09/08/23

Por que me afastei das pessoas...

      

Nota do Editor: o texto abaixo foi originalmente publicado como resposta no site Quora.

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                                       [O Eremita. Do Tarôt Rider-Waite]


Porque me afastei das pessoas?  

Tive tantos motivos que chega mesmo a ser difícil elencá-los. Caso tentasse, porém, ir até a gênese da coisa, buscando a primeira de todas as razões; provavelmente seria obrigado a concluir que afastei-me das gentes devido a percepção da estranhíssima e seguinte verdade:

Eu adquiria maior orientação interagindo com os livros do que interagindo com as pessoas.

Tal coisa percebi ainda na adolescência, período da vida onde a instabilidade era a regra. Se ganhava novos conhecimentos e relações, ganhava também novas angústias e frustrações. Diante do mundo religioso que me era estimulado pela família; diante do mundo cultural que avidamente consumia na forma de quadrinhos, rock, livros e cinema; diante da vida social e das paixões carnais, das quais nada entendia, e diante da vida técnico-científica que me era apresentada na escola; minha mente viu-se tomada por exuberante fauna de dúvidas e inseguranças capitais.

Sendo um filho de professora, nunca pude fugir ao didatismo. Por isso, sentia que antes de decidir qualquer coisa importante, precisaria compreender um mínimo do mundo. Esclarecer-me. Saber o que era importante e o que não era. O que era verdadeiro, o que era engano. Quando você é um jovem romântico e problemático, que está completamente perdido no mundo, orientação é o bem mais relevante que se pode conseguir.

Os livros, mesmo que também me trouxessem muitas dúvidas, ampliavam, mais do que as pessoas, meu contexto cultural e cognitivo, não apenas de forma quantitativa, mas também de forma qualitativa. Com eles eu não só aprendia mais, mas aprendia melhor. Os livros levavam as perguntas muito a sério, dedicavam páginas e páginas de análises para compreender e esclarecer problemas difíceis. Havia neles uma seriedade, um compromisso, um brio intelectual, uma racionalidade analítica, que, sentia, faltava em meu meio de origem. Isso para não mencionar também a beleza estética da linguagem empregada.

Entre os 13 e 16 anos, enquanto meus amigos mais integrados "comiam todas as menininhas da cidade", eu lia “O Último dos Moicanos” e também “As Viagens de Gulliver”. Livros que fizeram-me um estrago brutal. Deles vieram meus primeiros rudimentos de sensibilidade e consciência moral. Desvelaram a mim os absurdos, as incoerências, as injustiças e as loucuras dos homens. O primeiro de forma épica e trágica, o segundo de forma mordaz e satírica.


                                                        [Dança com Lobos.]


O bom cinema estragou-me também. Filmes que muito me influenciaram nessa faixa etária foram: “Sete Anos no Tibet”, “Dança com Lobos”, "O Conde de Monte Cristo" e “O Último Samurai”; todos envolviam homens perdidos, amargurados, em situação de distância e isolamento de seu mundo de origem. Filmes que retratavam a alienação do herói, primeiro passo para a evolução filosófica e espiritual, lugar-comum da estrutura narrativa. Fizeram-me equacionar solidão e distanciamento com aquisição de sabedoria.

Sentia falta de pessoas (adultos) extraordinários e inspiradores. Escasseavam na vida real, mas superabundavam nos livros e nos bons filmes. Na biblioteca da escola, disponíveis para me instruir, estavam: EinsteinMichiu KakuJonathan SwfitBill BryssonCurzio Malaparte e centenas de outros cavalheiros com a mais vasta erudição, sofisticação e experiência de vida. Todos indivíduos de espírito e distinção. Fora da biblioteca, não conhecia nenhum ser humano que trouxesse em si tanta magnitude. Via naquele local silencioso, que eu considerava um Templo da Sabedoria, o ambiente de uma comunidade de sábios, gênios e aventureiros. Era jovem, mas já intuía a existência de uma Cultura Universal, de uma Sabedoria Universal. Ali eu poderia ter acesso as palavras desses homens, saber o que pensaram, o que viveram, como viram o mundo, o que tinham a ensinar. E descobrir o porquê eram considerados tão importantes.


                [ Einstein. Não basta ser inteligente, é preciso ser também irreverente.]


Sendo eles de tamanha importância histórica e cultural, pensava que deveriam ter alguma orientação, deveriam saber como o mundo funcionava; saber de coisas importantes que os outros não sabiam. Afinal, não eram eles os chamados gênios? As chamadas “grandes mentes”? Certamente não haviam chegado onde chegaram por acaso. Certamente tinham algo a ensinar. Eu aprenderia com eles. Com suas vivências, ensinamentos, opiniões, conselhos; e, possível fosse, seria tão grande quanto.

Pois quanto mais interagia com as obras originadas por essas e outras mentes ilustres, mais ampliava a percepção da futilidade e decrepitude das mentes ao meu redor. Vendo que a futilidade era a regra, a sabedoria tornava-se um bem raro; e, portanto, altamente valoroso. Percebi a futilidade das gentes, decepcionei-me com a futilidade das gentes: afastei-me da futilidade das gentes. Busquei a sabedoria. Dos sábios.


                               [Perder tempo com os tolos? Não eu..]


A verdade é que ninguém pode imergir na parvoíce das gentes sem tornar-se também um tanto quanto parvo. A mente não apenas é moldada pelo conteúdo com o qual a alimentamos, mas torna-se também uma reprodutora desse conteúdo. A mente é uma replicante de memes*. Daí a importância de uma cultura que eleve e nos instigue à virtude e não ao vício. Já jovem sabia muito bem disso. Como a cultura ao meu redor parecia induzir ao vício e a confusão, julguei necessário me resguardar. Busquei pessoalmente, muitas vezes isoladamente (algumas vezes socialmente, em pequenos grupos de amigos), cultivar uma outra cultura. Uma que não apenas me entretesse, mas que me inspirasse, que me ensinasse a ter alguma orientação no mundo, a responder minhas dúvidas capitais, a compreender melhor e a ser alguém melhor.

Assim o fiz. Assim o faço. Por isso o afastamento.

Fato é que nunca me tornei exatamente alguém melhor. Na maior parte das vezes, sigo sendo o mesmo traste de sempre, entretanto, ao menos alguma orientação mínima e alguma compreensão mínima (do mundo, dos homens e dos deuses) eu obtive. Não é muito, mas é já alguma coisa.

