29/02/24

Notas de Leitura: O Discurso Sobre a Servidão Voluntária





Bons amigos costumam nos encaminhar aos bons livros. Ou, pelo menos, colaboram para nosso regresso a eles. Pois, dando mostras de amizade, Wanderson Duke intimou-me a ler e comentar o "Discurso sobre a servidão voluntária". Fez isso sem saber que eu já conhecia e já apreciava o opúsculo. Tenho-o na estante e por duas vezes já me detive em sua leitura. Como eu já pretendia relê-lo, acatei sem demora a proposta do amigo. 

Agora, cumprida a tarefa da leitura, venho cá registrar meus comentários. Por didatismo, julguei oportuno antecedê-los com contextualizações, fazendo as ideias acessíveis a quem ainda não leu a obra.

O autor do Discurso

Etienne de LaBoetie foi um humanista francês que viveu no século XVI. De família rica, La Boetie, assim como outros humanistas do Renascimento, foi latinista, grande conhecedor dos clássicos antigos, das vidas e das ideias dos povos gregos e romanos. Sabe-se que escreveu seu opúsculo ainda muito jovem, talvez antes dos dezoito anos. Faleceu cedo, aos trinta e três. Dos textos que nos deixou, o mais traduzido, importante e conhecido é o Discurso Sobre a Servidão Voluntária. 

Foi amigo próximo do filósofo Montaigne, tanto que, em seu testamento, legou a ele os seus escritos. Anos mais tarde, para honrar a memória do amigo, Montaigne publicaria o Discurso. E desde então, geração após geração, ele vem sendo republicado.

O gênero literário do Discurso

O gênero da obra de La Boetie é o Discurso Escrito, uma modalidade de exercício retórico e ensaístico comum aos eruditos franceses de outrora. Gênero que seria muito usado por filósofos iluministas. Jean Jacques Rousseau, por exemplo, escreveria um dos discursos mais famosos, garbosamente intitulado: "Discurso Sobre as Origens e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens".

Existe, portanto, na obra de La Boetie, uma sensibilidade retórica. Nota-se nela a eloquência que tanto marcou o estilo da época: os parágrafos são longos e densos, com muitas inversões sintáticas e ostentação erudita no manejo dos pronomes.

As principais ideias do Discurso

O caráter retórico do texto não lhe retira o caráter ensaístico; isto é: o autor deseja apresentar um conjunto de questões, problemas, ideias e categorizações que julga relevantes.

Quanto as ideias apresentadas, são três as maiores realizações do Discurso Sobre a Servidão Voluntária: primeiro, expõe o que autor entende por servidão voluntária; segundo, estabelece suas principais causas e consequências; e, terceiro, traça a relação do tirano com sua corte. Essas três operações intelectuais formam o triângulo mestre do esquema de raciocínio do autor, e é em torno desse triângulo que orbitam suas outras reflexões. O resto do que se discute na obra tem feição de digressão ou complemento (prova disso é que o autor, por duas vezes, reconhece ter escapado ao tema).

Eis, a seguir, um resumo da obra:

La Boetie começa demonstrando perplexidade diante da tirania monárquica, situação política em que milhares de homens se dobram aos caprichos de um só. Se liberdade é melhor que sujeição, como explicar que tantos homens tenham se rendido aos mandos de um só?

O autor argumenta que, para tantos súditos, seria muito fácil obter a liberdade. Bastaria que cessassem de obedecer ao tirano. Caso o povo optasse pela recusa à obediência, o tirano não teria mais poder algum, nada podendo fazer contra ele. A não desobediência indicaria, portanto, algo errado: revelaria uma estranha aceitação. O povo, por algum motivo, aceita o tirano, sendo a sua servidão voluntária.

Procurando explicar as origens dessa servidão voluntária, La Boetie diz que os povos nascem livres, mas, geralmente por força da guerra, são obrigados a organizar exércitos e seguir a voz de comando de um líder. Após a guerra, esse líder terá adquirido tanto prestígio entre o povo que se fará rei, prometendo ser, como rei, mais protetor do que era como general. Estruturado o reino, criam-se as leis e as dinastias. O povo acostuma-se a obedecer as leis, e com o passar das gerações vai perdendo a memória dos tempos em que era livre. Quanto mais obedece, mais tirânicos e poderosos se tornam os reis.

O primeiro motivo da servidão voluntária seria, então, o costume. O povo obedece porque seus antepassados obedeciam, porque assim lhe foi ensinado. Não haveria no homem instinto de liberdade que não pudesse ser mitigado pela educação.

Porém, por mais obediente que fosse o povo, sempre haveria riscos de sublevação de alguns de seus membros. Para evitar isso os tiranos utilizariam o incentivo aos jogos, ao sexo, às festas e a outros entretenimentos populares, prazeres baixos que entorpecem, hipnotizam e distraem as multidões. O povo é facilmente manipulado e o tirano sabe disso. O segundo motivo da servidão seria, assim, a permanência do povo num estado de distração fútil, prazerosa e festiva, que levaria, segundo La Boetie, à covardia e efeminação.

