a internet, esses encontros de pessoas afins, e de boas confrarias, acontecem. São as nossas pequenas utopias virtuais. Encontros que seriam muito difíceis de acontecer na realidade, mas são possíveis na web. 

Deixo, enfim, calorosos abraços aos meus amigos (e beijos e abraços às amigas). Que esta webcrônica sirva como testemunho do meu afeto aos que ficaram e aos que sumiram, onde quer que estejam. Por mim jamais serão esquecidos.