Me arrependo de me ter afastado das pessoas?

Nem por um segundo.


*O termo "meme" é usado aqui em seu sentido original, isto é: uma unidade mínima de ideia ou conteúdo mental reproduzível culturalmente.



02/08/23

Como é a vida de um vagabundo

 

[Novos Baianos - A face da vagabundagem artística]


Embora seja verdade que ando procurando emprego, não posso, não devo e não tenho a mínima pretensão de negar que sou, em espírito e em ideologia, um vagabundo.

"Vagabundo Intelectual", "Ocioso Profissional", "Vagabundo de Elite" são alguns dos termos que poderia usar para me descrever. O que mais gosto, no entanto, é o sonoro e retumbante "Elite da Escória" (Será, se tudo der certo, título de algum livro ou conto futuro).

A vida de um vagabundo profissional, dentro dos seus limites, é boa - provavelmente melhor que a vida de muitos de vocês. Certamente não é para qualquer um, já que exige um nível de desapego e de distanciamento social considerável; junto da permanente instabilidade financeira, é claro.

Contarei já tudo o que é necessário saber sobre esse estilo de vida. Mas antes, como me é típico, trarei alguns esclarecimentos prévios. O amigo leitor, caso queira, pode pular para a segunda parte.


[Colin Wilson - o vagabundo literato]

  1. De como me tornei um vagabundo profissional

Ao contrário do que se pensa, não é fácil se tornar um vagabundo. Não estou considerando aqui aqueles casos em que não houve escolha, onde o processo foi consequência de fracassos pessoais e de uma certa maré de azar. Não foi o meu caso, nem o dos meus amigos. O nosso processo foi ideológico/ filosófico: está totalmente atrelado a um sistema de crenças e valores que desafia os modelos e as imposições sociais da civilização atual.

Sofri influências diversas. Literárias, cinematográficas, filosóficas. A ideia de uma vida simples e contemplativa, do Thoreau; a sugestão de uma vida boêmia e calorosa, do Jack Keruac. Um modelo mais próximo e contemporâneo, Eduardo Marinho, outro; o Alexander Supertramp. A história do Leonardo Maceira; viajar sem dinheiro pelo Brasil tirando fotos de belas mulheres nuas em meio à natureza. Contagiante. Qual artista aventureiro não gostaria de uma experiência dessas? E a base filosófica mais profunda veio do Bertrand Russel em seu Elogio ao Ócio. Também os relatos de Orwell sobre seu tempo de vagabundo - Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios - e o ensaio de Tocqueville sobre a pobreza me cativaram. Tolstoi, com seu cristianismo anarquista naturalista, uma influência mais distante. Thomas Merton, com sua apologia da solidão, também.

Enfim, modelos não me faltaram. Fossem aristocratas, burgueses, intelectuais, drogados, monges ou pobretões.

Entendam: sou um sujeito livresco, artístico, cultural e contracultural, com certa admiração pelo que foge à regra. O que as pessoas normais acham absurdo, fora do comum, coisa de maluco, acho interessante, faz parte do meu imaginário. Então viajar de carona, levar uma vida boêmia ou ser um tanto vagabundo sempre foram ideias bastante aceitáveis para mim, pois me lembravam as experiências de pessoas que eu admirava.

No entanto, perceber que o modelo de vida vagabundo era, para mim, psicologicamente mais saudável do que uma vida integrada ao sistema foi algo que só aprendi com o tempo. Já fui um agente do sistema. Já estive em suas entranhas, vi seu funcionamento torpe e corruptor por dentro. Estive nas forças armadas, convivi com autoridades, tinha uma carreira estável. Estive numa das melhores universidades públicas do país, tive acesso à nossa elite, seja a intelectual seja a econômica. Em todos esses lugares, sempre me impressionou a mesquinharia, o imaginário débil, a preguiça intelectual, a burrice, o medo da superioridade alheia, a hipocrisia, o corporativismo tacanho, a sujeição bovina aos símbolos de status e autoridade, a burocracia kafkaniana, as leis sem sentido, o fuzuê geral que se instaura em cada instituição, em cada debate, em cada círculo do funcionalismo.

Com o tempo, foi ficando claro que eu tinha uma forma de pensar, um tipo psicológico, um certo sentimento filosófico - outsider - que não era comum. Fui percebendo que nessa sociedade, nessa cultura, as pessoas como eu acabavam enlouquecendo. Alguns dos meus amigos, iguais à mim, foram parar no hospício. Outros, no caixão. Eu iria pelo mesmo caminho, não tenho dúvidas. Já tinha até carta de suicídio pronta.

Por outro lado, minha vocação em escrever e ter uma vida contemplativa, em ser um observador da loucura do mundo, em pôr o dedo nas feridas, se fazia cada vez mais pujante. Até que uma série de tragédias - incluindo o suicídio de alguns bons amigos - me fez perceber que minha sanidade estava também indo para o ralo, e logo eu teria que - como a maioria de vocês- viver à base de psicoterapia, remédios de tarja preta, sessões de auto-hipnose na igreja evangélica e conselhos do Dráuzio Varíola e do Flavio Gikovate. Então, apreensivo, optei por um período de isolamento com a tríade: eremistismo urbano + misticismo cristão + vagabundagem filosófica.

Pôr a mente no lugar, deixar a vocação fluir. Encontrar Deus no Silêncio, nas Trevas e na música de Wagner. Foda-se o resto.

Inteligência, orientação e sanidade sempre foram importantes para mim. Se o único jeito de mantê-las era me afastando da sociedade e frustrando as expectativas dos meus pais, tudo bem; era um preço que eu podia pagar. Aceito bem a infâmia.


[Renton e sua trupe de vagabundos junkies - Trainspotting]

2. Aspectos da vida de um vagabundo.

Tempo

O vagabundo tem tempo, não tem pressa para quase nada. A únicas grandes preocupações são com o mínimo de comida, de saúde e de moradia (E, no meu caso, com o caminhar da vida intelectual e espiritual).

Se o vagabundo acorda e diz: "Declaro hoje feriado pessoal. Está proibido trabalhar." É a Lei e não se fala mais nisso.

Podemos passar horas sentados, descompromissadamente, observando o ambiente ao redor, refletindo, comparando nossa vida livre com as das outras pessoas, cheias de compromissos, presas a todo tipo de senhores, padrões, comportamentos, relações e ideias.