A terceira e mais importante causa da servidão voluntária é atribuída aos interesses egoístas dos estratos que orbitam o poder e com ele se beneficiam. La Boetie exemplifica dizendo que seis conselheiros cercam o rei, apoiando-o em troca de favores; e esses conselheiros, por sua vez, são cercados cada um por cem oportunistas que os apoiam em troca de favores; e cada um desses cem é cercado por outros mil subalternos, que reproduzem o mesmo padrão. Essa pirâmide de sujeição e apoio em troca de favores termina sempre por legitimar o poder do rei, mas ao custo de gerar muitos conflitos de interesse, visíveis nas intrigas da corte, onde todos fingem respeito, mas, pelas costas, conspiram e tramam uns contra os outros. Assim a tirania seria aceita porque, para muita gente, ela é lucrativa.

Ao expor as causas da servidão o autor intercala considerações sobre o comportamento dos tiranos. Diz que se diferenciam quanto a forma de obter o poder: uns o alcançam pela eleição, outros pela dominação bélica e outros pela sucessão hereditária. Mas se há diferença na origem, não há na condução do poder, de modo que, ao exercerem a tirania, assemelham-se todos. Fala também das relações entre o tirano e sua corte, demonstrando que aqueles próximos ao rei aceitam uma vida miserável regida por desconfianças, incertezas, suspeitas e paranoias, pois nem o tirano confia neles e nem eles no tirano. O comum é que os amigos do rei de hoje sejam os enforcados de amanhã, e o rei paparicado hoje seja o tirano emboscado amanhã. A vida na corte seria, assim, um verdadeiro inferno.

La Boetie conclui dizendo que as classes que sustentam o tirano deveriam despojar-se de sua mesquinhez, e que o tirano, se não for punido pelos homens, será por Deus.

Os Comentários Deste Leitor

É fácil ver nas palavras de La Boetie aquele espanto que jovens idealistas demonstram ante as injustiças do mundo. Ao escrever contra a principal forma de organização política de seu tempo, analisando e questionando a sujeição do povo, parece ter ele inaugurado a tradição do humanismo social politizado que, nos séculos seguintes, marcando a cultura letrada francesa, produziria grandes mobilizações e mudaria para sempre a França, a Europa e o mundo.

De fato, os temas do opúsculo, e outros relacionados ou derivados, foram calorosamente debatidos e politizados após La Boetie. No plano filosófico, Rousseau criticaria a desigualdade; no econômico, Saint Simon criaria o Socialismo; na ação política, a emergente burguesia destronaria a nobreza na Revolução Francesa (inaugurando a Idade Contemporânea e toda sua idolatria pela República); e com Marx e seu comunismo o povo ganharia uma teoria revolucionária radical, que prometia, se efetivada, eliminar toda opressão entre classes. Todos esses esforços posteriores, além de reafirmar a importância das questões colocadas no opúsculo, aprofundaram as análises propondo soluções políticas.

Mas tudo isso é passado e história feita. Se é fácil ver a importância de suas ideias no curso da História, que dizer sobre essas ideias  nos dias de hoje? Qual a utilidade delas na realidade brasileira? A quem, e em que, elas seriam úteis? 

O leitor informado sabe que, nos meios politizados de hoje, especialmente na esquerda contemporânea, fala-se muito sobre a opressão ao povo ou a certos subgrupos do povo. O grave defeito dos que costumam defender tais ideias é a extrema demagogia com a qual raciocinam e se manifestam. O povo, ou o subgrupo escolhido, é tratado como cordeiro imaculado, ente sacralizado, isento de pecado e da possibilidade de erro, privado de qualquer responsabilidade sobre seu próprio destino. Toda crítica que recebe é encarada como fruto de preconceito, ódio ou mal sentimento. Pois os que assim raciocinam, supondo que possuem mesmo algum pensamento crítico, são os que mais deveriam ler o Discurso Sobre a Servidão Voluntária. La Boetie demonstra que além de ser possível criticar a conduta do povo, é apenas fazendo isso que conseguiremos compreender como se dá a perpetuação do poder.

A idolatria ao oprimido é um fenômeno oposto ao antigo padrão da esquerda. Na esquerda clássica, marxista, a alienação do povo, sua passividade e docilidade eram bem conhecidas. O pilar do projeto político marxista era a conscientização da classe trabalhadora. Apesar da simpatia aos pobres, sabia-se que, para o progresso, era preciso educa-los. Não havia, de modo algum, a adulação inconsequente que domina hoje entre os nossos progressistas. Os comunistas soviéticos chegaram a debater se a classe trabalhadora seria realmente capaz de conduzir a revolução, com alguns comunistas considerando que não, que seria a classe intelectual o agente revolucionário por excelência.

A esquerda brasileira hoje parece apostar nas duas visões ao mesmo tempo: por um lado seus intelectuais procuram influenciar os universitários pregando a existência de meia dúzia de teorias críticas que, segundo eles, elevam a consciência e a inteligência; porém, por outro, negam apaixonadamente que um homem culto é mais inteligente que o padeiro, dizem que a cultura erudita (aquela mesma que estudam e na qual seus heróis, Marx, Freud e Foucault, foram buscar suas bases) é opressão eurocêntrica, e chegam a sugerir que oferecer ao padeiro uma educação clássica, como a que o intelectual teve, é uma forma de opressão ou eurocentrismo. Trata-se de uma duplicidade esquizofrênica e indigesta. Quero crer que a leitura do Discurso Sobre a Servidão Voluntária, que ficaria ainda mais fortalecida com a leitura das obras do contemporâneo Theodor Darymple, vá produzir algum movimento crítico na cabeça de quem se deixou levar pela demagogia tão em voga.

