— Introdução —
Não é fácil lidar com a realidade, especialmente quando ela nos obriga a reconhecer que nossa posição não é tão lisonjeira quanto gostaríamos.
Só vem a maturidade quando confrontamos nossas vaidades...
Parte 1 _ Ambiguidade
Sempre me vi de formas diversas e contraditórias ao longo da vida. Tenho meu lado cético, mas também meu lado místico, sou minimamente intelectualizado, mas não chego a ser acadêmico ou cientista; amo ensinar e aprender, mas detesto escola e tenho pavor da carreira de professor; amo as mulheres, mas, desde que uma tentou me atropelar, morro de medo delas.
Por ser uma criatura essencialmente ambígua, fico perplexo quando me deparo com aquelas pessoas com posturas firmes, confiantes, repletas de crenças inabaláveis. Caramba! Como conseguem?
Parte 2 _ Matrix
Nunca fui assim, tenho tanta inveja quanto estranhamento em relação a esse povo. Há certos dias em que acordo, olho para o Merlin (meu gato preto ) e lhe acosso:
“ Confesse, Merlin. Esse mundo é a matrix e você não passa de um dèjá-vu fofinho, pode dizer”.
Então ele dá um miado, como que debochando, e fica me encarando com aqueles olhos amarelos, o que eu evidentemente interpreto como uma confirmação.
“Rá! Eu sabia, esse mundo é a matrix!”
Houve o dia em que fiquei tão fissurado nessa ideia que cheguei a responder, no Quora, explicando um pouco sobre a matrix.
Matrix, de certa forma, pode ser interpretado como a grande metáfora cinematográfica do nosso tempo para as ilusões que fazemos do mundo e de nós mesmos. Ilusões que, via de regra, costumam ser muito importantes para a manutenção da falsa autoimagem que gostamos de construir. Convenientemente falsa, porque a realidade é sempre menos glamorosa que a ficção. Belas mulheres, por exemplo, não soltam peidos na ficção, mas os soltam na realidade (e infelizmente eles não são perfumados).
Mas mesmo que estejamos fadados a nos iludir, felizmente ou infelizmente, os mais autocríticos também estão fadados a perceber e ter que encarar as próprias ilusões. Foi justamente o que aconteceu comigo no dia em que percebi que, longe de ser escritor, eu era mero blogueiro.
Parte 3 _ Pau No C# do Leitor
Há gente que escreve por hobby e sem nenhuma pretensão literária, mas esse não é exatamente o meu caso. Sempre fui polêmico e pretensioso, para o bem ou para o mal. Kafka dizia que um texto deve ser como um soco no estômago. Em outras palavras, deve ser algo que cause alguma reação e impacto no leitor. Não basta dizer uma verdade, as vezes é preciso dizê-la de forma desagradável, e até mesmo leviana. O leitor hoje em dia anda tão entorpecido com literatura best-seller idiota que já perdeu o hábito de refletir, ou mesmo de perceber o quanto a reflexão é importante.
Quando um escritor percebe isso, o dever dele é provocar os leitores, e o escritor pode realizar essa missão dizendo coisas importantes novas e inimagináveis ou dizendo coisas importantes antigas de um jeito novo e inusitado. O importante é incomodar o leitor, não deixá-lo confortável; afinal, um bom leitor é sempre um leitor incomodado, daquele tipo que te enche na caixa de mensagens ou te para na rua para falar alguma coisa daquele seu último texto, nem que seja para meter o malho. (E os bons escritores acham especialmente divertido quando os leitores metem o malho com propriedade).
Parte 4 _ Vaidade Besta
Nesse quesito, provocar a inteligência alheia, provocar reações, em minha recém carreira literária, eu tive algum sucesso, considerável até. Talvez mais sucesso do que um escritor iniciante e metido deveria ter. Tive a sorte de atrair leitores, alguns admiradores, alguns incentivadores e até um certo renome em alguns ambientes. Não quero falar em números, mas imagine ir dormir sendo um blogueiro absolutamente desconhecido e acordar sendo um nome relativamente conhecido numa das maiores plataformas para escritores online.
