26/01/22

Nick Cave, Um Ateu Espiritual

 

Nos anos 90, depois de se apaixonar por uma brasileira, Nick Cave abandonou sua rotina de turnês internacionais e foi viver uma vidinha quase pacata  em  São Paulo.

Lá ele gravou um álbum chamado "The Good Son". Logo na primeira faixa, Nick homenageia uma música que eu ouvi centenas de vezes na igreja, mas que nunca vi ser executada de um jeito tão melodioso e tocante.

Acho fascinante o modo como Nick e outros artistas que são ateus/agnósticos conseguem expressar uma espiritualidade muito mais pura e sincera do que muita gente que é nominalmente religiosa.

Nick Cave pode até ser ateu, mas uma coisa é inegável:  ele tem alma.

25/01/22

A Morte do Guru



Morreu o véio lôco. Pela erudição e erística, era interessante como ensaísta heterodoxo. Ao reviver o anticomunismo mais caricato e tacanho, digno de um Carlos Lacerda, o Guru da Virgínia fez mal danado ao jornalismo político brasileiro. Sionista declarado, Olavo chegou a dizer que muitos judeus ricos estavam envolvidos com Nova Ordem Mundial, e denunciou o infame George Soros, o que surpreende.
Certa vez, foi condescendente com o Integralismo, dizendo que ter pertencido ao movimento não macula o passado de ninguém, opinião que lhe rendeu a ridícula acusação de antissemitismo, feita pelo ridículo Intercept.
Em artigo para o seu excelente blog Matemática e Sociedade, o físico Adonai Sant'Anna, comentando uma entrevista antiga do ensaísta, escreveu que Olavo conseguia misturar uma descrição precisa e inteligente da situação educacional brasileira com opiniões problemáticas e nonsense.
De gênio desequilibrado à doido varrido, de místico iluminado à agente da CIA, as opiniões sobre Olavo são tantas e tão diversas que só confirmam a complexidade do sujeito. Erudito de personalidade cativante e belicosa, tido por alguns como líder de seita, Olavo foi uma espécie de Chacrinha intelectual da Nova Direita: comandou um programa bizarro que influenciou grandes setores da cultura brasileira.
Essencialmente um anarquista místico que se fez conservador, Olavo formou-se na tradição intelectual do entre guerras - que incluia pensadores como Arthur Koestler, Curzio Malaparte, Rene Guenon e Aldous Huxley (foi provavelmente à partir de Huxley que chegou em Guenon) - e na escola do Realismo Fantástico dos franceses Jacques Berguier e Louis Pauwels, veiculado pela famosa revista Planète.
Revista que, aliás, teve uma versão nacional - "Planeta" - para a qual Olavo, ao lado de Paulo Coelho, chegou a colaborar. Tenho a edição que uma ex-amiga furtou da Biblioteca da UnB para me presentear- sabia ela que eu era fã da revista e leitor de Olavo -, nessa edição há artigo do ex-astrólogo sobre Cristianismo Esotérico, onde ele faz seus primeiros comentários públicos da obra de René Guenon e, de passagem, menciona que os conhecimentos de Dante Alighieri sobre alquimia árabe foram expressos na Divina Comédia.
Sempre atraído pelo bizarro e pelo heterodoxo, ao longo dos anos recorri à erudição arcana de Olavo e me vi seduzido por seu carisma galhofeiro e depravado. Mas não tardei a ver - certamente com a ajuda de amigos, como o Marlos Salustiano e o Hugo Motta - que a influência do homem era nefasta.
Uma vez, em casa de amigos hipsters, feministos e desconstruídos, citei o nome maldito. Os presentes emudeceram, o ar tornou-se aspero, o chão tremeu, nuvens negras subiram aos ceus, faltou o teto cair: e então, para minha surpresa e espanto, os presentes me olharam como se eu acabasse de confessar o estupro de minha genitora.
Noutra ocasião, na Baratos da Ribeiro (o tradicional sebo alternativo do Rio de Janeiro), em roda de intelectuais mesmo sem ser um deles, descobri que o Maurício Gouveia, o icônico dono da loja, também havia lido e criticado os livros do guru. Conversamos a respeito das reações exageradas à obra do Olavo, e os méritos e deméritos da mesma. Logo alguns presentes na roda fizeram aquela carinha de nojo. "Ah, não. Olavo não!" alguém bradou.
É sempre assim, o que talvez seja compreensível. Todas as opiniões sobre Olavo têm algum mérito, porque o homem era tudo isso ao mesmo tempo. Não era um todo coerente. Era uma dessas misturas impossíveis que só o Brasil é capaz de fabricar.
Com a morte de Olavo e o favoritismo de Lula na disputa eleitoral deste ano a Nova Direita perde força. O Olavismo era um de seus pilares. Resistirá o Olavismo sem Olavo de Carvalho? Em carisma e erudição, não há nenhum discípulo que se equipare ao mestre. O que tem mais chances é Ítalo Marsili, mas este peca pela arrogância, sempre ostentando seu vínculo a uma família de passado aristocrático, seu público é menor e em grande parte vinha pelo Olavo. Quanto aos filhos do guru, o mais inteligente é Luiz Gonzaga de Carvalho Neto (o "Gugu"), mas este é bem menos político e mais esotérico; e é muçulmano, não católico.
De minha parte, creio que o Olavismo não morrerá com Olavo. O que é vil e equívoco tende a perdurar entre os homens. O mais provavel é que continuaremos ouvindo as ideias estranhas de Olavo, mas através de outras faces e vozes. O exército de papagaios olavetes fará a única coisa que sabe fazer: repetirá Olavo. Mas sem o charme e o estranho carisma do mestre.
Para o bem ou para o mal, Olavo deixa este mundo para entrar na História. Foi o homem que ajudou a enlouquecer um Brasil que já não era muito são. Ajudou a eleger o demente retardado que usurpa a faixa presidencial e presta continência à bandeira estadunidense.
Olavo de Carvalho foi um homem carismático, inteligente, manipulador e perigoso. Que sua morte inaugure uma era de decreptude aos movimentos que ele ajudou a alimentar.