Lembremos, pois, das palavras de La Boetie

"...Na realidade, a natureza do povo, cujo número é sempre maior nas cidades, é ser desconfiado com quem ama e sincero com quem o engana... É uma coisa maravilhosa que cedam tão logo, mas somente se os elogiarem. Os teatros, jogos, farsas, espetáculos, lutas de gladiadores, animais estranhos, medalhas, quadros e outros tipos de drogas, eram para os povos antigos os atrativos da servidão, o preço da liberdade, as ferramentas da tirania. Os antigos tiranos possuíam este meio, esta prática,estes atrativos, para iludir os súditos sob seu jugo."

19/02/24

Secreto Quixotismo


Hermes, do escultor Giovanni Bologna

Disse-me que apanhara da vida. Tão fortes as pancadas que muito de sua sensibilidade poética foi perdida. Sem desistir de si, quer agora recuperá-la.

Eis aí, em resumo, a confidência de um velho amigo, também escritor - outrora jornalista, cronista, poeta e blogueiro. Amigo que me ensinou coisas importantes, que me inspirou e ajudou. Camarada irmão de letras, tanto que ostenta igual sobrenome, companheiro de fé, de dúvida e de voracidade cultural.

No momento da revelação, fui pego de surpresa, emudeci. Depois pensei, pensei e pensei. Agora, aqui, mais uma vez expondo minhas reflexões, eu o respondo.                                                    

Compreendo-te, meu bom amigo.

Esse desarranjo é sempre um risco à espreita. Para superá-lo eu penso que o escritor deve impor-se uma missão. Deve a todo custo lutar para manter vivo, em si e em seus leitores, um quixotismo: o desejo de elevar-se pela apreensão criativa das verdades e das belezas. Precisa ter a consciência que trava uma batalha. E deve tornar-se sagaz, pois, diante das inversões desta era, necessita disfarçar sua ânsia pelo superior, sua vontade de virtude e transcendência. Caso diga em público que busca uma linguagem superior, sagrada e divina, prontamente será condenado como reacionário. Terá sua honra questionada, será tiranizado, e, por não ver beleza ou verdade em toscas tentativas de linguagem inventadas ontem, será considerado um mestre do ódio, tendo a cabeça posta a prêmio. Vemos esse padrão repetir-se mundo afora.

Como fosse judeu marrano, o poeta destes tempos, querendo manter viva a sua tradição, cala e dissimula. Vive numa era em que não é permitido aos homens, nem mesmo aos poetas, contemplar as almas das criaturas ou espiar as vastidões dos céus, pois já não existe na imaginação dos mestres coisas como almas ou céus a serem contemplados. Há apenas matéria, moléculas, átomos, partículas. Tudo é fragmento, nada é absoluto. Assim dizem os doutos.

O poeta, tolo e sonhador, querendo-se algo mais do que a soma de seus neurônios, deve proteger-se. Numa sociedade que rejeita a beleza e a virtude, corre o risco de ver insuperáveis as suas dores e angústias; caminho que o levará ao suicídio. Ou, tão terrível quanto: pode testemunhar o clamor, proferido pela virtual tribuna dos ótimos cidadãos que jamais o conheceram, para que sofra um covarde apedrejamento público.

Ele demonstra, portanto, grande sensatez ao procurar resguardar-se. Mas deve tomar cuidado para não ceder ao desânimo, deixando esmorecer suas inquietações. Seu desafio, sua luta, é preservar o anseio pelo sublime, a eterna procura da alma das coisas. Deve cuidar dessa chama quixotesca como quem cuida de um tesouro precioso e frágil.

Confesso ao amigo que eu, menos tolo do que pareço, tratei de esconder do mundo o meu coração romântico, a minha alminha de pequeno poeta - perigosíssima para o mundo moderno, pois cheia de vontade de Deus e de Beleza.

Defensivo, pus em torno dela camadas de frieza, mordacidade, deboche e sarcasmo. Acossado pelo monstro que é a ignorância da vida social neste país, encontrei no escárnio a minha defesa. Aprendi a ser cruel nos atos e nas palavras, desmascarador na análise, niilista, simulador do mais profundo desprezo pelo mundo; sempre pronto a cuspir nas afetações dos pretensiosos e nas mediocridades dos conformistas.

Fiz antipático o meu exterior, mas não o fiz por completo. Fui deixando pistas sutis de que minha rabugem não era tudo, de que havia nas entrelinhas uma filosofia moral, uma sensibilidade, um anseio de virtude. E mesmo eu me passando por amargo, houve quem soube decifrar-me o caráter íntimo sensível, e até quem me acusasse de poeta.

