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26/08/24
Laguna Sunrise e outras como ela
24/08/24
Teclado Novo, Mente Antiga
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O escritor Cory Doctorow, que eu não conheço e nunca li, em seu belo ambiente de trabalho. |
Depois de um bom tempo de abstinência, fiquei com saudades de escrever usando o teclado do notebook - essa coisa deliciosa que faço agora (num teclado novo vagabundíssimo e maravilhoso).
Escrever no teclado físico é bem diferente de escrever no teclado virtual do celular. Usualmente, pela praticidade, recorro ao celular para escrever notas curtas, registrar ideias, referências, dicas, auto conselhos e pensamentos diversos. Porém, é com o teclado físico que eu me sinto mais confortável e mais disposto. No celular eu só escrevo pela necessidade, ou quando tomado da "febre da nota", o sentimento de urgência originado de alguma ideia que parece proveitosa e que, caso não anotada naquele momento, pode ser perdida para sempre.
Já quando uso o teclado físico, num sábado pela noite, geralmente ouvindo música, eu sinto que posso escrever mesmo sem nenhuma ideia prévia na cabeça; escrever pelo exercício de escrever. É como se a presença do teclado e da tela em branco no notebook formassem o ambiente visual adequado para engrenar minha escrita.
Suspeito que isso aconteça por que a imagem mental que tenho do escritor contemporâneo inclui o elemento teclado físico (seja ele de máquina de datilografar ou de computador doméstico). Por algum motivo - talvez por não existirem "celulares espertos" quando eu era adolescente - não tenho na cabeça a imagem de um escritor que usasse apenas o celular para escrever. Bom, não tinha, até me surgir agora essa ideia terrível. Mas foi só pensar nela e já reagi com careta, considerando-a esteticamente horrorosa.
Um dia, num futuro distópico não tão distante, as revistas e sites de literatura mostrarão a foto de algum escritor hipster (tatuado, minimalista, barbudinho, nômade digital) sentado num barzinho gourmet paulistano e digitando um micro-romance a ser publicado em micro-capítulos nas redes sociais. Quando este dia chegar, eu, ao defender os notebooks, as bibliotecas físicas e os grandes romances, serei considerado ainda mais reacionário e demodé...
27/07/24
Quase revelação
Às três da manhã de um domingo
Sei que a história é estranha
Culpa do álcool ingerido
Um leitor talvez de voz fanha
Que leu algo neste blog e não gostou
Chegou por aqui curioso
Saiu arrependido e me culpou
O imortal da Academia de Letras
Que leu neste blog uma crônica minha
Achou pretensiosa e mal escrita
Tão ruim que ele nem terminou
A bela doutora da Universidade Importante
Que leu algo neste blog e me elogiou
Considerou-me um escritor de verdade
E um inesquecível convite enviou
Se o que digo aqui é verdade ou mentira
A seguir eu lhes vou revelar
Três estrofes são verdadeiras
E duas são fabular
23/07/24
Platônica Perversão
15/07/24
O Mais Difícil Exercício
Em certa noite, levado por um desses fluxos de memória involuntários, ele se lembrou do velho amigo Plácido. Dele há muito não tinha notícias. Por onde andaria? Era grato ao antigo amigo. Na escola militar, Plácido dera-lhe uma satisfação incrível: o melhor soco na cara que receberia de um amigo. Foi pura adrenalina. A cabeça tonteou, zonzo ele ficou. Poder-se-ia dizer que vira passarinhos: colibris, bem-te-vis, sanhaços. Sentiu-se como o Coyote ao receber na cabeça a bigorna endereçada ao Papa-Léguas.
Dera o primeiro soco, começando a briga; o segundo veio do Plácido, encerrando-a. Lembrava de vê-lo de costas, saindo, caminhando, magnânimo, certo do nocaute. Ia atrás ou deixava pra lá? Deixou pra lá, porque era o Plácido, era amigo. Briga entre amigo: esporte íntimo e elevado. Amizade só se prova verdadeira quando permanece após umas boas desavenças. Além disso, Plácido dera um cruzado de direita muito respeitável, demonstrara coragem ao bater num amigo.