19/01/22

Teoria da Solidão Positiva

 

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Ludwing Wittgenstein, que deliberadamente se isolou para realizar um dos trabalhos filosóficos mais impactantes do século XX.

Os relacionamentos interpessoais, especificamente aqueles que não se baseiam exclusivamente no pragmatismo das necessidades cotidianas, só valem à pena quando o desenvolvimento individual — intelectual, moral, emocional — dos membros atinge maiores alturas do que ocorreria com os indivíduos isoladamente.

Se a companhia de um ser humano x não me acrescenta uma probabilidade de evolução maior do que a minha própria companhia, então a solidão (que é ter apenas a minha própria companhia), será mais produtiva evolutivamente do que a companhia de x.

Esse é um raciocínio simples que explica por que ficar sozinho pode ser muito mais produtivo do que se relacionar com uma determinada pessoa. Subindo um degrau, penso que o mesmo raciocínio pode ser aplicado a grupos sociais.

O que há de interessante aqui é a informação (talvez nova para alguns) de que, em alguns contextos,  ficar sozinho produz uma evolução maior do que participar de grupos.

Daí que no atual status quo do mundo em que vivemos, ser solitário, para algumas pessoas, tem mais a ver com a baixa oferta de indivíduos notáveis, aqueles indivíduos que podem oferecer contribuições significativas ao aperfeiçoamento do homem, do que com algum pretenso ódio as pessoas, misantropia ou alguma outra psicopatologia.

Em síntese; algumas pessoas precisam ficar sozinhas pois, no meio em que vivem, essa é a maneira mais eficiente de evoluírem.


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Nota do editor: o texto acima  foi escrito em 2017 e originalmente publicado no Medium.

12/01/22

Estoicismo e Política

 

Busco de Marco Aurélio, o Imperador Estóico

Se há um juízo que considero verdadeiro é a noção de que, neste mundo em que vivemos, TODAS as coisas boas - o amor, a amizade, a lei, a honra, a honestidade, a justiça, a moral, etc - são extremamente frágeis e demandam de nós um esforço colossal para serem mantidas sem perderem a essência.

A lei da tendência à entropia parece não se aplicar apenas a  sistemas físicos, mas também à realidade ontológica das relações e construções humanas: tudo que é bom é fácil de ser perdido, roubado, arruinado. O  mal, por sua vez, nos é dado naturalmente - não é a barbárie o estado natural do "sapiens-sapiens"?
 