Eu, evidentemente, negava, e em público negarei sempre essas coisas, pois sei que há multidões de embrutecidos que odeiam os sensíveis e que se esforçam por ridicularizá-los. Lembro bem do que ouvi sobre um dos meus primeiros poemas, o qual, meramente por ser poema, seria, conforme a opinião de um verme, prova de pederastia. Pois eu pensava, como sempre pensei, que ser poeta significa querer ser como o rei Davi - o salmista, o guerreiro corajoso, o mulherengo, o canalha assassino, miserável em todos os seus equívocos, mas, apesar disso, homem nobre e arrependido que pela oração buscava as virtudes faltantes. Pensava também, como ainda penso, que ser poeta significa querer ser como Fernando Pessoa, o fidalgo de alma múltipla; fascinante literato que, sendo humano e usando palavras humanas, falava com a eloquência do deus Hermes, e que mostrava ao mundo ter não uma alma, nem duas ou três, mas tantas quanto quisesse.

Busquei proteger-me de outros vermes falantes antes que obstruíssem meu ingresso na aristocracia do pensamento e na iniciação ao sacerdócio hermético. Astuto, compreendi que não poderiam destruir o que não eram capazes de perceber. Tornei-me um eremita; e, quando em contato com essa gente, fiz-me tóxico como arsênico, o quanto mais eu pude, para que vissem em mim apenas um desviante louco, agressivo, caótico e perigoso. As minhas aspirações superiores, a fim de dar-lhes sobrevida, eu tive de segredar, restringindo-as a confidência de uns poucos amigos. Somente assim logrei manter vivo esse meu quixotismo, a extraordinária ousadia da pretensão poética.

Por tudo isso, ao meu bom amigo eu aconselho: esconde com maestria a tua sensibilidade. Guarde-a codificada nas suas melhores palavras, faladas nunca, escritas sempre. Põe nelas as mais belas imagens, com seus mais elevados sonhos e utopias. Vai, dia após dia, no silêncio da noite, cultivando a leitura dos grandes poetas, rezando baixinho aos teus deuses, resguardando e nutrindo em segredo a tua sensibilidade. 

Cria um sonho impossível, uma utopia romântica, loucura íntima que te traga imenso prazer no imaginar. E quando notar que a capacidade de sentimento voltou, continue em segredo. Não faz alarde da tua imaginação poética, esse grandioso bem que há em ti. Deixa ela protegida, eternizada em arte nos teus versos ou na tua elaborada prosa, e põe cada uma das tuas obras de arte, grandes ou pequenas, num destino esotérico; como livro sagrado em baú enterrado, só disponível aos templários, em caminho só percorrido por gente estranha que é cada vez mais rara: gente que, como eu e tu, luta não apenas para ter alma, mas para expressá-la com a eloquência dos deuses.

14/02/24

Academia Individual do Esforço Intelectual e Literário




Na sua condição de criatura pensante, o filósofo  questiona até mesmo a natureza de seu ofício. Que é a filosofia e o que é o filosofar? Por que fazer tantas perguntas, desfilar tantas ideias e passar a vida investigando problemas talvez insolucionáveis? Refletindo a respeito ele percebe que, como tudo em filosofia, não existe apenas uma resposta possível.


A mesmíssima conclusão acomete os escritores que se indagam na tentativa de compreender suas motivações. E eu, escrevendo aqui no blog, não escapo desse comum destino do filósofo e do escritor. Assim, ponho-me a questionar o porquê escrevo.


Penso que é preciso, tanto para mim quanto para o meu leitor, que  as ideias na cabeça e as coisas no mundo fiquem claras. Busco organização e clareza. Não terá sido esse, desde sempre, o meu objetivo ao escrever? Quis sempre organizar meus pensamentos, sentimentos, experiências e entendimentos. Tudo nomear, classificar, empacotar, analisar e guardar para consulta e revisão futura. Demandava conhecer, ponderar, e a partir disso, orientar-me.


Isso dito, devo, agora, voltar-me ao passado. Devo, num esforço de auto-compreensão, recordar meus primeiros sentimentos na feitura dos primeiros textos dotados de ambição. Esse exercício há de me revelar detalhes. Daí a pergunta: qual era, aos treze anos, ao escrever o primeiro registro na primeira agenda, a minha ambição?


Sei bem a resposta. Eu queria memória. O que havia de específico naquele tempo, na minha vivência individual, no meu mundinho de adolescente letrado, eu queria fixar. Tencionava uma fotografia dos meus estados interiores, eu queria descrever, dar a conhecer, trazer luz ao que ao mundo era oculto. Era a ânsia do testemunho, a necessidade de contar minha história, com os atos e angústias dos quais era eu a única testemunha. 


Mas... Por quê? Donde é que me vinha essa ambição do testemunho? Qual era sua origem externa? Lembro de algumas influências.  Um homem interessante que escrevia reflexões em seu diário, e que vi num filme épico - O Último Samurai. Alguns livros infanto-juvenis da coleção Vaga-Lume, por terem histórias protagonizadas por adolescentes, como O Mistério do Cinco Estrelas e A Serra dos Dois Meninos. Os quadrinhos do Homem Aranha, onde eram mostrados os pensamentos, a voz interior do personagem. E o evento decisivo; que foi ler, na casa de um bom amigo, um trecho de seu diário (na verdade uma agenda), mostrado por ele com a casualidade de quem mostra um novo relógio ou uma fita de video-game. Esse amigo chamava-se Tiago e foi também ele quem me  apresentou a estética e o Rock do Guns N' Roses, além de outras referências culturais que, em meu meio neopentecostal, eu não tinha acesso. 