A noção do tempo dos vagabundos, obviamente, não é das melhores. O vagabundo pode demorar muito para fazer as coisas. Hoje é quinta? Sexta? Sábado? O vagabundo não sabe. E nem se importa.

Stress

Em decorrência dessa liberdade de ação, o vagabundo não tem stress, ou o tem em pouquíssima quantidade. Pode ficar ansioso quando se aproxima o dia de pagar o aluguel, ou temerário depois do segundo dia sem comer, mas a vida lhe ensinou que há, quase sempre, alguma resolução, que a Providência não abandona os justos, nem aqueles que tentam sê-lo. O vagabundo tem fé, tem fé em Deus, tem fé no Destino, tem fé em milagres, tem fé na bondade humana.

Ele é, a um só tempo, um homem só, abandonado, e um exército de resiliência.

Renda

O vagabundo sabe, mais do que todos, que dinheiro, por mais importante que seja, está longe de ser a coisa mais importante. Ele consegue as coisas, muitas vezes, na base da lábia, da amizade e da boa fé. Ele não teme se expor. Sabe de sua condição e não pretende negá-la. Mesmo não sendo apegado ao dinheiro, sabe que deve honrar seus compromissos financeiros quando são com pessoas. Como o vagabundo entende que pessoas jurídicas não são pessoas, ele se permite furtar algumas coisas do supermercado e dar alguns calotes institucionais aqui e ali.

Mas sempre há algo que o vagabundo sabe fazer. Eu, por exemplo, escrevo - mal, mas escrevo. Também desenho - mal, mas desenho. Eu sei hipnose - pouco, mas já impressiona. Também sei falar, dar aulas, entreter. Quando o vagabundo não é bom em obter dinheiro com seus talentos (meu caso), ele sabe ao menos onde ir e obter recursos de graça ou a preços irrisórios. Vai recorrer, evidentemente a caridade dos bem afortunados, sejam parentes, sejam amigos, sejam desconhecidos. Ou aos órgãos públicos destinados ao serviço social. Aqui em Brasília há, por exemplo, o "Rorizão", Restaurante Comunitário cujas refeições (café da manhã e almoço) custam apenas dois reais cada.

Os caridosos, por sua vez, amam o vagabundo, especialmente quando é esclarecido. A maioria das roupas que tenho, ganhei. Perfumes, ganhei. Relógios, ganhei. Livros, também.

Saúde

O vagabundo conhece os melhores métodos de sobreviver às intempéries e privações. Ele sabe o que comer para manter a imunidade elevada, sabe como se exercitar, conhece as receitas mágicas, passadas de geração em geração, para curar as moléstias. Conhece as plantas, sabe onde obtê-las. E se ele não sabe de nada disso, conhece quem sabe.

Vida interior

Não dispondo de muitos recursos externos, o vagabundo se volta para si mesmo. É um homem cuja vida interior é invejável, de imaginação aflorada, com uma memória vívida do passado. A prática da reflexão, pelo tempo, fez dele um filósofo, naquele sentido kantiano do termo, segundo a qual a maior característica do filósofo está na reflexão aprofundada e não necessariamente no conteúdo da reflexão.

O vagabundo pode conversar sobre qualquer assunto que envolva aspectos humanos. Ele desenvolveu uma capacidade incrível de separar o que é realmente importante na vida e o que não é.

Amizades

Está aí o que talvez seja a maior fonte de prazer para o vagabundo. Ele pode ficar sem comer, sem pagar o aluguel, sem atualizar seu vestuário, mas não pode ficar sem beber com seus amigos. Muitas vezes, os amigos acabam o induzindo a se entorpecer além do álcool, o que ele faz, embora vá se arrepender depois.

Há momentos em que a rabugem lhe toma conta e então ele se torna agressivo e desdenhoso. Mas logo se arrependerá e recorrerá, novamente, aos amigos. De onde sempre extraí ânimo de viver e alguma força. Por isso o vagabundo é extremamente fiel aos amigos, como um cachorro. Está disposto não só a fazer o bem, mas mesmo a fazer o mal para defender os seus.

Tragédia Existencial

O vagabundo tem muito claro para si a dimensão trágica da vida. Ele não nega suas dores, seus sofrimentos, nem os alheios. Mas nada disso o faz fraco, pelo contrário. Encara a morte de um amigo, por mais que o ame, como encara a morte de uma borboleta ou a imprevisibilidade geográfica dos raios: são fatos da vida, inevitáveis, inescapáveis.

O vagabundo é, sobretudo, um estoico. Jamais se incomoda ou se revolta com aquilo que não pode mudar. Longe de se rebelar contra a Natureza, ele a respeita profundamente.


E há, certamente, muito o que poderia ser dito. Mas creio que pude lhes dar ao menos uma breve dimensão desse estilo de vida. Não recomendo. É só para os doidos.

"As únicas pessoas que me interessam são as loucas, aquelas que são loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas; as que desejam tudo ao mesmo tempo. As que nunca bocejam ou dizem algo desinteressante, mas que queimam e brilham, brilham, brilham como luminosos fogos de artifícios cruzando o céu."

Jack Kerouac


26/07/23

Intelectualidade e Solidão

 

[Os processos de cognição e significação acontecem no cérebro e no espírito do estudante. Se a pessoa é burra, não gosta de pensar e é incapaz de fazer esforço mental, não há professor que ajude, nem método de ensino que resolva.]


Aprendizagem é um processo que acontece, em grande parte, na sua mente. Não adianta o melhor professor do mundo, com a melhor didática, com a melhor aula. Se você não fizer esforço pessoal, cerebral e espiritual para compreender o tema em questão, então não irá compreendê-lo.

E aí vem a causa da solidão: é a minoria que está disposta a fazer o esforço necessário para aprender tudo que é relevante e importante na vida intelectual.

Se o que se quer é ser como qualquer um, fazer as coisas no nível de qualquer um, pensar como qualquer um, então o caminho é, realmente, se misturar com qualquer um, ouvir qualquer um, fazer o que todo mundo faz e, em consequência, obter os mesmos resultados e ser como o homem médio, com aquele QI médio nada lisonjeiro, típico de uma sociedade cuja cultura contém uma dose extremamente elevada de anti-intelectualismo e de praticidade imediatista.