É aí que reside, penso, a grande força do pensamento conservador. A ideia de pecado, de tendência natural ao erro, de desconfiança da capacidade humana, torna-se um complemento essencial ao liberalismo iluminista. Pode-se dizer que o conservador será sempre mais realista que o liberal, enquanto o liberal será sempre mais realista que o socialista.

Diante das loucuras e incongruências humanas o socialista irá se deprimir e propor 'um outro socialismo' e 'um outro homem', o liberal vacilará em sua crença no progresso e na ciência, já o conservador, estóico, se limitará a dizer o seu ponderado  "eu avisei".



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Nota do editor: o comentário acima  foi escrito em 2015 e originalmente publicado no Faceboook.

05/01/22

Como Não Fazer Amigos, Não Pegar Gatinhas e Não Influenciar Pessoas


Como alguns adolescentes, aos treze anos eu era inseguro e assombrado pela interação social.  Mas com o terrível incoveniente de ser nerd: adorava quadrinhos de super-herois musculosos, revistas, programas de animes com japinhas gostosas, desenhos, filmes da Sessão da Tarde, do Cinema em Casa, Cine Band Privê e, muitas, muitas punhetas pela madrugada afora.

Tudo isso coisas que não me aproximavam nem das gatinhas nem da estima alheia.

 A stranger in a strange land.

A moda na época era fazer cursinhos, e o Inglês era a bola da vez. Sorteado, caí de paraquedas no cursinho gratuito do município. Eu detestava o idioma gringo, principalmente por conta de dificuldades na pronúncia. ‘Strawberry’ — Oh, céus! — como querem que eu fale esse treco? A possibilidade de ser zoado por mais uma inadequação me era quase tão assustadora quanto o apocalipse cristão. Pouco importava. Quem mandava em casa era o coroa. Lembram da ‘vondade geral’ de Rosseau? Era a vontade do meu pai.

No primeiro dia de aula, várias mulheres na turma. A maioria mais velhas que eu, o que achava menos pior. Na cadeira ao lado, Fernando, o garanhão da minha rua (‘Fernandinho’ para as meninas que, como a minha irmã, caiam babando por ele). Era meu completo antípoda: falso cristão, falso ‘cara legal’, sucesso com as mulheres, muito prestígio social (sei disso por que depois viramos amigos). E eu lá, ‘o carinha esquisito’, torcendo pra aula acabar antes que fizesse alguma vergonha.Mas quem disse que a vida é fácil? Não dei sorte; a teacher pediu que nos apresentássemos, começando por “hi, my name is… “ e depois seguindo no idioma de Camões.

Falar em publico, e falar inglês, na frente de uma dúziza ou mais de desconhecidos, recebendo todos aqueles olhares curiosos e julgadores. Enquanto os outros falavam, eu transpirava, nervoso. “Por que senhor ? Por quê ? Não tenho sido um bom cristão ? Tudo bem, eu prometo que paro de ver putaria, prometo!” Era uma prova, pensei. Eu tinha que passar. Se quisesse ser pregador, teria que aprender a falar em público um dia. O dia chegara. Enfim, aceitei meu destino, encarando o desafio com resignação e coragem. Chegada minha vez, fui confiante. Como todos antes de mim, levantei e falei.

Mal abri a boca e, em uníssono, todos gargalharam.

Demorei alguns minutos para perceber: o nervosismo foi tanto que eu falara ‘Hau’ ao invés de ‘Hi’. Com isso, entregara-lhes precisamente o que tencionava esconder; o fato de que eu era, naquela época e circunstâncias, um completo bicho do mato, comunicando-me tal qual um selvagem.



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Nota do editor: a crônica acima  foi originalmente escrita no ano de 2015.

02/01/22

Lucas Fez Contato: Breve Nota Sobre o Meu Amigo Mais Descolado

A foto do Lucas que capturou um interessante período de nossas vidas.

Fotógrafo e mestre em historia da arte, Lucas Lopes está entre os amigos que mais invejei. Um dos meus  mais longevos camaradas, a origem de nossa amizade deu-se há muitos anos numa divertida turma de oitava série. A paixão por rock, cinema, terror e contracultura nos uniu; assim como nossa sensibilidade melancólica, ou existencialista. Veio dele o primeiro CD do System of a Down que eu ouvi na vida. Sempre gentil, Lucas emprestou-me até o discman para que eu ouvisse o cd. Era 2006 e eu o achava muito descolado por ter um discman, além disso, simpatizava com seu estilo grunge, de cabelos grandes e desgrenhados, vez ou outra declamando alguma frase triste de Kurt Cobain.