Foi mais ou menos o que me aconteceu. Um dia eu percebi que minhas iniciativas literárias estavam dando frutos, monetários, inclusive. Não era muita coisa, mas para alguém que achava que iria demorar ao menos uns vinte anos, era muita coisa. E foi então que comecei a querer introduzir um elemento de glamur na coisa. Mas, felizmente, em minha defesa, eu posso culpar uma mulher. Na verdade, duas.
Parte 5_ Golpista Afetivo
Tudo começou numa festa safada numa capital federal. Daquelas festas que as pessoas vão para fazer coisas inconfessáveis com pessoas que nunca viram na vida. E lá estava eu, no auge dos meus vinte e cinco, em minha fase junkie-intelectual, experimentando os prazeres da vida boêmia e da sexualidade desregrada. Conversava com duas loiras lindas, alunas de medicina, e preparava o bote. Conversa vai, conversa vem, uma delas pergunta o que eu faço.
Tecnicamente, na época, eu era um vagabundo profissional, blogueiro, golpista afetivo e psiconauta intelectualizado. Mas eu não respondi com a verdade. O diabo sussurrou a poderosa palavra em meus ouvidos: escritor. Fiquei excitado com aquela possibilidade, me apresentar como um homem de letras, um profissional da palavra, não um iniciante. Nenhuma mulher fica excitada com iniciantes. Não, eu tinha que posar de profissional, de garanhudo literato, e tinha de fazer isso porque era cool, divertido e interessante. E foi o que eu fiz.
Parte 6_ Pacto Com o Tinhoso
Deu certo. E eu peguei as louras. As duas. Assim o pacto com o Diabo foi consolidado. E eu não parei mais. Em qualquer canto que chegasse, dava a carimbada: “escritor”. Como o meu meio social não é o de pessoas letradas (no Brasil nem as classes letradas são realmente letradas), o impacto era fulminante. Todos os olhares se voltavam para mim, todas as atenções. E logo vinham as sugestões: “bem que você poderia escrever um livro sobre isso, ou sobre aquilo”.
Não vou mentir: foi bastante divertido. Mas, para ser franco, algo, em meu íntimo, me incomodava. Pelo simples fato de que, embora eu escreva, ainda não sou um escritor. Nem tenho livro publicado ainda. Sou apenas um blogueiro intelectualizado que conseguiu cativar algum público em alguns ambientes na internet. Blogueiro, futuro escritor. Sou um quase, uma promessa. Se eu terminar meu livro, e publicar, viro escritor. Estreante. Que não é lá grande coisa, mas já é um começo.
Parte 7 _ Blogueiro
“Ué, John, mas blogueiro não é escritor?”
Alguns são, outros não. A maioria não é. Eu não sou. Se for pegar o significado mecânico do termo, então até quem escreve bula de remédio é escritor, pois está escrevendo. Mas se considerarmos o aspecto artístico ou cultural da coisa, ou o caráter intelectual, veremos que nem todo mundo que escreve é, de fato, escritor.
Houve o dia em que percebi isso. Foi o dia em que eu saí da matrix. Foi quando finalmente percebi que só poderia virar um escritor quando reconhecesse que eu sou, por hora, um blogueiro. Um blogueiro interessante e promissor? Talvez. Mas preciso melhorar. Melhorar em muita coisa.
E, claro, preciso terminar o livro que comecei.
Até foi legal fingir que eu era escritor, mas resolvi parar.
Parte 8 _ Escritor Safadinho
É hora de começar a tentar ser um, de fato.
Afinal, ainda há muitas louras, e morenas, e negras, para quem quero me apresentar, e conceder alguns íntimos autógrafos. Se é que vocês me entendem…
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