Foi pela soma dessas primeiras influências que pesou sobre mim uma intuição histórica: a necessidade de registrar e recordar. Registrar para recordar. Reflexões e memórias anotadas, lidas e relidas, eis a matéria prima da consciência. Eis o motivo pelo qual sei hoje sobre mim o que não vejo os outros saberem sobre si mesmos.  Com o tempo, Tiago abandonou seu diário. Eu continuei o meu. Continuo ainda hoje, e, até morrer, ou ser impedido, continuarei.


Feita essa retrospectiva, eu já consigo distinguir, com mais clareza, algumas causas do meu escrever. É certo que havia em mim tanto a sensibilidade quanto a vocação do memorialista. Sendo esse o gênero no qual, até hoje, a maior parte da minha literatura foi escrita. Gênero eminentemente doméstico, privado, familiar, e que só se torna célebre quando é também célebre o seu autor. 


No curso da vida o meu conhecimento literário foi crescendo e eu passei a apreciar, e as vezes cortejar, outros gêneros. O artigo, a crônica, o prefácio, o manual, o manifesto, o ensaio, o conto, a novela, o romance, a confissão, a análise crítica, o obituário, a poesia, a resenha crítica, o texto filosófico, a carta, o e-mail literário, o texto humorístico, a sátira, a polêmica, a retórica, a elaboração fina e sarcástica em redes sociais, o diálogo, as respostas em sites de perguntas, os relatos de internet, os bilhetes suicidas, a trollagem; as confissões, piadas, reflexões e relatos emocionados dos comentários dos vídeos de músicas antigas no Youtube; os roteiros de cinema e quadrinhos, as notas soltas; e, finalmente, o texto de blog, que é o mais contemporâneo, o mais completo, o que comporta todos os outros, mas o que em status é talvez o menor gênero, o menos prestigiado, sendo a um só tempo o mais acessível e o mais inacessível de todos.


Direi que esses gêneros, por mais diversos que pareçam entre si,  pertencem todos  a um mesmo grupo, um macrogênero que chamo de "o vasto conjunto das ideias interessantes que podem ser  transmitidas textualmente com beleza e charme". E como escrevinhador eu entendo que, por aqui, é nesse macrogênero que devo atuar.


O que quero aqui, no blog, é clarear as ideias, desenvolver e registrar os meus raciocínios sobre os meus temas de interesse. Não, não é verdade, eu quero mais. Preciso pôr aqui o meu pensamento primário, e depois, relendo-o, revisá-lo e apará-lo. Devo plantar aqui reflexões como quem planta arbustos e depois, carinhoso, faz a poda. É isso. Quero aqui não só os primeiros pensamentos, mas as revisões e reanálises. Quero, em suma, fazer da minha selva mental um belo jardim frutífero, único e singular, extirpando sempre as ervas daninhas. Quero dizer o que só eu posso dizer, numa minha linguagem própria e precisa; bela, porque simples.


É com essa pretensão que escrevo neste blog, e não com outra. Se algum bem eu posso fazer aqui, este bem é, primeiramente, em prol do meu pensamento e do meu progresso enquanto escritor. Lutar pelo encontro da própria voz, lutar pela descoberta dos próprios valores e conhecimentos fundamentais, e lutar pela  melhor expressão das próprias ideias. São essas as três grandes batalhas do escritor.


Devo pensar neste blog como o espaço público, embora discreto, de uma minha Academia Individual do Esforço Intelectual e Literário. Entidade essa que é a soma dos meus esforços, públicos e privados, nesse âmbito. Nela treino e fortaleço meus músculos da mente, do raciocínio e do estilo para avançar nas batalhas que o mundo literário e intelectual me impõe.

12/02/24

A Socialização Com os Iletrados

 



Os brasileiros de hoje são tagarelas e preguiçosos:não estudam nada e opinam sobre tudo… A importância da humildade no aprendizado já era enfatizada, na Idade Média, por Hugo de São Vítor, um dos maiores educadores de todos os tempos. Humildade significa, no fundo, apenas senso do real. O culto universal da juventude obscureceu essa verdade óbvia ao ponto de que todo mundo já acha natural esperar que, aos quinze ou dezoito anos, um sujeito tenha opiniões sobre todas as coisas e, miraculosamente, elas estejam mais certas que as de seus pais e avós.”
                                
Olavo de Carvalho  em "Jovens Paranaenses" 


Ao deparar-se com os primitivos hábitos mentais do povo brasileiro, o homem intelectualizado há de sofrer com os sérios entraves que encontrará em sua jornada. Pela experiência minha e de amigos, posso dizer que o primeiro e mais persistente desses problemas é, certamente, o da socialização. Como, afinal, obter a paciência necessária para interagir com a infinidade de iletrados, incultos e ignorantes populares, as vezes em posições de poder, que compõe a maioria da população do país?

Como responder, sem ser ofensivo, a quem fala de tudo sem ter estudado nada? Como respeitar as pretensões de sapiência de quem nenhuma afinidade tem com os livros, a pesquisa intelectual, o pensamento organizado, a reflexão ponderada e a cultura letrada? Como tolerar a doxa compulsiva de quem nunca se empenhou naquela atitude de humildade fundamental a qual os filósofos chamam epoché? Que fazer diante da pretensão desmedida de quem se mostra incapaz sequer de definir os conceitos e os termos que emprega? Pois, infelizmente, são esses os tipos que mais se julgam no direito de opinar sobre temas complexos e difíceis. Pior, porque, arrogantes e vaidosos, enfurecem-se quando corrigidos.