Branco, de olhos claros, volumosos cabelos negros, lábios de um vermelho incisivo, olhar sereno, corpo magro e esbelto, deve ter quase um metro e setenta e cinco de altura. Seu rosto, fino e alongado, lembra um pouco o do escritor Robert Louis Stenvenson. Sua aparência, que sugere um perfil de modelo ou ator, sempre encantou as meninas. Daí parte de minha inveja, já que era impossível vencê-lo na arte de encantar as fêmeas. E, de fato, o safado abocanhou algumas meninas com quem eu gostaria de ter ficado, incluindo a bela e badalada Miss R.... Apesar da inveja, nunca levei para o lado pessoal. Não se pode ter tudo, afinal.

Desde os tempos do ensino fundamental continuamos amigos, travando contato as vezes mais e as vezes menos. Acho curioso notar que nosso desenvolvimento pessoal ocorreu por vias contrárias. Enquanto eu tornava-me cada vez mais ressentido, antissocial e arrogante intelectualmente, Lucas tornava-se cada vez mais aberto, humilde e acessível. Enquanto eu permanecia trancado em meu quarto cultuando filósofos mortos, Lucas desbravava o mundo, cultivando as pessoas legais e artísticas que existem nele. Sempre que nos encontrávamos eu ficava admirado com a popularidade e o carisma de meu amigo, que eu percebia pela quantidade de pessoas interessantes que o cercavam. Apesar disso, na maior parte do tempo eu desprezava sua abertura social. Apesar de bom leitor, Lucas não era tão intelectualizado quanto eu - ele era um hipster, e eu um projeto de intelectual diletante - ou ao menos era o que eu pensava, e por esse raciocínio eu concluía que para ele era mais fácil socializar com não-literatos e "cult-bacaninhas". (Na época, não me passava pela cabeça que o nível intelectual não é o melhor critério para julgar as pessoas. Eu realmente achava que era.)

Lucas e eu numa foto improvisada, num momento lúdico-canábico, há oito ou nove anos.

Hoje eu sei perfeitamente bem que a abertura social é uma das melhores qualidades de meu amigo, e que isso lhe proporcionou  muitas  experiências interessantes com gente diversa. Qualidade que aprendi a admirar e invejar. 

Por vezes noto certa atmosfera de mistério em meu amigo, algo difícil de descrever... Sempre achei que ele tinha algo de melancólico, não digo depressivo, mas uma aura de solidão resignada, com certo ar de nouvelle vague, apesar de vê-lo muito mais sociável e melhor integrado. Posso estar errado, mas parece que há um sentimento nele... Algo profundo e doloroso que eu não sei o que é. Impressão que faz lembrar a frase de Cobain que ele costumava citar: "Se meus olhos mostrassem minha alma, todos, ao me verem sorrir, chorariam comigo".

Eu e Lucas vivemos algumas boas aventuras juntos (uma delas foi acampar com amigos em comum). A última vez que o vi foi no início de 2019. Como eu visitava o Rio de Janeiro, marcamos encontro na casa do Matheus Antunes, um velho amigo em comum, aproveitando a ocasião para reunir alguns membros de nossa antiga gangue juvenil, os "Pés Pretos". Foi uma divertida noite, regada a boas substâncias ilícitas, bom álcool, boa conversa, sentimentos nostálgicos e boas músicas. Infelizmente, meu contato com Lucas arrefeceu consideravelmente nos últimos tempos, em parte porque passei anos morando em outro estado (Brasília) e em parte devido a escolhas naturais que nos levaram a caminhos distintos, o imprevisível fluxo da vida. Mas a amizade continua. Quem tem um bom amigo sabe como é: o respeito e o carinho permanece mesmo quando a frequência do contato se vai.

Em fins de 2021, uma grande surpresa: Lucas, que tem redes sociais mas raramente as usa, enviou enorme texto a um de meus perfis no Facebook. Com sua prosa poética e intimista, o amigo trazia sua perplexidade diante da vida, mandava um abraço e denunciava sua saudade. Foi inesperado mas ótimo presente de fim de ano. Uma dessas boas surpresas que a vida traz, e ótima oportunidade para retomar o contato.