Não brigar (ao menos uma vez) com um amigo era não ter um amigo. Violência moderada era expressão emocional tão rica, pura e verdadeira quanto um abraço. Devia ser vivida, explorada, manifestada. Por isso, adolescente, ele correra com a faca atrás do primo Tiago. O primo, seu melhor amigo de infância, era sempre o mais forte; então quis dominá-lo.
Também por isso - para dominar– golpeara Ricardo com um chute no íntimo; que o fez chorar, andar torto e recorrer à medicina doméstica que a mãe dominava. Por isso fora para cima do pai, fazendo-se livre da autoridade opressiva, provando que, por ama-lo, não temia lhe dar uns sopapos. Pobre do pai, o triste e alegre pai, a quem amava e continuaria amando... Por isso empurrou a mãe, defenestrou Renata, ameaçou Larissa, deu no Gilberto um soco que lhe arrancou um dente; e, pouco antes de uma crise de choro, trocou sopapos com o Maurício Antunes.
Era um tipo demasiado sensível, com uma expressão de afeto reativa e furiosa, definitivamente marcante; e por muitos era tido como bruto. Camila disse que a culpa era da "Lua em Escorpião" (e finalizou o comentário com um "Valha-me, Deus!"). Ele sabia que sua singularidade era difícil de entender, que tinha ímpeto agressivo e aos outros causava temor. Sendo assim ele procurava, no mais das vezes, evitar o amor, a companhia e o afeto. E na solidão cultivava a violência da palavra crítica, talvez sofisticada, mas não menos violenta.
Dos excessos se arrependia, mas não lhes negava a utilidade. Permitiram aos entes queridos conhece-lo em profundidade, assim aprenderam a amá-lo pelo que ele era - sem enganos e ilusões. Amando-o em essência puderam perdoa-lo, coisa que ele nunca pôde fazer por si mesmo. Ele, vendo-se capaz de tamanho barbarismo contra os queridos, soube-se imediatamente capaz de crueldades inomináveis contra os inimigos.
Fora seu Rito de Passagem.
Fez-se homem ao enxergar no coração a primitiva vocação do animal selvagem. Ferocidade de besta que se compraz na dominação; um partidário do confronto desleal, da humilhação alheia, da opressão sádica. Tropeçara na própria essência tirânica, o talento para pequeno bárbaro, a sensibilidade aguda rapidamente convertida em ressentimento e emotividade tóxica. O mal não vinha de fora, mas de dentro; ele era o mal, ele sabia-se o mal, e pior que isso: ele, as vezes, sentia-se forte ao ser violento. Era inimigo da paz e da prudência.
Teve fascínio e teve medo. Decidiu lutar contra o instinto. Estabeleceu regras. Primeiro, jamais repetir agressões aos entes queridos. Segundo, em qualquer situação, evitar a violência máxima. Terceiro, caso optasse pelo mal, direcionaria-o aos inimigos (neste caso com máxima violência).
Ele, que era um bruto, aprendera que violência pouca aliena, violência moderada educa e violência máxima embrutece. Por isso ouvia o próprio coração e expressava a pequena e média violência; deixava-as sair para vê-las melhor. Vendo-as; elevava a consciência e calculava sua inclinação destrutiva. Calculando, tratava de se prevenir...
Considerava tolos os homens que, tendo em si o mal, nada faziam para conhecer-lhe a extensão ou a profundidade. Como poderia um homem desconhecer seu mais íntimo inimigo? Não, não era correto. Não devia o homem fugir ao mais difícil exercício. Era imperativo medir cada centímetro do próprio coração como o agrimensor mede cada metro do próprio terreno. Era preciso investigar a própria alma, revirar o lixo ali enterrado. Urgente era encontrar primeiro o que é mal, porque está mais baixo e por isso está mais perto. Depois cultivar a melancolia da maldade, provendo-se da vontade de redenção que ela inspira, e daí então procurar, com afinco desesperado, o que há no homem de divino; a alma superior - mais alta, mais bela e mais distante.