Por outro lado, se o que se quer é obter resultados superiores, compreensão superior, ser diferente da turba, será necessário agir de modo diferente da turba. É preciso saber que a vida intelectual, nos seus aspectos mais exigentes, mais elevados, não é uma escolha, mas um sacerdócio. É vocacional, não é para qualquer um. Ela exige mais do que o homem comum está disposto a sacrificar.

Quanto maior e mais profunda for a compreensão de um homem sobre um assunto, mais dificuldade as pessoas terão para compreender o que ele está dizendo, e por conta dessa dificuldade, menos interesse elas terão. Não estão dispostas a fazer os mesmos sacrifícios para adquirir as mesmas habilidades cognitivas, a mesma profundidade e a mesma sensibilidade intelectual. Isso acontece em qualquer área do conhecimento, é um padrão que tem a ver com a estrutura hierárquica do conhecimento, que reflete a estrutura hierárquica da Natureza.

19/07/23

Quem pode ser considerado intelectual?

                       

[George Orwell, jornalista e literato, foi um dos intelectuais mais influentes do século passado. Com seus livros, mobilizou a opinião pública na direção de questões importantes como a liberdade de pensamento e os meios que Estados totalitários empregam para controlar as mentes da população]


Para bem entender o conceito de intelectual é preciso regressar ao contexto de origem do termo.

No século XIX*, na França, houve um episódio famoso, conhecido como Caso Dreyfus. Um capitão do exército napoleônico, chamado Dreyfus, foi acusado de traição. Houve um julgamento. O problema é que o tal Dreyfus era judeu; e a França (como quase todos os países da Europa) possuía um longo e próspero histórico de antissemitismo.

No meio letrado e cultural francês o julgamento do capitão Dreyfus despertou a atenção de todos. Ele era de fato culpado ou era apenas mais um caso de antissemitismo? 

Cada grande autor e pensador escolheu seu lado e argumentou em defesa ou em ataque ao réu. Se não me engano, Victor Hugo e Émile Zola foram alguns dos que comentaram sobre o caso.

Então alguém (não me lembro quem) cunhou esse termo - "Intelectual" - para descrever essa atividade, esse fenômeno, quando um indivíduo oriundo do mundo letrado busca, com seus conhecimentos, influenciar a opinião pública, moldando as sensibilidades e orientando as escolhas, os gostos, os olhares.

Intelectuais seriam, assim, aquelas pessoas que usam de seus conhecimentos, de sua bagagem cultural, filosófica e retórica para influenciar o curso dos acontecimentos, dos povos, das crenças vigentes, para passar uma mensagem, defender uma causa, expressar uma verdade esquecida, uma visão de mundo. Eles seriam uma espécie de "consciência crítica, moral e cultural" da humanidade, ou da sociedade moderna. Tornariam públicos os debates que nós travamos internamente, em nossas consciências. Sua função seria mais ou menos a de externalizar e dar luz a questões importantes, de educar o público ou uma classe em particular.

Coisa que eles fazem por meio de jornais, revistas, ativismos, livros e atuações em centros culturais e políticos. O que os define é mais a atividade intelectual, cultural e letrada, não a formação. Não existe graduação, pós, doutorado ou titulação para isso. Existe uma vocação, uma vida de estudos humanísticos, culturais ou científicos, e a atividade na área.

Há intelectuais de todas as origens, pobretões, autodidatas, aristocratas, artistas, burgueses, cientistas, reis, literatos, engenheiros, bandidos, políticos, jornalistas, etc.

Machado de Assis era um pobretão mulato autodidata e era intelectual. Dom Pedro II era o Imperador do Brasil e era intelectual. Aliás, o pendor para esse tipo de atividade foi o que os aproximou e os tornou amigos.

Para um intelectual, pouco importa a classe ou a origem; se há uma mente pensante, fértil, dada a reflexão, se há uma inteligência em ação, buscando descortinar os significados das coisas, o intelectual vê ali um irmão, um semelhante, um de mesma classe.

Por outro lado, há classes inteiras de diplomados que, embora se considerem muito inteligentes e sofisticados, são a antítese do intelectual. Um exemplo são alguns professores universitários, cujas obras ninguém lê; são pessoas que não participam da vida cultural do povo, que não se achegam a ele.

Nesse sentido, Paulo Coelho e Augusto Cury são muito mais intelectuais que parte considerável dos professores universitários. Primeiro porque eles detectaram um problema cultural autêntico: a angústia espiritual do nosso povo (coisa que nenhum intelectual de esquerda conseguiu notar até hoje, pois acham que o problema é sempre financeiro, material). Segundo, porque eles, bem ou mal, levaram ideias e influência literária até as pessoas. Você, como eu, pode até acreditar que essas ideias são pobres, toscas e duvidosas, mas aí já é outra conversa.

Hoje em dia, há intelectuais populares, como Cortela, Karnal, Cloves de Barros e Pondé. Eles sim são ao mesmo tempo professores universitários e intelectuais, capazes de influenciar as pessoas com suas ideias (que em geral acho tosquíssimas e pobres).

Olavo de Carvalho foi, sem dúvidas, o maior intelectual do Brasil em seus anos de atividade. Independente da qualidade ou da validade de sua obra, ele mobilizou, por meio de seus livros, artigos, aulas e palestras, classes inteiras, inclusive classes políticas e militares, em torno do seu discurso. E fez isso ao mesmo tempo em que lutava contra quase toda a classe intelectual/ letrada do país. Um feito no mínimo impressionante para "um véio gagá".

Se um "véio gagá e ex-astrólogo" conseguiu obter tanta influência apesar de ser odiado e rejeitado por toda a classe intelectual jornalística e acadêmica, isso diz muito sobre como essas classes estão distantes da cultura brasileira e dos problemas brasileiros.

Um intelectual outsider e artista que eu gosto bastante é o Eduardo Marinho. Ele escreve no blog Observar e Absorver. O contato dele com o povo brasileiro e sua história de vida é muito interessante. Há um texto dele, em especial, "se eu pudesse falar com a esquerda" que é muito verdadeiro.

Aqui uma explanação do Eduardo:

                                       

Por fim, há uma acepção tosca, menos qualificada, que se refere a qualquer pessoa com tendência comportamental que envolva leitura, debate, escrita, atividade cultural e esforço mental. Dizem lá em casa, por exemplo, que eu sou "o intelectual da família".

