29/03/23

A Culpa é da Marina


Gostei muito de Dona Marilene. Seu temperamento expansivo, sorridente, transbordava afetuosidade. Devia ter lá os seus cinquenta e tantos, talvez sessenta - idade sem importância, pois que vigor, que energia, que brilho no olhar. Toda bom-humor, divertida, moleca, beijou-me o rosto fazendo trocadilho com o doce ("beijinho"); depois repetiu a galhofa em Juan, que lhe era como um neto. Eu os conhecera apenas há algumas horas. Quem diria que, sábado pela tarde, um calor daqueles, eu estaria numa festa infantil, entrosado com um roqueiro e admirando o afeto cósmico de uma avó.

A culpa, é claro, foi da Marina Lemos. Não fosse por ela eu jamais teria saído de casa. Passaria o sábado enfurnado, tentando estudar, lendo livros e ouvindo Manu Chao nos intervalos. E sim, eu percebo a ironia: John Ramalho, o eremita que gosta de Manu Chao. Logo ele, o eterno viajante e autor dos versos: "Me chamam de desaparecido/Fantasma que nunca está/Me chamam de desagradecido/Mas essa não é a verdade/Eu levo no corpo uma dor/Que não me deixa respirar/Levo no corpo um castigo/Que sempre me põe pra caminhar". John Ramalho, inconsistente, contraditório: gosta da lírica de quem viaja, mas não gosta de viajar.

Mas preciso falar dela, a culpada: Marina Lemos. Sobrinha do ex-prefeito, ex-namorada de um dos meus amigos mais eruditos e licenciada em letras-grego. A rotina de nossa amizade consiste em três constantes: 1) dar rolês aleatórios, 2) passar eras sem se ver e sem se falar e 3) se reencontrar por acaso e voltar a dar rolês aleatórios. A aleatoriedade, devo dizer, vinha toda dela. Eu talvez gostasse porque era um desafio ao meu jeito tão metódico. Com a Marina eu não sabia o que iria acontecer ou quem iríamos encontrar, o que era horrível, agonizante, mas interessante também.

Eu em casa, o telefone toca, olho e vejo que é Marina. "Ou está ligando por engano ou vai me chamar para algum rolê aleatório bem em cima da hora" pensei.

- Oi Jônatas, tem compromisso hoje à tarde? (Marina é uma das poucas pessoas no mundo que ainda me chama por meu nome de batismo. Coisa de quem me conheceu há dez anos, imagino.)

Escuto a voz de contralto dela e passo a me sentir muito importante. Vem a tentação de esnobar, dizer não, bancar o difícil. Por que sair nesse calor? Não, não vou.

- Oi, amor da minha vida. Provoco.

- O quê? Eu te enviei vídeo? Marina, sem me entender.

Não sei por que, mas com ela é sempre assim, bastam poucas palavras e um de nós já está passando raiva com o outro.

- Não, eu disse "amor da minha vida". Explico, de mau-humor.
- "Amor da minha vida"? Nossa, que infantil.
- Você acha "amor da minha vida" infantil?
- Acho.

Marina tinha essas opiniões esquisitas. No passado eu a apelidara "Luna Lovegood", por causa de sua excentricidade charmosa, como a personagem de Harry Potter. O divertido é que, antes de mim, outros amigos dela já haviam notado a semelhança e carimbado o mesmíssimo apelido. Marina: duas vezes Luna Lovegood.

- Olha, depende, Marina. Largo meus compromissos se você me convidar para algum rolê indecente.

Ela bufa, mau-humorada. Mas logo se acalma e, meio relutante, pergunta:

- Quer ir numa festa de criança comigo?
- Festa de criança? Indago, incrédulo.
- É. Ela responde.

Enchi os pulmões de ar e preparei meu sermão para dizer que não fazia nada que não fosse planejado, pensado com antecedência, premeditado, infinitesimamente calculado. Mas quando fui falar, ela me quebrou:

- Pô, é que eu tenho que ir, mas não quero ficar lá sozinha.

"Sozinha". A palavra ecoou e, de um jeito inesperado, me tocou. Marina era amiga, e amigos fazem companhia a amigos que precisam de companhia, certo? Certo, certíssimo - bonito até. E foi assim - pelo fascínio estético de cumprir meu dever como amigo - que, num sábado calorento, eu abandonei meus diligentes estudos, leituras e meu Manu Chao para dar um rolê aleatório com a Marina Lemos numa festa infantil, na casa de quem eu nunca havia visto, sem saber se seria bom ou ruim, chato ou divertido.