Para ele havia neste mundo os homens que por Deus chegavam a Deus; mas havia também – e isto ninguém deveria negar – os estranhos homens que chegavam a Deus pelo Diabo. Deus certamente apreciava os primeiros, porém, como todo pai, era a redenção dos filhos perdidos – o drama maior da vida espiritual-, que mais envolvia e comovia o Criador. Como por água anseia a corsa; pela elevação do perdido anseia o Senhor.
Uma dúvida incomodava. Monstro amoroso que era: teria ele, algum dia, vergonha de seu drama? Por hora aderia ao caminho do meio: nem a vergonha nem o orgulho, antes a contemplação perplexa, a nota ponderada, o estudo minucioso do que carregava na alma. Mesmo o que era treva...
08/07/24
Faz
01/07/24
Lembranças de Uma Utopia Virtual
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Samuel Fernando polemizando |
Há alguns anos eu tive um perfil excluído pela moderação do Facebook. O feice diz oferecer ao usuário um espaço de discurso, mas seu verdadeiro objetivo é monitorar as ações dos usuários para criar perfis de consumo precisos; e, com isso, otimizar algoritmos de escolha de anúncios personalizados. Todos sabem disso, e eu sabia na época, mas quis jogar o jogo perigoso da liberdade de expressão, testar os limites, até porque, ingênuo, eu não esperava o pior. Deu no que deu, e me arrependo, pois havia conversas interessantes no perfil.
Uma delas foi com o professor Adonai Santana, que é um importante físico teórico do país, e discípulo de Newton da Costa, um dos nossos maiores filósofos da ciência. Na conversa perdida, o ilustre professor (que durante a Pândemia escreveu um esclarecedor guia de Matemática) disse que o meu perfil era um dos mais divertidos, e que comentara a meu respeito com sua esposa.
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John Ramalho: um caso psiquiátrico. |
Outro que disse coisa semelhante foi o meu mestre e amigo Paulo Cesar Santos. Programador, físico, músico e professor de Ciência Política da UFF, nas palavras dele o meu (antigo) perfil faria muito sucesso se o público geral fosse
mais inteligente (disse isso ou algo parecido com isso). Era, de fato, um
perfil bastante irreverente. Meio tresloucado, as vezes de um humor pitoresco, geralmente
maligno, anti-humanista, misantrópico, apaixonadamente anti-sionista, muito politicamente incorreto e as vezes
de uma paranoia quase delirante, palatável apenas às mais altas
mentes. Prova disso é que até mesmo a Natália Sulman, essa modesta musa maior do olavismo, chegou a curtir e comentar
uma minha humilde publicação.
Mas o arauto maior, o grande entusiasta das Más Letras Ramalhescas, aquele que me conduziu ao Olimpo dos Intelectuais e Musas Letradas do Facebook, foi, certamente, o indefectível Samuel Fernando. Biólogo, neurocientista e polímata paulista que, por algum período, engajou-se no mais elevado ativismo cultural que a comunidade letrada da internet tupiniquim já testemunhou.
O perfil do Samuel Fernando – “Samuca” para os íntimos – era a Meca dos Pedantes. Todo mundo que achava que sabia muito (ou que desejava saber muito) acabava chegando lá, e, entre o deslumbramento e a inveja, descobria que o Samuel sabia mais; muito, muito mais.
No que ele postava, e sobre o que ele postava, comentavam físicos, matemáticos, filósofos, biólogos, autistas com hiperfoco em ciências, altos QIs, professores, psiquiatras, psicólogos, neuropesquisadores, literatos, marxistas, olavetes, engenheiros, programadores; gente de todo o Brasil e de fora dele também. Era uma verdadeira utopia de gente articulada, que falava coisas com sentido e com algum (ou muito) conhecimento. E o Samuel, para o meu espanto e prazer, compartilhava, vez ou outra, algumas das minhas postagens. Logo pessoas começaram a me adicionar. Mulheres, inclusive. Era bom. Foi legal. Mas acabou. E acabou mal: com meu perfil excluído.