Eu, quando me relaciono com esses tipos pretensiosos e sem substância intelectual, entro sempre num dilema. Corrijo-os ou não? Se é  amigo, faço um teste: indico, para elevá-lo, algum livro e autor importante, e geralmente vejo, sem surpresa, que ele é incapaz de o ler. Ou seja: não tem real interesse em desenvolver seus raciocínios sobre o assunto. Se não manifesta nenhuma disposição em se informar adequadamente, a sua tomada de posição não pode ser encarada como uma posição intelectual, mas como uma performance social derivada de alguma necessidade psicológica; seja ela a de participar da conversa, de demonstrar uma opção política para sinalizar virtude ou outra razão qualquer que não se confunde com atividade intelectual.

Todos nós conhecemos, por exemplo, a divertida figura do “esquerdo-macho”; o sujeito que afeta ideias de esquerda para ter acesso às moças que circulam nesses ambientes. Lembro-me de um caso. Respondendo indagações minhas, um amigo boêmio falou-me das moças fogosas de uma universidade federal aqui da região. Uma de suas frases foi inesquecível. Com os olhos arregalados, ele me disse: “John, lá você não pega ninguém se não for de esquerda”. Sendo um safado de marca maior, ele confessou: chegou a andar com camiseta do Che Guevara e tudo. Eu caí na risada. Compreendo, e não o condeno. Qual é o homem que, numa situação dessas, não defenderia as ideias de Karl Marx com um malicioso sorriso no rosto? Eu, por um rabo de saia, defenderia até o Bolsonaro, com direito à camisa da seleção e gesto de arminha com as mãos. Esse tipo de dissimulação, muito humano, é antigo e, já nos anos sessenta, foi denunciado por Nelson Rodrigues. "É o golpe!", dizia o Palhares, o canalha sincero, personagem inesquecível das crônicas rodrigueanas.

São dificuldades como essas - as pretensões dos iletrados e seus joguinhos psicológicos - que infernizam a vida social dos tipos intelectualizados. Para o homem de letras o discurso é o principal meio de transmissão da verdade, e por isso deve ser levado a sério. Quando é jovem e inexperiente, o tipo intelectualizado não sabe que essa mentalidade não existe, ou é rara, nas outras pessoas. No Brasil o falar é visto como meio de socialização vazia ou como meio de obter vantagem social. As pessoas dizem o que julgam necessário dizer para fomentar as relações, os afetos ou as vantagens que desejam obter. Isso é precisamente o contrário da conduta do homem letrado, para quem a palavra é expressão de sua personalidade, de suas reflexões, estudos, dúvidas, angústias e verdades interiores.

Por esse motivo, quando não está com seus pares, quando é obrigado a interagir com populares, iletrados e ignorantes, o homem intelectualizado se sente horrorizado, solitário, incompreendido e deslocado. Ao usar o discurso para manifestar-se, prezando pela reflexão sincera e informada, é visto com estranheza, fascínio e, a depender do que diz, com animosidade. Fica estupefato ao constatar a dificuldade de encontrar interlocutores conscientes, articulados, bem informados, maduros, racionais e moderados. Tem a impressão de que os falantes estão imersos em caos mental e linguístico, em emocionalismo infantil e incoerências lógicas insuperáveis.

A resposta dos homens letrados a essa realidade diverge. Alguns intelectualizados, depois da experiência com os populares, desiludem-se. Cientes da fragilidade intelectual dos iletrados, passam a considera-los como subcivilizados, ralés que devem ser tutoreadas pelo Estado, com auxílio das classes intelectuais. É a teoria do Estado como agente civilizador. Para quem pensa assim, muitas das condutas equivocadas e viciosas do homem comum devem ser toleradas ou relativizadas, inclusive alguns crimes, porque, afinal, não se trata de um homem livre em sua expressão digna e saudável, mas uma anomalia, um homo ferus, animalizado pela barbaridade de sua condição mental e social. Mentalidade frequentemente associada ao esquerdismo, essa tem sido, há duas décadas, a corrente cultural majoritária no país.

Outros acreditam que o dever número um dos homens e mulheres de cultura é capturar a atenção do público e elevá-lo, mostrando que além da vida instintiva e civil, de hábitos precários consolidados, existe uma vida espiritual, de cultura, de imaginação, de racionalidade, de beleza e de aspiração à virtude. Mentalidade frequentemente associada ao chamados classicistas, “conservadores culturais” e aos poucos artistas que ainda acreditam na Arte como expressão do que há de universal e transcendente nos dramas humanos.

E há, finalmente, aqueles que se rendem ao mais deslavado cinismo. Se pudessem expressar com sinceridade seus pensamentos, diriam: “Que me importa o povo? Não é responsabilidade minha resolver um problema que eu não criei. Darei ao povo o lixo que ele quiser consumir, assim enriquecerei e, com minha família, desfrutarei da mais vasta sofisticação cultural que o dinheiro pode comprar”. Esses são os de mentalidade liberal. São os Sílvios Santos e Robertos Marinhos deste mundo.