Para não sair no prejuízo, fiz uma condição: Marina deveria ler minha última crônica, analisá-la e me dar uma opinião sincera. Ela disse que leria na festa. Se ela diz, eu confio. Confio nos meus amigos. Tenho amigos para poder confiar em alguém.

Solícito e benevolente, eu a acompanhei até a festa. Fui esforçado: sorri para gente desconhecida, socializei, conversei, fiz piadas, conheci gente agradável e saí de lá sem cometer infanticídio, mesmo diante de tanta algazarra infantil e infernal. Fiz minha parte.

E Marina?

Marina nem leu minha crônica.

Cheguei em casa me sentindo meio idiota e um tanto irritado. Marina não cumprira o acordo, fiquei chateado. No entanto, meditando a respeito, percebi meu apego exagerado ao texto, minha volição comunal em compartilhar com amigos, ouvir deles opiniões. Antigamente a mera sugestão de precisar da atenção alheia já me soava ofensiva. Hoje, porém, reconheço a verdade: não fosse o afeto dos amigos e entes queridos, nenhuma literatura (nem mesmo esta subliteratura) me seria possível.

Mesmo assim, ao escrever esta crônica, na primeira versão, ainda colérico, pus nela um ultimo parágrafo rancoroso e um tanto ofensivo. Nele eu dizia a Marina uma crueldade; vileza grande, coisa imbecil que, sei bem, a magoaria. Foi cruel mas foi ótimo. Limpou-me a alma, exorcizou o sentimento tenebroso, deu um tom final triste e trágico. Uma beleza, e como o pessimismo está na moda, os leitores adorariam. Pena que eu não gostei. (Como sou mercenário, estou cobrando 50 reais pelo parágrafo proibido, desde que ninguém o mostre à Luna).

Marina não leu a outra crônica, mas leu esta. Deu risada, divertiu-se. Disse que Dona Marilene é mesmo incrível, que ficou feliz pela amizade que fiz com Juan, pelo meu esforço na socialização, e declarou que foi a melhor crônica que eu já escrevi na vida. Equivoca-se, claro, pois é apenas a terceira que ela lê.

Um pouquinho ainda de raiva de você, Marina. Tu é esquisita. Duas não: três, quatro, cinco vezes Luna Lovegood. Esquisita, mas amiga.

Não só pela minha raiva, mas também por esta crônica: a culpa é da Marina.

22/03/23

Um Milagre na Madrugada

Para cada homem e mulher, a vida social se mostra como uma perpétua Torre de Babel, povoada por gente de todo o tipo que, via de regra, não se entende de forma alguma. A comunicação, alma da vida social, desponta como drama absurdo no qual todos falam e ninguém se entende, porque tudo vira cacofonia e ruído, toda ideia de valor proferida termina obscurecida por conveniências, omissões, covardias, cooptações, ilusões, condicionamentos e desconfianças. Tudo o que é complexo acaba simplificado, diminuído, compactado e consequentemente falseado.


Rebelde, eu sonhei, pela honestidade de minhas pequenas letras, instigar mentes humanas com as minhas tímidas e pouco usuais verdades - porque a verdade, mesmo a minha verdade, que é a angústia da dúvida, e mesmo nas mãos de um tímido, é uma arma tremenda - mas me deparei com tanta barreira, tanta pedra no caminho, tanta incompreensão. Desiludido, por vezes deixei de acreditar na palavra, no entendimento e na virtude. Cheguei mesmo a divinizar o silêncio. E no entanto, por uma vontade que não se explica, fiz-me cético sobre meu ceticismo e lutei contra minha descrença. Dom Quixote filosófico, persigo agora uma miragem: a utopia da compreensão entre os homens, e nessa perseguição faço-me cronista, prosador, ridículo crente na palavra, no diálogo com a cultura letrada, seguidor do caminho da consciência, caridoso distribuidor de verdadezinhas íntimas, sensíveis, pessoais, grandes porque talvez irrelevantes.

Vida difícil essa, pois há nela mais solidão que comunhão. Entretanto, se nenhuma felicidade é completa, nenhum infortúnio pode sê-lo também. Mesmo a mais pungente solidão letrada não está livre de uma eventual contingência que traga o afeto luminoso, no qual, numa irrupção verbal imprevista, a compreensão se faz solene, abrangente, total. Ocorrência essa que considero verdadeiro milagre. Talvez pequeno, mas ainda assim milagroso. Foi isso o que, inesperadamente, me aconteceu. E para que os homens saibam ser possível, dou-lhes testemunho desse milagre que, passado na última madrugada, infundiu-me senso de fraternidade, uma paz, uma leveza, uma elevação, e mais do que tudo uma esperança em relação ao humano, como há muito este aqui não sentia.