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Diagnóstico rápido: "ele é doido". |
Lembro carinhosamente desse período, não apenas por minha pequena popularidade de subcelebridade letrada de alto nicho, mas principalmente pelos amigos que fiz, as pessoas legais, divertidas e inteligentes que conheci.
Gente como o querido Mateus Marcuzzo, engenheiro de software brasiliense e leitor filosófico com um coração nobre e ético, alguém cuja sensibilidade humanista exerce sobre mim um inegável efeito positivo. A Maria Cristina Batoni Abdalla Ribeiro, uma das maiores físicas do país - amiga de figurões como Marcelo Gleiser. Maria tornou-se uma amiga querida, uma fonte de inspiração e de bons conselhos. Cheguei a me encontrar com ela na UnB.
Também o brilhante Stanis Lucksys, um expert em Linux que chegou a desenvolver seu próprio sistema operacional. Autodidata no que quisesse, Stan era também filósofo, músico, intelectual e um talentoso cronista. Amigo querido e cuja identificação foi grande e mútua. Stan cunhou para o nosso grupo de amigos a divertida alcunha de "Os Irresistíveis".
Enriquecia-nos a presença da Isa Murphy, apelidada “Lady Murphy”, uma goiana bela e cativante, melancolicamente solitária, falava francês, apreciava HQs, o gosto musical excelente, alma compatível, flertamos, claro.
Havia também o sempre ponderado, lúcido, filosófico e divertido Marcus Vinícius. Psicólogo erudito, Marcus vive a combater os excessos e equívocos do identitarismo progressista. Por sua prosa bela, sóbria e profunda, considero-o um dos melhores escritores e comentaristas culturais do país. Tinha o Pedro Luiz Borba, de grande pendor argumentativo e estimulante inteligência, com quem travei alguns respeitáveis debates.
E a Carol Sorokin, que namorava o Stanis, mas que eu sonhava em ter para mim, porque era brilhante, linda e amiga. Também a queridíssima Paloma Rangel, de quem eu já falei numa carinhosa crônica e de quem pretendo falar ainda mais em outras. E não posso esquecer da doutora Ana, uma médica autista fascinante, com ouvido absoluto, inteligentíssima, a quem eu gostava de confundir com contradições, ironias e afetações de insanidade. Ela, a bela doutora de olhos hipnotizantes, fazendo o corolário de nossa divertida interação, proferiu a que talvez seja a melhor descrição que já fizeram deste blogueiro. Além desses amigos, havia outros cujo contato era menos frequente, mas de inegável enriquecimento mútuo.
Richard Nixon sorri no inferno..
Compartilho aqui as palavras da doutora Ana, pois até hoje me deliciam e divertem. Disse ela uma frase que, por seu poder de síntese, deverá constar nos comentários dos meus críticos futuros: “John Ramalho é para mentes privilegiadas”.
***
Abaixo, publico um inesquecível presente da Carol Sorokin. Gaúcha e psicóloga formada pela USP, a Carol era também enxadrista, poliglota, musicista e escritora. Sua aparência era tão sublime que ela evitava as fotos. De fato, Carol era praticamente uma sósia da Natalie Portman.
Lembro dela mais pelas ótimas conversas madrugada afora, pela mente afiada e pela foto peculiar do perfil, que mostrava apenas dois pezinhos envoltos em meias de lã vermelha. Mas incluo aqui o fato da sua beleza, que era notável, e que ninguém poderia negar, ou esquecer. Nunca falei disso com ela, nem sequer um elogio, e conto a vocês apenas porque é verdade e ajuda a dimensionar as muitas qualidades dessa moça impressionante. Quando ela cismou de homenagear as pessoas que lhe eram queridas, fui um dos contemplados, e ganhei dela um tocante discurso:
O Homem Que Ri
Que as
pessoas são todas diferentes todos dizem! Todos parecem ter decorado isto como
se fosse a tabuada do um, mas na prática pouca gente compreende o significado
dessa afirmação. Que existem problemas cuja a solução está fora do nosso
alcance, seja na vida pessoal, ou em termos científicos, isso já é algo que nem
todos sabem.