Assim o problema da ignorância pública, infelizmente, continua e se agrava, de modo que não é fácil a socialização do homem culto. Quanto a mim, que mesclo a sensibilidade social esquerdista com a filosofia moral conservadora, o desafio é manter a fé de que a elevação do povo é possível, ou ao menos a dos indivíduos que ainda se importam com suas almas, sem jamais ceder ao cinismo. Conseguirei? Convivendo com a plebe, é difícil. É provável que eu fracasse. Mas, ao menos moralmente, é uma luta que vale o esforço. Nem aceitar os tolos, nem os odiar, antes, o caminho da serenidade: procurar compreendê-los e ajudá-los no que me for possível. Mas de preferência à distância, sem precisar ouvir suas tolices mais que o mínimo suportável.


Notas:

1-  A tirinha exibida é do cartunista Laerte.

2 - Aqui o texto "Jovens Parananeses", do Olavo de Carvalho

3- E aqui a crônica de Nelson Rodrigues sobre o Palhares

10/02/24

O Blogueiro Extemporâneo




Acho fascinante dispor do blogger numa era em que essa opção já não é tão popular entre os internautas. Com essa atitude eu ingresso na galeria dos blogueiros extemporâneos - os que usaram antes de ser moda e os que ainda usam depois da moda. Antevendo a pergunta: por que você ainda escreve no blogger? Deixo registrada, aqui, a minha resposta.

Faço-o porque traz consequências curiosas e interessantes. Começo explicando que, em relação aos leitores, a relativa invisibilidade do blogger no Google me blinda dos olhares indiscretos de uma multidão de internautas analfabetos culturais; muitos deles proselitistas ideológicos (à esquerda e à direita), com parca ou nenhuma formação filosófica, pouco acostumados à discordância esportiva, pesquisa, leitura, crítica racional e argumentação inteligente. A discrição protege-me também da geração floco de neve, para a qual toda conduta avessa ao sentimentalismo tóxico progressista é um venenoso fruto da árvore de algum ismo. Esses, formados quase integralmente por mocinhos e mocinhas histéricas, teriam verdadeiros ataques epilépticos ao constatarem minhas opiniões sociais e políticas. Excluída - ou minimizada - a possibilidade de visitação desses tipos, minha preocupação quanto a possíveis reações debilóides ao meu conteúdo já decai um bocado. As piores coisas para o escritor são a auto-censura e a crítica leviana.  

Ou seja: gosto da liberdade que o blogger me traz, da paz que tenho aqui. Paz: bem precioso que eu jamais teria em antros de caos e perdição, verdadeiras selvas de gritaria, como Facebook, Twitter ou Instagram. Ainda sobre os leitores: descobri que prefiro atrair gente da minha convivência ou quase – parentes, leitores antigos, amigos e amigos de amigos. Ao menos esses, quando não são cultos, demonstram interesse na elevação cultural. Buscam compreender antes de julgar.  Atrair essa gente foi um dos propósitos originais deste Notas de Um Blogueiro Em Crise (NdBC).  

Há pouco mais de três anos, em conversas, eu às vezes revelava que escrevia. Surpresas, as pessoas me perguntavam sobre o quê e onde. Para responder essas duas perguntinhas simples eu me enrolava todo. Havia escrito sobre vários temas, em gêneros distintos, e minha produção estava fragmentada em dezenas de postagens no Quora, Facebook, Medium e em blogs minúsculos no Wordpress e no Blogger. Eu não sabia nem quais eram os temas ou os gêneros que praticava com maior frequência. Por isso tomei vergonha na cara e decidi pegar todo texto que eu achasse relevante, ou divertido, e pôr num lugar só, um blogzinho, simples, minimalista, com tudo bem organizado por tags. Assim nasceu o NdBC.

E agora, quem diria, estou no quarto ano de blog. Ostentando um bocado de textos devidamente alocados e catalogados (130 textos, incluindo este). Há ainda alguns por incluir, creio que algo entre dez e quinze, porém só o farei depois de severa edição. Na transferência dos meus textos para cá eu fiz três curiosas descobertas: (1) como nos incomodam alguns dos nossos textos do passado!;(2) como cometemos plágio involuntário!; e (3) como mudam as nossas ideias! Muitos dos textos postados em outras redes, que eu achei que viriam para cá, acabaram se mostrando datados, levianos ou de inteligibilidade restrita ao ambiente original. Com isso surgiu a vontade de escrever textos inéditos para o blog, o que fiz em algumas ocasiões, geralmente na forma de crônicas, notinhas e até poemas. Tive, é verdade, vontade de escrever artigos mais elaborados, mas não consegui porque optei em focar na edição e organização dos meus diários, material que a cada ano se avoluma.

Não decidi ainda qual será a tônica do NdBC neste ano.  Sei que não tenho ânimo para falar de política e filosofia política aqui, porque é o assunto mais deprimente e é um dos mais exigentes (eu não conseguiria escrever sem ilustrar o discurso com referências, o que tornaria a produção mais demorada). Sem contar que política é o tema que mais atrai problema. Melhor evitar, como sabiamente tenho feito. 