***

A voz era doce, afinada, limpa. A inflexão, embora temperada por uma excitação mental que ela não pretendia esconder, sugeria uma sobriedade, uma perspicácia, uma inteligência felina e ferina. Como eu, aquela mulher tinha algo de fera, também ela nutria a rebeldia que viceja nos espíritos altivos, angustiados; os tipos sombrios e deslumbrados que sofrem a posse duma inteligência diabólica, uma falha na consciência que os impele a contemplar o abismo de todas as coisas. Muito consciente, ela sabia de seu valor, e no entanto, diferente deste, não tinha em si o pecado do orgulho. Verdade é que, para ela, a própria superioridade era apenas subproduto de sua disposição livresca, uma febre de filósofo humanista, de latinista medieval, de erudito e de polímata subjugavam-na: tinha a curiosidade voraz e expansiva de quem tudo quer saber - não apenas acreditar, ela queria mesmo é saber! - um amor inegociável pela vida letrada e contemplativa, pela investigação e pelo conhecimento. Admirava-se disso: a curiosidade abundante, raiz indubitável de toda aquela inteligência que ela, ruiva fatal, desnudava sem pudores para o amigo cronista.

"Falamos a mesma linguagem" ela me disse. Com seu discurso pródigo, lúcido, culto e refinado. Com toda certeza o resultado da busca intelectual de uma vida inteira, de seu esforço e persistência, que permaneceria com ou sem estímulos da cultura exterior. Era assim a minha amiga: em tudo diferente do tipo de mulher vulgar e pretensiosa que parece ter dominado a maior parte dos espaços públicos deste século. Época trágica, na qual muitas mulheres se empenham em condutas bárbaras tão ou mais escabrosas que as praticadas pelos homens. Mulheres que se apequenam ao buscar paridade com uma coisa tão débil e ridícula quanto um homem.

Distinta, superior, impondo a si mesma os mais altos padrões, os gostos mais refinados, a sensibilidade mais poética, a inteligência mais penetrante, dispondo de enorme paixão pelo mistério perene que é a origem de cada coisa deste mundo, e apesar de tudo, de tão grandioso espírito, de tanta sabedoria, era ainda jovem, tão jovem que me causava espanto.

Eu a ouvi deslumbrado. Por todas aquelas horas, quando não era eu a divagar, em cada segundo, mesmo nos silêncios, eu a ouvi, deslumbrado. Com desenvoltura ela me falava de Emil Cioram, Mírcea Elíade, Terrence Mackena, Georges Bataille, Carlos Castaneda e tantos outros. Quantos? Não saberia dizer. Parecia-me um verdadeiro exército de homens e mulheres criativos, heterodoxos e instigantes; uma galeria de malditos, místicos e rebeldes cultivada com carinho e afeição. A riqueza cultural daquela mulher, a sua grandiosidade de espírito, tão rara, tão preciosa, tão única, era como se os deuses, cansados das minhas reclamações sobre a debilitada constituição mental e moral da mulher pátria, me tivessem concedido um gostinho do paraíso. Como uma resolução de Apolo a me dizer: "Para que não te atormentes em demasia, tu, criatura piedosa e de espírito trágico, que a todos os deuses venera, e que em todos eles inspira compaixão, conhecerá uma ninfa e nela encontrará abundância na formosura e na inteligência". Assim disse o deus, assim aconteceu ao mortal. E ali, naquele telefonema, naquela madrugada, travei a mais íntima relação mente a mente, alma a alma, com a ninfa de cabelos vermelhos e olhos esverdeados, tendo mais que um vislumbre de sua irrevogável grandeza.

A conexão verbal que se enriquecia no silêncio da noite. Como passou rápido o tempo! Foi a primeira parte da noite e veio a segunda, a madrugada. Passou a primeira, passou a segunda, e nenhum de nós, nem eu nem ela, ousou largar o telefone. Aquele elo, aquela conexão, aquela cumplicidade, aquilo talvez não fosse tudo na vida, mas era, certamente, uma das coisas mais valiosas, mais significativas, mais belas e mais poderosas. Era o que eu buscava numa relação, ela também. Como faríamos na despedida? Como desligar? Não havia vontade, mas, em algum momento, seria necessário.