Ele sabe
tudo isto! Ele manja de todas as coisas que não importam para quase ninguém,
mas que na verdade são as coisas que mais importam para quem não é ninguém, é
muito alguém!
E eu
converso com ele e vivo elogiando terceiros e ele talvez não saiba que também
falo dele pelas costas. Todas as suas qualidades! Mas só depois de minuciar
cada mísero defeito, claro...
O que faz
ele especial é que não é vaidoso, soberbo nem invejoso, é um romancista,
filosofista, cronista, psicologista e até letrista, em crise com seu próprio
lado romântico, que ele desesperadamente tenta esconder e não consegue. Mas nem
todos percebem, só nós, os outros românticos. Pois ele é um personagem de um
livro do Victor Hugo com ideias do século XXIII.
Assim, ele
é bem humorado e carinhoso com as palavras. Com as palavras! Não
necessariamente com quem ele as dirige. Tem um ar sedutor, dispendido para com
as meninas inocentes em fóruns de literatura e filosofia, e é do tipo que
escreve cartas e não envia. Depois, ainda reescreve para não reenviar!
Tem um
carisma incomparável e não há quem não fique bravo com tamanhas bobagens
inteligentes que ele fala. O carisma dele consiste em ser belo e imagético, mas
só até certo ponto e até certa hora, depois ele muda de ideia em 180 graus e,
num segundo, já é pela sua voz de locutor de radionovela da extinta Tupi.
E isto tudo
é só um tiquinho, pois eu não conheço ele tão bem quanto eu gostaria, mas é uma
brincadera com muito fundo de verdade, porque ele é, e todos sabem disso, uma
pessoa excepcional, no melhor sentido. Em nada eu menti e espero sempre
conhecer mais dele.
E como eu
estou escrevendo essa série e disse que ia incluir algumas pessoas, hoje é o
meu homenageado. De coração!
John, meu
querido, é uma felicidade saber que a internet e as pessoas em comum que temos
afinidades proporcionaram que eu pudesse lhe conhecer. Você é um amigo, quero
que você considere-se assim, como se nos conhecêssemos há tempos e vidas. Você
é especial, tem uma mente e um coração especial que trabalham em plena sintonia
entre si e com os outros.
John Ramalho é mais ou menos isto tudo, mais mais do que menos.
***
E eu respondi:
Sempre me perguntei se, numa amizade, é possível fugir à pieguice.
Sempre concluí, indignado, que não. A coisa é
inevitável: quando temos amigos, em algum momento seremos obrigados a
demonstrar afeto. Pois não tendo ânimo para pieguices e demonstrações de afeto,
decidi, por bem, não ter amigos. E assim matei dois coelhos numa cajadada só.
Ou, ao menos, tentei.
Curiosamente, como em tudo o mais na vida, também nisso eu fracassei. Não só
não consegui não ter amigos, como também não consegui não me afeiçoar a eles.
Coitados. Pobres coitados dos meus amigos. Coitados, porque meu amor é como um
vírus sorrateiro: intoxica e faz adoecer. Por isso sempre aviso: não ande com o
John, não converse com o John, não dê ideia para o John. O John é perigoso. Ele
pode te fazer pensar. Ele pode te fazer duvidar. Ele pode te ferir, te fazer
desistir ou te fazer tentar. E pior de tudo, ele pode te fazer acreditar. E
nunca, nunquinha, jamais, você irá entender o John, porque ele é tão etéreo
quanto as ideias que professa e tão verdadeiro quanto o éter que os físicos
teorizaram no século XIX.
O John é como o átomo: é divisível e formado mais por vazio que por matéria.
Ele é um nada que existe. John Ramalho é alguma coisa como um fantasma. Sua mãe
sempre lhe disse que, em decorrência de dificuldades pulmonares que teve após o
nascimento, ele "nasceu sem respirar" e, portanto, "nasceu
praticamente morto".
