Hermes, do escultor Giovanni Bologna |
Disse-me
que apanhara da vida. Tão fortes as pancadas que muito de sua sensibilidade
poética foi perdida. Sem desistir de si, quer agora recuperá-la.
Eis
aí, em resumo, a confidência de um velho amigo, também escritor - outrora
jornalista, cronista, poeta e blogueiro. Amigo que me ensinou coisas
importantes, que me inspirou e ajudou. Camarada irmão de letras, tanto que
ostenta igual sobrenome, companheiro de fé, de dúvida e de voracidade cultural.
No
momento da revelação, fui pego de surpresa, emudeci. Depois pensei, pensei e
pensei. Agora, aqui, mais uma vez expondo minhas reflexões, eu o respondo.
Compreendo-te,
meu bom amigo.
Esse
desarranjo é sempre um risco à espreita. Para superá-lo eu penso que o escritor
deve impor-se uma missão. Deve a todo custo lutar para manter vivo, em si e em
seus leitores, um quixotismo: o desejo de elevar-se pela apreensão criativa das
verdades e das belezas. Precisa ter a consciência que trava uma batalha. E deve
tornar-se sagaz, pois, diante das inversões desta era, necessita disfarçar sua ânsia
pelo superior, sua vontade de virtude e transcendência. Caso diga em público
que busca uma linguagem superior, sagrada e divina, prontamente será condenado
como reacionário. Terá sua honra questionada, será tiranizado, e, por não ver
beleza ou verdade em toscas tentativas de linguagem inventadas ontem, será
considerado um mestre do ódio, tendo a cabeça posta a prêmio. Vemos esse padrão
repetir-se mundo afora.
Como
fosse judeu marrano, o poeta destes tempos, querendo manter viva a sua tradição,
cala e dissimula. Vive numa era em que não é permitido aos homens, nem mesmo
aos poetas, contemplar as almas das criaturas ou espiar as vastidões dos céus,
pois já não existe na imaginação dos mestres coisas como almas ou céus a serem contemplados.
Há apenas matéria, moléculas, átomos, partículas. Tudo é fragmento, nada é
absoluto. Assim dizem os doutos.
O
poeta, tolo e sonhador, querendo-se algo mais do que a soma de seus neurônios,
deve proteger-se. Numa sociedade que rejeita a beleza e a virtude, corre o
risco de ver insuperáveis as suas dores e angústias; caminho que o levará ao
suicídio. Ou, tão terrível quanto: pode testemunhar o clamor, proferido pela
virtual tribuna dos ótimos cidadãos que jamais o conheceram, para que sofra um
covarde apedrejamento público.
Ele
demonstra, portanto, grande sensatez ao procurar resguardar-se. Mas deve tomar
cuidado para não ceder ao desânimo, deixando esmorecer suas inquietações. Seu
desafio, sua luta, é preservar o anseio pelo sublime, a eterna procura da alma
das coisas. Deve cuidar dessa chama quixotesca como quem cuida de um tesouro
precioso e frágil.
Confesso
ao amigo que eu, menos tolo do que pareço, tratei de esconder do mundo o meu
coração romântico, a minha alminha de pequeno poeta - perigosíssima para o
mundo moderno, pois cheia de vontade de Deus e de Beleza.
Defensivo,
pus em torno dela camadas de frieza, mordacidade, deboche e sarcasmo. Acossado
pelo monstro que é a ignorância da vida social neste país, encontrei no
escárnio a minha defesa. Aprendi a ser cruel nos atos e nas palavras,
desmascarador na análise, niilista, simulador do mais profundo desprezo pelo
mundo; sempre pronto a cuspir nas afetações dos pretensiosos e nas
mediocridades dos conformistas.
Fiz
antipático o meu exterior, mas não o fiz por completo. Fui deixando pistas
sutis de que minha rabugem não era tudo, de que havia nas entrelinhas uma filosofia
moral, uma sensibilidade, um anseio de virtude. E mesmo eu me passando por
amargo, houve quem soube decifrar-me o caráter íntimo sensível, e até quem me
acusasse de poeta.
Eu,
evidentemente, negava, e em público negarei sempre essas coisas, pois sei que
há multidões de embrutecidos que odeiam os sensíveis e que se esforçam por
ridicularizá-los. Lembro bem do que ouvi sobre um dos meus primeiros poemas, o
qual, meramente por ser poema, seria, conforme a opinião de um verme, prova de pederastia.
Pois eu pensava, como sempre pensei, que ser poeta significa querer ser como o
rei Davi - o salmista, o guerreiro corajoso, o mulherengo, o canalha assassino, miserável em todos
os seus equívocos, mas, apesar disso, homem nobre e arrependido que pela oração
buscava as virtudes faltantes. Pensava também, como ainda penso, que ser poeta
significa querer ser como Fernando Pessoa, o fidalgo de alma múltipla; fascinante
literato que, sendo humano e usando palavras humanas, falava com a eloquência do
deus Hermes, e que mostrava ao mundo ter não uma alma, nem duas ou três, mas
tantas quanto quisesse.
Busquei
proteger-me de outros vermes falantes antes que obstruíssem meu ingresso na aristocracia
do pensamento e na iniciação ao sacerdócio hermético. Astuto, compreendi que
não poderiam destruir o que não eram capazes de perceber. Tornei-me um eremita;
e, quando em contato com essa gente, fiz-me tóxico como arsênico, o quanto mais
eu pude, para que vissem em mim apenas um desviante louco, agressivo, caótico e
perigoso. As minhas aspirações superiores, a fim de dar-lhes sobrevida, eu tive
de segredar, restringindo-as a confidência de uns poucos amigos. Somente assim logrei
manter vivo esse meu quixotismo, a extraordinária ousadia da pretensão poética.
Por tudo isso, ao meu bom amigo eu aconselho: esconde com maestria a tua sensibilidade. Guarde-a codificada nas suas melhores palavras, faladas nunca, escritas sempre. Põe nelas as mais belas imagens, com seus mais elevados sonhos e utopias. Vai, dia após dia, no silêncio da noite, cultivando a leitura dos grandes poetas, rezando baixinho aos teus deuses, resguardando e nutrindo em segredo a tua sensibilidade.
Cria um sonho impossível, uma utopia romântica, loucura
íntima que te traga imenso prazer no imaginar. E quando notar que a capacidade
de sentimento voltou, continue em segredo. Não faz alarde da tua imaginação
poética, esse grandioso bem que há em ti. Deixa ela protegida, eternizada em
arte nos teus versos ou na tua elaborada prosa, e põe cada uma das tuas obras
de arte, grandes ou pequenas, num destino esotérico; como livro sagrado em baú
enterrado, só disponível aos templários, em caminho só percorrido por gente
estranha que é cada vez mais rara: gente que, como eu e tu, luta não apenas
para ter alma, mas para expressá-la com a eloquência dos deuses.
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