Eu sou qualquer coisa, menos intelectual. Aliás, para ser sincero, na maior parte do tempo eu odeio intelectuais. Como já mencionei aqui antes, a maioria são pedantes, mesquinhos, medíocres e mentirosos. Especialmente os acadêmicos. (De fato, na minha experiência pessoal, a maioria dos intelectuais autodidatas que conheci tinham maior amplitude, mente mais aberta, mais contato com o povo, etc.)

                                                                               ***

*Agradeço a gentil correção do Leonardo Suzuki, já que eu havia, originalmente, indicado o século XVIII. Um erro que poderia facilmente ter sido evitado se a minha preguiça e vaidade intelectual não me impedisse de consultar o Google.

                                                                               ***

Nota do Editor: a primeira versão deste texto foi originalmente publicada como resposta no site Quora.

12/07/23

Preciso conhecê-la

 



Contaram-me de uma donzela das Letras que tem por qualidade roubar livros na Bienal.

Eu, ladrão desavergonhado de livros, imediatamente apaixonei-me. Não sei ainda a verdadeira identidade da moça, que minha fonte preferiu preservar, só sei que a amo e a quero.
Já roubastes em bibliotecas públicas, meu bem? Já roubastes de autoridades? Já deixastes bilhetinhos em lugar dos volumes? Ela e eu, quando nos conhecermos, teremos muito o que conversar, e muitas técnicas de furto a desenvolver. Creio até que juntos roubaremos melhor que ciganos e judeus. Seremos como Lampião e Maria Bonita, Bonnie e Clyde, Sid e Nancy, Tyler Durden e Marla Singer, etc, etc.
Torço, portanto, para que eu a conheça.
Aquele entre vós, amigo ou inimigo, que porventura souber o paradeiro da moça, ou de outra parecida, que tenha a gentileza, a decência, o brio moral - e mais do que ele - o compromisso de me avisar.

05/07/23

O que aprendi jogando xadrez

 

[O desafio de xadrez mortal, em Harry Potter e a Pedra Filosofal*. A vez em que o Ron Weasley salvou todo mundo, mostrando que era mais esperto e nobre do que todos suspeitavam.]


Contarei a vocês sobre como o xadrez me fez aprender ao menos duas lições essenciais, que me forneceram maturidade para a vida inteira:

  1. Meus limites intelectuais
  2. A existência de gênios (e que eu não sou um deles)
  • Sobre Limites e Tipos Cognitivos

Como todo mundo do nosso tempo, eu fui educado para pensar que "todo mundo é igual" e que "todo mundo" possui os mesmos potenciais, inteligências e habilidades. Em outras palavras; fui infantilizado por A.O.E.C's (Agentes Oficiais do Emburrecimento Coletivo, vulgo "professores") para ignorar Verdades Fundamentais da Biologia, como a variação das habilidades entre os indivíduos e a desigualdade na distribuição dos dons, níveis e tipos de inteligência.

Isso me fez acreditar, de forma absolutamente inocente e tola, que eu poderia virar um Einstein ou um Kasparov, pois era apenas uma questão de treino e esforço.

Foi jogando xadrez que eu aprendi que os A.O.E.C'S haviam me enganado.

O que aconteceu? Já conto. Mas antes, como fazem os sábios, já aviso: Senta que lá vem história!

  • A Formação Enxadrística

Aprendi xadrez, junto ao meu irmão, aos doze anos. Aos dezesseis, cansados de jogar apenas entre nós, eu e o mano decidimos procurar outros enxadristas locais. Então descobrimos, no Orkut, que havia uma comunidade de xadrez na cidade. Rapidamente entramos em contato com os sujeitos e, previsivelmente, nos tornamos amigos e rivais.

Logo montamos um grupo. E todo final de semana, religiosamente, estavámos na praça, disputando nossos torneios, treinando novas aberturas, novas estratégias e trazendo novos desafiantes ao grupo. Tendo também muitas conversas inelectualmente estimulantes, misturadas com todo tipo de zoeira, trollagem juvenil e conversas sobre mulheres.

Em casa, jogava contra meu irmão (que quase sempre ganhava). Nossas disputas pessoais (quando não eram resolvidas no tapa) eram resolvidas racionalmente com base no resultado das partidas. Também jogava com desafiantes e amigos na escola. Então, para mim, era uma atividade muito presente.

A consequência natural foi me interessar por campeonatos. Naquela altura, eu sabia que poderia sair do nível amador e me tornar um jogador razoável, e começava a cobiçar a possibilidade de me tornar um G.M (Grande Mestre) - um enxadrista respeitado em nível internacional (sim, eu era ambicioso!).


[Bobby Fisher, lenda do xadrez mundial, ao ser questionado se ele achava que era o melhor jogador do mundo, respondeu placidamente:"sim, eu sinceramente acho que sou o melhor jogador de xadrez vivo dos nossos tempos". Duas semanas depois da entrevita ele conquistou o título de campeão mundial.]

Você acha que todo mundo pode ser tão bom no xadrez quanto ele? Que é só treinar? Então porque outros jogadores treinaram tanto quanto, mas não conseguiram os mesmos resultados?


  • Meu Primeiro Campeonato

No campeonato da minha cidade, achei que ficaria em primeiro lugar, então convidei o Ezequias, um amigo que era um pouco melhor, e que morava no município vizinho, para participar do torneio também. Os outros participantes, por melhor que fossem, eu sabia que poderia ganhar. O Ezequias estava "uns dois degraus" acima de mim. Embora já tivesse ganho dele, sabia que seria um desafio.

A final do torneio não deu outra: eu contra ele.

Numa jogada genial, eu tomei a dama. "Pronto, agora eu ganho!" foi o que pensei. E daí em diante, como me é típico, comecei a relaxar. Mas meu rival era entendido de tática e estratégia; e, muito orgulhoso, não iria desistir fácil. Ezequias pensou um bocado e conseguiu, numa jogada ainda mais brilhante, me dar um xeque-mate totalmente inesperado e imprevisível.

Fiquei em segundo lugar. Mas sabendo que poderia ter ganho, que tive uma vantagem e vacilei. Engoli a seco, mas o que eu poderia fazer? Ezequias era um bom jogador. Se eu quisesse ter ganho, deveria ter sido mais cuidadoso, mesmo com a vantagem. Foi um bom jogo, desafiador, instigante e justo. E ficar com o segundo lugar nem era tão mal assim.