Como vocês
sabem, não é todo mundo que nasce praticamente morto. A maioria, segundo
consta, nasce praticamente vivo. John Ramalho, portanto, é uma raridade. É um
zumbi. Nasceu praticamente morto e viveu ainda mais morto. Sobre o Fernando
Sabino dizem que nasceu homem e morreu menino. Sobre o John Ramalho dirão que
nasceu morrendo e viveu a morte.
Seja como for, apesar dos avisos, há sempre algum tolo, ou tola, que não
escuta. E lá vai, desprevenido ou desprevenida, fazer o pacto com o Fantasma,
com o Zumbi, com a Besta. E acaba descobrindo que o Diabo, apesar de feio, é
menos feio do que parece.
Há gente nesse mundo que tem o coração tão grande e tão generoso que consegue
apaziguar mesmo aqueles que estão destinados ao inferno.
Você é uma dessas pessoas, Carol Sorokin.
Agradeço a amizade, a paciência, a boa prosa e as palavras, tão belas e
divertidas, e que foram muito mais gentis do que a verdade. Não que tenhas
feito mal, afinal, pelos amigos, sempre vale a pena mentir.
A Isa se foi e me deixou cá no peito um vazio. Um sentimento de trouxa. Mas
quer saber? A Isa era legal, mas ela que se foda. Se ela era legal, você é
muito mais.
***
Apesar da boa amizade e do afeto verdadeiro entre nós, pouco tempo depois de escrever isso, Carol desapareceu da minha vida. Sei bem porquê, e não posso dizer que não havia motivo, já que não foi só comigo. Mas ainda não sei se perdoo. Talvez a homenagem fosse a sua forma de despedida...
Fato astrológico curioso é que Carol fazia aniversário apenas um dia antes de mim. Era virginiana. Na verdade: eram; tanto ela quanto a Isa. Mas para a Lady Murphy eu nunca perguntei o dia do aniversário. Ao descobrir que a Isa era virginiana eu soube imediatamente da atração fatal que nos acometeria. Caso descobrisse que ela fazia aniversário no mesmo dia que eu, tal coisa teria um efeito profundo em minha mente, gerando uma ansiedade mística que eu preferia evitar.
Antes do sumiço da Carol, eu e Isa nos afastamos, não por brigas ou rancores, mas por contingências da vida que se colocaram entre nós. Ou, talvez, por conta da minha covardia afetiva; a constante fuga de tudo o que pode me levar a uma grande paixão.
Não foram elas as primeiras moças virginianas de quem eu fui próximo, nem serão as últimas. Na verdade essa tem sido uma ocorrência tão peculiar e recorrente em minha vida que mudou minhas antigas ideias sobre a Astrologia (coisa sobre a qual devo escrever noutra ocasião).
***
Além de mim, e dos amigos já citados, há outra testemunha. O amigo Maycon Antônio, um jovem universitário com boa ambição intelectual, estudante da UFPR e leitor deste blog. Maycon frequentava o meu perfil e lá interagiu com essas pessoas, presenciando muitos dos debates e episódios divertidos.
Registro tudo isso, pois aconteceu; e é bom que saibam que aconteceu. Resta a consciência de que, usando adequadamente a internet, esses encontros de pessoas afins, e de boas confrarias, acontecem. São as nossas pequenas utopias virtuais. Encontros que seriam muito difíceis de acontecer na realidade, mas são possíveis na web.
Deixo, enfim, calorosos abraços aos meus amigos (e beijos e abraços às amigas). Que esta webcrônica sirva como testemunho do meu afeto aos que ficaram e aos que sumiram, onde quer que estejam. Por mim jamais serão esquecidos.
25/05/24
Amigos como o Hugo Motta
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Foto deste cronista com o mestre Hugo Motta. Tirada, talvez, em 2018 |
Certa vez o Hugo Motta, depois de perguntar como eu estava, disse que pretendia avaliar-se através da comparação aos cinco amigos mais próximos - uma brincadeira, claro. Fiquei envaidecido pela estima do Hugo, que é, eu preciso dizer, um grande sujeito. E já explico que não o meço grande apenas pela inteligência, que é enorme, nem pelo fato de ser meu amigo. Digo tal coisa apenas porque, conhecendo-o, não poderia dizer outra.