Dos meus temas de estudo e interesse, brasilidade e violência são dois que talvez mereçam comentários. Indicações e comentários tematizando a vida intelectual e literária devem aparecer, assim como notinhas sobre livros, eventuais poesias e crônicas. Pensei em pôr aqui a correspondência que tive com amigos intelectualizados na juventude, o que houver de interessante para publicar, como exemplo a ser seguido aos meus leitores mais jovens. É uma possibilidade..

Listas de música, as famosas playlists, e dicas de música, devo publicar aqui também? Dicas de blogs, comentários sobre internet, tecnologia e blogosfera devem aparecer. E talvez eu entreviste alguns intelectuais, blogueiros, escritores e artistas, amigos ou não. Pensei em voltar a desenhar, e poderia publicar aqui os desenhos. Pensei também em traduzir alguns artigos interessantes em inglês. Eu poderia falar sobre quadrinhos,  cultura pop e sobre programas antigos de TV. Ou poderia falar de magia, tarôt, astrologia, parapsicologia, hipnose e outras heterodoxias, embora o melhor seja nunca falar sobre essas coisas à luz do dia e sóbrio, afinal, podem desconfiar – ou descobrir – que eu sou doido.

Bem, sem respostas precisas agora, vejamos o que o tempo e o capricho do autor trará ao blog. Que reine a liberdade. 

23/11/23

Os Cavaleiros da Supervia


Benditos sejam esses meninos
Negros, morenos e favelados
Ousados e destemidos
Que numa noite de Sexta-Feira
Empinam bicicletas coloridas
Nos corredores estreitos
Dos trens cinzas da Supervia

Acordam passageiros adormecidos
Fazem caretas de zombaria
Não temem os vigilantes
Sabem escapar aos fiscais
Meninos espertos e anarquistas
Sonham e nos ensinam a ousar

Com invejável equilíbrio
Tecem proezas no desporto
Como hipistas da nobreza
Ou cavaleiros medievais
Dominam seus cavalos modernos
Feitos de pneus, correntes e ligas de metais

Pouco se importam
Com a apatia do mundo
A vida para eles
Carece de aventura
Brilham esses meninos
Com sua poesia urbana
Sintetizada em ato de vida
Poesia in loco, espontânea

Digo aos meninos
Que são a Gangue dos Empinadores
Eles sorriem, orgulhosos
Depois descem todos na mesma estação
E se reúnem em roda, deliberando
Esta noite, para onde vão?
Que molecagens? Que glórias?
Que descobertas?
Que censuras receberão?

Despeço-me deles e reflito
Penso que não sei viver e não vivo
Nasci velho, cansado, Matusalém enrugado
Mas me inspira essa descoberta incrível
A visão da glória da vida
Neste lugar tão distante de tudo
Sabem viver esses meninos
Negros, morenos e favelados
Ousados, felizes, anarquistas

16/11/23

Lágrimas e Saudades


Ela que não morresse
"Preciso ainda de ti", ele afirmou
Ela lacrimejava, pois não queria partir
Mas engoliu o choro e lhe disse
"Da morte não se pode fugir"
 
Ela estava viva
Cambaleante e fraca
E sofrendo muito
Mas estava viva
 
Até que num 2 de Setembro
Veio o seu último dia
Quando então ela partiu 
Diante da família
 
Lembro-me de sua meiguice
E também de sua fé
Lembro-me de seu sorriso
E também de seu abraço
Lembro-me de tudo
E sinto saudades, e choro

09/11/23

O Apelo do Poeta

  

Moça bonita e fogosa
Que me lê a poesia e a prosa
Faz feliz este poeta
Que mesmo pecador
Quer unir-se ao divino
 
Mostra-me teu paraíso
Que tem lugar bem definido
Está de mim afastado
Bem aí, no teu corpinho
Em recinto entrincheirado
Logo abaixo do teu umbigo...
 

02/11/23

Desfile de Ébano

Negras e amorenadas
Nas quebradas a desfilar
Os cabelos black power
O estilo sarará

Andam cheias de marra
Elevadas pelo empoderamento
Deixam de lado a altivez e sorriem
Quando as elogio o embelezamento

Os corpos muito diversos
Cheios de talentos vários
As bundas, bem torneadas
Os seios, arredondados

Variam elas também
Em tipos de personalidade
Algumas são megeras
Outras são raridade

Algumas apreciam poetas cínicos
Românticos e pervertidos como eu
Outras preferem ascetas
Homens honrados e de Deus

Noto que algumas condenam
Meu apreço à beleza sinuosa
Dizem que meu olhar as oprime
E que não devo enaltecer suas formas

Calo-me então e nada digo
Mas calado fico a imaginar
Aquela morena, meu Deus, toda nua

Vênus a me fascinar!


26/10/23

Minha Aristocracia

Não um rei na barriga
Mas uma corte inteira
Em tumultuoso escarcel
O trono usurpado
Pelo revolucionário menestrel
 
Uma outra aristocracia
Jamais vista até então
Poetas, místicos e filósofos
Vagabundos e anarquistas
No controle da situação
 
Amor, virtude e sacrifício
Eis a ordem do dia
Fazei da tua conduta
O poema mais sublime
A mais bela sinfonia
 
A minha aristocracia
Antes desconhecida
Aqui eu lhes apresento 
Sejam meus súditos leais
E hão de viver a contento