[Henrique Mecking, o "mequinho", maior enxadrista brasileiro de todos os tempos. Esteve entre os top 10 do mundo. Depois de uma partida contra ele, que acabou em empate, Bobby Fisher - A LENDA - disse: "Eu achei que iria perder!"]

Você acha que é "todo mundo" que consegue dar um susto enxadrístico no Bobby Fisher?


  • Meu Segundo Campeonato

Meu município era pequeno e não tinha tradição alguma em atividades mentais. Então eu e minha gangue enxadrista migramos para o campeonato da cidade vizinha. Esse torneio já era um pouco mais significativo, e os resultados nele nos fariam ver o quão habilidosos nós realmente éramos, já que vários enxadristas de toda a região iriam participar.

No dia do campeonato, descobrimos que o vice campeão de xadrez do Rio de Janeiro estaria por lá. Incrível! Finalmente eu poderia ver um sujeito de nível elevado jogando.

Agora, preciso dizer a vocês que nesse torneio eu empatei com um jogador extremamente experiente, um senhor que era o professor de uma escolinha de xadrez da cidade. Foi empate por tempo. Segundo o professor, eu fiz apenas uma jogada errada. É claro que ele iria me ganhar e que tudo que eu estava fazendo era postergar o xeque-mate. Porém, considerando que se tratava de um amador, "de rua", contra um jogador experiente, um mestre local, posso dizer que postergar o jogo o suficiente para chegar a um empate por tempo foi um resultado bem interessante. Até hoje esse empate é o resultado do qual mais me orgulho, e guardo com carinho a notação da partida (depois tiro uma foto e posto aqui).

Já o Ezequias, que era o melhor de nós, foi jogar contra o "o vice-Rio". Entendam bem, caros leitores: o Ezequias, em nível amador, era um bom jogador. Tinha várias aberturas, saídas e movimentos, incusive de meios e finais, decorados e exercitados. Mesmo assim ele foi absolutamente massacrado pelo vice-Rio.

Eu nunca tinha visto ninguém normal prever tantos movimentos. E olha que já tinha jogado com ótimos jogadores, que tinham boa resposta para cada jogada minha. Era óbvio que aquele cara era fora do comum. Enquanto meu amigo Ezequias estava explodindo o cérebro e se matando de raciocinar, aquele cara, aquele maldito gênio, estava simplesmente brincando. As jogadas que nós considerávamos brilhantes eram nada menos do que cócegas para ele. Cócegas, amigos! Cócegas em pés de um gigante!

Eu havia acabado de empatar com um jogador já idoso e, embora altamente experiente, normal. Mas aquele cara, o vice-Rio, só a experiência e treino não explicava a habilidade dele; havia algo mais, algum tipo de habilidade inata, específica, para a coisa. O treino dele só reforçava e ampliava essa habilidade. E era uma habilidade que nem eu, nem meus amigos, nem o mestre local e nem nenhum dos outros jogadores ali tinha, simplesmente não era uma habilidade de raciocínio comum.

Então, talvez pela primeira vez na vida, eu pensei:

"Posso até estudar muito e ficar muito bom, mas nunca vou ser como esse cara. Nunca vou ter a facilidade, a velocidade de raciocínio e a memória absurda que ele tem. O filho da puta é um gênio!".

Exatamente o mesmo sentimento que o Vegeta teve nesse dia:

                                    


[Hindenburg Melão Júnior, superdotado brasileiro, enxadrista com recorde no Guiness por ter vencido a maior simultânea do mundo de xadrez às cegas. Ou seja: jogou contra vários enxadristas profissionais SEM OLHAR PARA O TABULEIRO. E ganhou.]

E você, o que me diz? É todo mundo que consegue isso? É só treinar? Ou é preciso algum tipo de habilidade computacional e mnemônica inata, além do treino?


  • As Lições

Depois, ao longo da vida, conheci pessoalmente alguns gênios, alguns superdotados, alguns "aspies" e algumas pessoas com alto QI. E tive sempre a mesma percepção, de que estava diante de um talento natural.

Aquele dia no campeonato foi apenas a primeira vez; e como tal, foi marcante e inesquecível. Desfez o emburrecimento que os AOEC'S haviam induzido em mim.

Nunca mais confiei em professores. Se alguém é incapaz de reconhecer um aspecto óbvio - elementar- da realidade, e o falsifica, então esse alguém não é cognitivamente confiável para mais nada, o que o torna totalmente inepto para o ensino. Até hoje, 90% dos professores que conheci eram desse tipo- o que me fez detestar a escola.

Mas não é bem culpa deles: é um fenômeno da modernidade/pós-modernidade negar a realidade em função de necessidades psicológicas e sociais. Assunto sobre o qual irei falar em outra resposta.

Se eu tivesse comprado essa balela de que "todo mundo é igual, com a mesma inteligência", eu estaria até hoje tentando, sem sucesso, ser um enxadrista tão bom quanto o Bob Fisher ou o Magnus Carlsen. Estaria infeliz e deprimido, sem saber aceitar minhas limitações e provavelmente nunca teria descoberto minhas habilidades naturais, que são outras.


[Samuel Reshevsky, com apenas oito anos, em 1920, derrotando mestres de xadrez na França.]

Você acha que toda criança é - ou pode ser - igual a esse guri?


Por outro lado, com o tempo, descobri que era muito mais habilidoso em escrever do que em jogar xadrez. E de fato, várias pessoas já me disseram que "tenho o dom". Não sei se é dom, mas realmente sinto que nasci para escrever, que é uma vocação, que tenho algum jeito para a coisa. E embora eu ainda tenha que melhorar MUITO para ser um bom escritor, posso dizer que escrever "é o meu negócio", como dizem os gringos.

Então, três coisas posso dizer para vocês: jamais confie 100% em seus professores, especialmente se algo na sua experiência pessoal - ou intuição- contradiz diretamente o que eles alegam. Segundo: saiba reconhecer quando alguém é superior a você em algo, e terceiro: busque sempre saber no que você é bom. Se fizer essas três coisas, você vai conseguir:

  • a) ir além dos seus professores- e saber quando eles estão te enganando, omitindo fontes e fatos ou apenas propagando inverdades porque é como aprenderam;
  • b) aprender com as pessoas que são muito melhores que você numa dada área ou atividade e;
  • c) impressionar e ensinar algo as pessoas (mesmo àquelas que podem ser muito superiores em outras áreas).