Somos amigos há mais de uma década e, coisa curiosa, encontrei-me pessoalmente com o Hugo, no máximo, umas quatro vezes na vida. Foi durante uma conversa literária com o Lucas Lopes que o conheci. Viajando de ônibus, eu contava ao Lucas minhas impressões de leitura de A Metamorfose, de Kafka, e expressava, com ares professorais, uma intepretação sociológica mequetrefe lida na internet. Lucas ouvia atenciosamente. Ao lado dele, o Hugo Motta, que eu nunca tinha visto na vida, ouvia tudo e me olhava fixamente.
Quando Hugo finalmente entrou na conversa, eu já tinha deduzido que ele, na certa, conhecia o Lucas. Muitos anos depois, Hugo confessaria: ouvira-me falar "uma besteira enorme" e teve de intervir. Dei risada. Ainda naquele dia do ônibus, quando ele se meteu na conversa de dois desconhecidos, eu notei nele duas características: era estranho e muito bem informado. Justamente o tipo de gente que me interessava. Memorizei seu nome. Depois solicitei sua amizade na rede social mais usada na época. Quis saber quem era aquele esquisitão intelectualizado que ousara me corrigir e que, aparentemente, morava no mesmo Cafundó do Judas que eu. Quando Hugo Motta desceu do ônibus passou-se entre eu e Lucas o seguinte diálogo:
- Rapaz inteligente esse aí. É seu amigo, né?
- Não, cara. Não o conheço. Não é seu amigo não?
- Nunca o tinha visto antes.
E caímos no riso, surpresos.
Assim eu conheci um dos sujeitos mais inteligentes e intelectualmente honestos que já tive notícia. Alguém que é bom exemplo do que eu chamo de "intelectual doméstico". De lá pra cá, eu muito me beneficiei da caridade intelectual do Hugo, que sempre me concedeu referências preciosas. Foi ele quem trouxe Wittegenstein e a filosofia moderna pra o meu mundinho que, até então, restringia-se a referências filosóficas do romantismo e do iluminismo (Rosseau, Locke, Voltaire). Também ele, Hugo Motta, emprestou-me livros que foram da maior importância.
Nossa amizade ancorou-se, sempre, no fluxo de ideias. Nas conversas e debates dos temas da vida intelectual, política, espiritual, social, cultural, esotérica. As leituras, as opiniões dos filósofos, dos intelectuais, dos comentadores, dos críticos. Os casos políticos e culturais do momento. As polêmicas, as piadas, as mulheres. E, claro, o gosto comum pelos fatos absurdos, hediondos, improváveis. (Hugo é exímio colecionador de atos questionáveis das criaturas humanas e de fatos peculiares do universo).
A curiosidade intelectual generalista que havia em mim eu encontrei também nele, porém em versão refinada, erudita, poliglota. Estabeleci com ele a saudável conexão mental e afetiva que ao longo da vida eu reproduziria com outros bons amigos extraídos das redes sociais. E foi por meio deles que tive acesso a inteligências e raciocínios que, sozinho, eu nunca alcançaria. A amizade com o Hugo deu-me acesso a gênios como o Manuel Doria, a quem eu pude fazer algumas perguntas, obtendo inesquecíveis respostas.
Acho engraçado quando gente que não me conhece diz, ou imagina, que eu me acho muito inteligente. Como é que eu vou me achar inteligente quando a minha referência de inteligência é gente como o Hugo Motta e o Manuel Doria? E isso para não falar dos amigos programadores, cientistas, escritores, aventureiros. Eu sou tão confessional na contemplação da minha ignorância que declaro-me agnóstico, e, inclusive, já escrevi sobre a aventura que é viver tentando diminuir minha burrice cósmica.