Foi somente ao raiar da aurora que nos despedimos, não sem antes denunciar ao outro a gratidão por aquela vivência. Naqueles momentos finais, a surpresa: a ligação durara até ali 7 horas e 30 minutos de conversa ininterrupta. Apesar da cifra, na história das afeições intelectuais não chegamos a bater o recorde. Nossa prosa daquela noite resulta cinco horas e meia a menos que as famosas 13 horas que Jung e Freud conversaram quando se encontraram pela primeira vez. Ainda assim, 7 horas e meia de conversa ininterrupta, sem sair dela entediado, parece-me uma comunhão deveras significativa. Além disso, eu e a ruiva ainda não nos encontramos pessoalmente. É nossa opinião que boas amizades e excelentes conversas são terapêuticas. Essa com certeza foi. Saí dela pensando na divindade de algumas mulheres, na grande comunhão que pode haver entre amigos, na magia da mútua e profunda compreensão.

Tudo isso eu digo e ainda provoco: o recorde dos mestres da psicanálise que se cuide: pois a ruiva e eu estamos no páreo.


15/03/23

Um Dervixe Muito Louco

 


Cresci numa cidade superpovoada por doidos. Um dos mais icônicos era o "Rodadinha". O sujeito ganhara tal apelido porque exibia reação totalmente passiva e obediente ao comando: "Dá uma rodadinha!". Era dizer isso e ver o doidinho girar e girar, tal qual um dervixe em êxtase místico.
Óbvio que todo moleque satânico adorava encontrar com ele na rua; e, sem piedade alguma, berrar: "DÁ UMA RODADINHA!"
Havia também os "comandos secretos", aos quais ele também respondia. Eram ainda mais deliciosos: "Põe a mão no cu e cheira!"; e o diabólico: "Senta no vergalhão da obra!"
Como sempre fui um menino de Jesus, fiz ele fazer os três, várias e várias vezes. O coitado só faltava chorar quando me via. Eram horas e horas de um gostoso sadismo opressor. E eu, adolescente, aprendiz de capiroto, gargalhava, de lacrimejar de rir.
Depois dessa "iniciação", fiquei totalmente obcecado pela temática do controle mental. E sou até hoje.
***
(PS: O doidinho existiu mesmo, muita gente da cidade o conheceu. A história é absurda, mas verídica. Familiares e amigos de infância podem comprovar.)

08/03/23

Sobre a Virilidade Flácida de um Velho e Sábio Poeta

Épico, inesquecível mesmo, foi o dia, num longínquo ano de 2008, em que o Gerald Thomas, gênio incontestável, foi mais Kitsch que o Kitsch e conseguiu algo que parecia impossível: constrangeu os humoristas do anárquico Pânico na TV. (Muito diferente de um certo Wagner Moura que, depois de avacalhado, resolveu "manter a classe" e escreveu cartinha pública de censura e chorôrô)

Com seus sessenta e tantos, sempre transgressor, depois de ser avacalhado pelos humoristas enquanto lançava livro, Gerald fez orgia: mostrou o flácido bingulim, sarrou a Nicole Bahls; e, cínico, procurou "as bolas" da moça. Tudo isso em público, numa livraria, filmado.
Eis o pleno retrato de uma maturidade saudável, artística, cínica e filosófica, de homem ponderado e probo, que sabe como agir ante a calamidade cultural de sua época.
Admirável.
Se não for pra envelhecer assim, eu nem quero

Gerald Thomas avacalhando os avacalhadores

01/03/23

Notinha #9: A mulher é mais prática que o homem

A ideia das mulheres como idealistas e sonhadoras é falsa. Uma deturpação equivocada dos autores românticos, culpa de Rousseau, de Byron e de outros sentimentais.

A mulher, em geral, é bem mais realista e pé no chão do que o homem. É tão raro ela sacrificar-se por um ideal etéreo quanto é raro ao homem não olhar a bela bunda que vai dobrando a esquina.

O alto senso de realidade fornece às mulheres uma percepção profunda dos perigos e fragilidades da vida humana, o que lhes infunde o inesgotável desejo de segurança e estabilidade.

Pelo contrário, os homens admiram os idealistas, os sonhadores, os mártires e seus mundos abstratos. Criam um ideal e apressam-se a julgá-lo mais valoroso que a realidade. Não é o caso das mulheres, que com espantosa frequência preferem os realizadores, que sabem o que fazer e quando, que conhecem o mundo como ele é, não como supostamente deveria ser.