Hoje, por exemplo, eu sei que se não treinar muito pesado e muito consistentemente durante anos, não terei a mínima chance de vencer um enxadrista mediano.

Mas não me ressinto disso, porque sei que com meus textos, posso chamar a atenção para a história do xadrez, para os seus benefícios, para as biografias dos grandes mestres e para a beleza e grandiosidade do jogo que ao mesmo tempo é arte e guerra. E com isso posso despertar o amor e o interesse das pessoas pela Arte de Caíssa.

Esse é um prazer que eu teria perdido se tivesse ouvido o populismo de meus professores e de outros demagogos.

                                                                              

                                                                        ***

Nota do editor: Assim como outros textos deste blog, a obra acima foi originalmente publicada como resposta no site Quora

28/06/23

Como se tornar um autodidata

É difícil sugerir um método categórico, universal e que se aplique a cada caso particular, pois as pessoas não possuem as mesmas habilidades e facilidades.

Contudo, pela minha experiência, diria que um bom começo é justamente essa consciência: refletir sobre como o processo de aprendizagem funciona para você, em que contextos ele ocorre de forma mais eficiente e mais prazerosa.

Em outra palavras, é preciso se questionar: O que você aprende com mais facilidade? Que tipo de assunto? Por qual tipo de abordagem? Você precisa de uma referência visual para entender bem um tópico (o famoso "quer que desenhe")? Ou prefere uma abordagem histórica?  Quando diante de um professor, você prefere a voz de um homem ou de uma mulher? Prefere estudar de dia ou no silêncio da noite? Prefere estudar em grupos ou sozinho? Em sala de aula ou fora dela?

Muito do processo do autodidata consiste numa adequação dos meios e formas de ensino às suas preferências e habilidades. O termo de ordem aqui é personalização do processo. Quanto mais ativo você é no seu processo de aprendizagem, mas natural ele se torna para você. Já experimentou fazer uma lista com os temas ou problemas que mais te interessam e depois passar um tempo investigando os melhores livros, vídeos e áudios básicos a respeito? Pois esse é um bom começo!

Existe uma série de coisas que as pessoas aprendem espontaneamente ao longo da vida, isso porque aprender é uma habilidade natural.

Dito isso, devo enfatizar que a base do autodidatismo está num imperativo moral de autorresponsabilidade. Por que esperar que a informação chegue até você, via professor ou curso, se você tem os recursos e a inteligência necessária para ir atrás dela? É antes uma questão de amor ao conhecimento, de respeitar sua curiosidade, de amar a atividade investigativa e de ter brio. Se algo realmente te interessa, é você quem deve correr atrás!

Claro que isso não significa que você vai ser capaz de aprender tudo sozinho, sem interferência externa ou sem a ajuda de alguém que entenda melhor o assunto. Autodidatismo não é isso. A rigor, ninguém aprende nada sozinho (mesmo quem aprende majoritariamente por livros está aprendendo com outra pessoa: o autor). Tudo o que você deve fazer é pesquisar e gerenciar as fontes de informação e sua interação com elas. Decidindo quais são as melhores para você e em que contexto você vai utilizá-las, estabelecendo uma ordem nas atividade, etc.

Nesse processo, você deve usar como arma as habilidades que já possui. Sua memória é boa? Ótimo, considere isso em seu sistema, não tenha pudor em memorizar esquemas.

Sua memória não é tão boa, mas você gosta muito de ler e é muito paciente? Ótimo, procure as melhores fontes básicas nos livros e as explore até dominar o conteúdo.

Você não tem nenhuma grande habilidade, mas é do tipo competitivo que faz qualquer coisa quando é desafiado? Pois bem, escolha algum sujeito metido mais inteligente que você, numa matéria que você sente que pode melhorar, e só pare de se dedicar ao assunto quando superá-lo ou for, no mínimo, tão bom quanto ele.

Outra coisa necessária para começar é ter um meio de medir o seu progresso e domínio no assunto. É possível fazer isso por meio de provas e exercícios, conversando ou debatendo com especialistas, escrevendo e dando aulas sobre o tópico em questão e, claro, produzindo algo com aqueles conhecimentos (se forem conhecimentos técnicos/ práticos). O melhor sistema de checagem é o que inclui todos esses.

Dê uma olhada neste vídeo: nele um dos maiores intelectuais do século passado fala um pouco sobre o processo de educação autodirigida: 

                              

Para resumir, as dicas básicas para começar a se tornar um autodidata são:

  1. Mapeie seu perfil cognitivo. Como você aprende, onde você aprende, em que velocidade você aprende e com quem você aprende. Saiba o que facilita eu processo de aprendizagem e o que o dificulta.
  2. Selecione todos os facilitadores da aprendizagem e crie um sistema pessoal com eles.
  3. Tenha e cultive a autonomia e resiliência, não aceite tudo o que uma suposta autoridade te diz, investige e tire suas própria conclusões. Se você pode pensar em uma pergunta, então também pode se dedicar a pesquisar e estudar para respondê-la. Quanto mais importante for a questão para você, mais dedicado você será.
  4. Saiba recorrer a todos os tipos de fontes, saiba sobre as qualidades e defeitos de cada fonte. Professores, livros-texto, dicionários, enciclopédias, vídeos-aula, audios/podcasts, paletras, etc. Experimente todos e selecione quais são as melhores para você.
  5. Adicione um elemento lúdico ou emocional que torne a coisa prazerosa, apaixonante. Que te anime ou inspire. Há muitas forma de fazer isso, desde participando de jogos e competições que envolvam conhecimento até estudando a obra de pessoas notáveis que passaram a vida se dedicando a investigar certos temas. A cultura é uma ótima forma de inspirar e motivar. Consuma filmes, livros, animes, espetáculos teatrais e shows sobre os assuntos que te interessam.

Isso é só um início, mas deve ajudar.

                                                 

                                                                   ***


      Dica originalmente publicada no site Quora, em 25 de Junho de 2019

21/06/23

Um Morto Muito Louco

 


O primeiro Jorge Amado a gente nunca esquece. Pois bem, no exercício de ler e conhecer ao menos uma obra dos grandes prosadores brasileiros, depois de me impressionar com a prosa do Carlos Heitor Cony, resolvi conhecer alguma coisa do nosso grande populista Jorge Amado. Populismo esse que para o crítico Wilson Martins era um pecado e que para mim não é - ao menos não necessariamente...