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Entre os livros e o xadrez, com o amigo Hugo Motta (que não queria aparecer). |
Mas eu falava do meu amigo Hugo Motta. Escrevo sobre ele, e escreverei sobre outros amigos intelectuais, para dizer e reforçar uma ideia, um segredo que não deveria ser tão secreto assim. Ao leitor destas palavras, peço que se lembre disto: muito do que se tira de bom da vida intelectual, e quase tudo o que se aprende de relevante, vem do aprendizado informal, aquele extraído na convivência com amigos e contatos que são muito mais inteligentes e culturalmente experientes do que nós. Até os livros que nos farão a cabeça, os primeiros, aqueles de formação, dependem da indicação desses mestres informais.
O próprio Hugo, quando perguntei a origem de sua inteligência e erudição, disse-me que estudava Direito, mas era para não morrer de fome; pois quase tudo o que ele sabia de relevante tinha aprendido na internet, com amigos, artigos, sites e livros. Mais tarde, quando o conheci melhor, pude descontruir um pouco dessa visão romântica que ele tinha de si mesmo. Não que ela fosse falsa, mas, seguramente, não era explicação suficiente. Havia duas outras chaves que ele não havia mencionado: sua fluência no inglês e sua condição de filho da classe média. Mas isso, a relação do inglês e da classe média com a vida intelectual, eu comentarei em outra ocasião.
Ao constatar a grandeza de amigos como o Hugo Motta, A Ruiva e tantos outros, fico satisfeito e envaidecido. Julgo por bem celebrá-los. Trazem-me esperança. É preciso que se diga: há grandes sujeitos neste país, muitos deles anônimos, não reconhecidos, esquecidos. Sei disso muito bem, pois conheço vários. Gente como o meu amigo Hugo, intelectual que morava em periferia e andava de ônibus. Gente assim existe. Mas, notem vocês, eu só pude chegar a ele porque conversava sobre literatura com um amigo culto. Semelhante atrai semelhante. Estivesse em roda de imbecis, idiotas, superficiais, aquela conversa não teria acontecido e eu jamais teria conhecido o Hugo. Foi sorte, mas foi aquela sorte que só acontece quando o contexto e o círculo social é favorável.
A lição é esta: não tenha demasiado medo de errar em seus comentários. Com sorte haverá, próximo, um sábio caridoso o suficiente para corrigi-lo. É claro que você sentirá vergonha depois. Mas a melhor hora para errar nas opiniões e interpretações é enquanto você é jovem. Admita ser corrigido por alguém que sabe mais. Ou, melhor ainda: queira, deseje ardentemente, ser corrigido por alguém que sabe muito mais que você; procure quem o possa corrigir. Pense na sua inteligência como um diamante bruto que a inteligência dos seus mestres ajudará a lapidar. Atue assim e naturalmente você ficará mais refinado - os outros hão de notar e te acusar o fato. Ficando mais refinado você será capaz de autolapidar-se; sem desprezar, claro, a boa e velha ajuda dos mestres.
Mostrei ao Hugo a minha melhor crônica. Ele, leitor de Umberto Eco e Roberto Bolano, honesto e impiedoso, deu nota 6. Caridoso, indicou-me alguns autores. "Imite-os para aprimorar seu estilo", ele disse. Grande Hugo! Bom e fiel amigo! Há mais de uma década atura-me e ilustra-me.
Você, leitor jovem, trate de fazer bons amigos. Cultive amigos como o Hugo Motta. Ao ver-se beneficiada e enriquecida, a sua inteligência agradecerá. Acredite em mim, tenho outros bons amigos como Hugo. Sei bem o que digo.
03/03/24
Contra Uniformes Ridículos
Hoje o técnico de redes veio em minha casa. Estava uniformizado. Verdadeiro ultraje estético era o uniforme, terrível a desarmonia entre as cores. Fruto provável do sadismo dos ricos em humilhar os pobres. Ou, talvez, uma demanda técnica; a combinação aberrante de cores serviria para torna-lo mais visível. Na certa, só a junção desses dois motivos explicava o uniforme. Humilhar e fazer ver a humilhação.