A escolha pelo livro foi inspirada no fato de um dos meus gurus intelectuais, o professor Uriel Irigaray, mestre em Letras e doutorando em Antropologia, ter escrito sua monografia sobre rituais iniciáticos de morte e renascimento; na qual, para minha surpresa, citava essa obra do Jorge Amado. Como eu não tinha lido a obra, parei a leitura da monografia e resolvi voltar apenas depois de ler e assimilar a narrativa do Quincas Berro Dágua (sobre a qual eu não tinha a menor ideia).

Sem saber do que tratava a obra, o nome me parecia muito peculiar. "A morte e a morte?... Como assim a morte e a morte?... O que ele quer dizer?" Também o nome do protagonista me soava estranho, enigmático: Quincas Berro Dágua!? Que nome esquisito!

Por todos esses motivos, era um livro que eu me sentia obrigado a ler. E como eu não tenho pressa pra nada, foi neste ano de 2022 que aconteceu. Li e a experiência foi de puro deleite.

A primeira surpresa agradável foi descobrir a prosa gostosa e fluida do Jorge Amado, uma prosa que não oferece dificuldade, que tem ritmo fácil e que pela leveza - aqui eu me arrisco a sugerir- parece uma atualização ou "abrasileiramento" do estilo mais direto de autores populares ingleses e americanos do século XIX, como Robert Louis Stevenson e Jack London. Teria que reler Stevenson e conhecer as influências literárias do Jorge Amado para saber até onde essa minha aproximação tem sentido, mas, ao menos foi essa a minha impressão. Falando de outro modo: Jorge Amado escreve menos como um literato - por literato leia Machado de Assis e Camilo Castelo Branco - do que como um contador de histórias. Ele não põe nenhuma grande firula sintática ou estilística na prosa, o que lhe interessa não é a grande retórica ou o rebuscamento ou o Português belíssimo e castiço, mas a narrativa, ato a ato, gesto a gesto, acontecimento por acontecimento. Não me admira saber que tantas das suas obras foram adaptadas para Cinema e Teatro. Faz sentido. Por focarem na narrativa elas são facilmente roterizáveis. Jorge Amado é, portanto, um autor de estilo "leve", fácil, muito bom para formar leitores, para indicar a adolescentes e iniciantes em Literatura. Faz sentido que seja autor importante no currículo escolar.

Mas isso não é tudo, e nem é o melhor. A cereja do bolo, para mim, está na boa ironia e no saboroso humor com os quais Jorge Amado vai tecendo a sua trama. Eu dei muitas e boas risadas durante a leitura do livro, diverti-me como há tempos não me divertia numa leitura. Até emprestei o livro ao meu irmão, que nem é grande leitor literário, e ele teve ótima recepção; chegou a agradecer-me pela indicação.

Outro elemento do estilo e da narrativa que merece destaque é a dimensão simbólica da obra, pois ela pode ser vista como metáfora para a ideia de que a nossa vida, identidade e autopercepção é determinada pelo meio social, pelas relações sociais; de modo que, ao alterarmos drasticamente nosso comportamento e status social, podemos simultaneamente morrer para um grupo e viver para outro. Enquanto essa interpretação (de que a primeira morte seria apenas simbólica, erro da família de Quincas, que o queria morto) é uma leitura possível e talvez provável, resta uma outra que ainda está no quadro de possibilidades: teria Quincas Borba realmente morrido na primeira vez? Se sim, a história ganha então contornos fantásticos, e aqui a figura do morto-vivo celebrando e festejando ganha ares de um mórbido carnaval, uma festa grotesca e ao mesmo tempo hilária. Acho que essa segunda interpretação é a que vem sendo adotada pela crítica, o que acaba por aproximar a obra do assim chamado Realismo Fantástico. Lembrando agora: bem que a monografia do mestre Uriel falava algo sobre Bakhtin e a ideia de "corpo grotesco"...

Concluo dizendo que gostei um bocado. Livro para reler e indicar aos amigos.

Ah, e antes que eu me esqueça: o livro oferece uma ótima e divertida explicação para esse nome tão esquisito!

OBS: está nos meus planos escrever um comentário melhor e mais organizado a respeito dessa obra. Se você gostou dessa resenha, que não é bem uma resenha, siga meu blog e veja se alguma coisa lá te desperta a curiosidade. Tem lá um bocado de crônicas, algumas notas, comentários sobre blogs, filmes, causos culturais e até alguns downloads.

Neste link a monografia do erudito Uriel (finalmente poderei terminá-la!)


                                                                 ***

       Resenha originalmente publicada na rede social SKOOB em 27\07\2022

07/06/23

Elas não querem que saibamos





As mulheres não querem que os homens saibam que elas não sabem o que querem.

Mulheres: elas não querem que eles saibam que estão confusas e que em breve mudam de ideia.

Elas não querem que saibamos que, para serem felizes, dependem de nós - de nosso amor, aprovação, força, estabilidade, proteção e carinho. Não querem que saibamos que: se lhes dermos tudo o que querem, jamais, nunquinha mesmo, serão felizes. A mulher, meu amigo, só é plena quando tem do que se queixar.

Que não saibamos - nós, homens - o que elas realmente pensam: é definitivamente o que querem.

Que é a mulher, afinal? É a enguia disfarçada de ninfa, que nos avilta com descargas elétricas emocionais para depois escapar de nossas masculinas mãos. É a Esfinge, cheia de infernais enigmas. É a bênção e ao mesmo tempo a sacanagem. É filha de Deus, mas também - e mais do que tudo - do Diabo. Geralmente demônio cruel, as vezes é anjo. É a lua: bela e com alguma luz; mas imersa em trevas insuperáveis.

A mulher, as mulheres: tão boas que, sem saber perdê-las, acabamos nós, pobres homens, no álcool, no surto e às vezes na cadeia.

As mulheres não querem que saibamos; mas eu, que contemplei a verdade, sei e vos afirmo:

A mulher é bruxa, portal do diabo.

A mulher é tragédia, loucura e escárnio.

A mulher é tão terrível perdição, que, mesmo tentando, não se pode fugir dela - e por isso todo homem, pela própria natureza, está condenado. 

Quase tanto quanto o homem, a mulher é uma tragicomédia anunciada...