23/11/23

Os Cavaleiros da Supervia


Benditos sejam esses meninos
Negros, morenos e favelados
Ousados e destemidos
Que numa noite de Sexta-Feira
Empinam bicicletas coloridas
Nos corredores estreitos
Dos trens cinzas da Supervia

Acordam passageiros adormecidos
Fazem caretas de zombaria
Não temem os vigilantes
Sabem escapar aos fiscais
Meninos espertos e anarquistas
Sonham e nos ensinam a ousar

Com invejável equilíbrio
Tecem proezas no desporto
Como hipistas da nobreza
Ou cavaleiros medievais
Dominam seus cavalos modernos
Feitos de pneus, correntes e ligas de metais

Pouco se importam
Com a apatia do mundo
A vida para eles
Carece de aventura
Brilham esses meninos
Com sua poesia urbana
Sintetizada em ato de vida
Poesia in loco, espontânea

Digo aos meninos
Que são a Gangue dos Empinadores
Eles sorriem, orgulhosos
Depois descem todos na mesma estação
E se reúnem em roda, deliberando
Esta noite, para onde vão?
Que molecagens? Que glórias?
Que descobertas?
Que censuras receberão?

Despeço-me deles e reflito
Penso que não sei viver e não vivo
Nasci velho, cansado, Matusalém enrugado
Mas me inspira essa descoberta incrível
A visão da glória da vida
Neste lugar tão distante de tudo
Sabem viver esses meninos
Negros, morenos e favelados
Ousados, felizes, anarquistas

16/11/23

Lágrimas e Saudades


Ela que não morresse
"Preciso ainda de ti", ele afirmou
Ela lacrimejava, pois não queria partir
Mas engoliu o choro e lhe disse
"Da morte não se pode fugir"
 
Ela estava viva
Cambaleante e fraca
E sofrendo muito
Mas estava viva
 
Até que num 2 de Setembro
Veio o seu último dia
Quando então ela partiu 
Diante da família
 
Lembro-me de sua meiguice
E também de sua fé
Lembro-me de seu sorriso
E também de seu abraço
Lembro-me de tudo
E sinto saudades, e choro

09/11/23

O Apelo do Poeta

  

Moça bonita e fogosa
Que me lê a poesia e a prosa
Faz feliz este poeta
Que mesmo pecador
Quer unir-se ao divino
 
Mostra-me teu paraíso
Que tem lugar bem definido
Está de mim afastado
Bem aí, no teu corpinho
Em recinto entrincheirado
Logo abaixo do teu umbigo...
 

02/11/23

Desfile de Ébano

Negras e amorenadas
Nas quebradas a desfilar
Os cabelos black power
O estilo sarará

Andam cheias de marra
Elevadas pelo empoderamento
Deixam de lado a altivez e sorriem
Quando as elogio o embelezamento

Os corpos muito diversos
Cheios de talentos vários
As bundas, bem torneadas
Os seios, arredondados

Variam elas também
Em tipos de personalidade
Algumas são megeras
Outras são raridade

Algumas apreciam poetas cínicos
Românticos e pervertidos como eu
Outras preferem ascetas
Homens honrados e de Deus

Noto que algumas condenam
Meu apreço à beleza sinuosa
Dizem que meu olhar as oprime
E que não devo enaltecer suas formas

Calo-me então e nada digo
Mas calado fico a imaginar
Aquela morena, meu Deus, toda nua

Vênus a me fascinar!


26/10/23

Minha Aristocracia

Não um rei na barriga
Mas uma corte inteira
Em tumultuoso escarcel
O trono usurpado
Pelo revolucionário menestrel
 
Uma outra aristocracia
Jamais vista até então
Poetas, místicos e filósofos
Vagabundos e anarquistas
No controle da situação
 
Amor, virtude e sacrifício
Eis a ordem do dia
Fazei da tua conduta
O poema mais sublime
A mais bela sinfonia
 
A minha aristocracia
Antes desconhecida
Aqui eu lhes apresento 
Sejam meus súditos leais
E hão de viver a contento

18/10/23

Divina Mente Vazia


Coração romântico
Cabeça filosófica
Combinação maldita
Que só traz a derrota
 
Pensar, não mais!
Buscarei o silêncio
A mente vazia
Oficina do demo
 
Ditado idiota 
Pois nada há que se assemelhe
A tão divina magia
Que é fechar os olhos
E limpar a própria mente
 
Coisa de Deus
E não do Diabo
Pois ao Senhor pertence
O nome mais sagrado
O "yod-he vav-he"
Que na quietude se ouve
Sem ser pronunciado

09/10/23

Estranhíssima Trindade


Habitam em mim 

um bobo

um sábio 

e um bruto


A maioria tolera o bobo,

porque diverte

Alguns toleram o sábio, 

quando ilumina


Já o bruto não é tolerado,

pois aterroriza:

Carrasco, 

filia-me aos perversos

e me escandaliza ante os puros

Acorrenta-me:

a uma espiral de paixões lunares

guerras gratuitas

e devassidões dos sentidos


Quero ceder, devo lutar

Bem maior

supremo e sagrado

É a alma

Coisa linda é ter uma

Mas, infeliz a minha,

porque, fracionada


E mesmo assim

frágil, muito frágil, 

tenho alma 

Sagrada, gloriosa

transcendente

É por ela que continuo, e luto:

Cresça em mim o sábio

ou o bobo;

nunca, jamais, o bruto.


16/09/23

Não Era O Que Parecia





Pessoa que até a véspera nos tratava amigavelmente. Sorria, falava. Demonstrava interesse em manter conosco a boa relação, e depois surpreendeu virando a casaca: riscou o fósforo do desencontro para acender a dinamite do silêncio. O efeito, uma explosão de energia negativa. Antes, sua conversa receptiva sugeria uma conexão que, no futuro, continuasse tudo constante, daria em agradável amizade. 

Ser humano a quem nos abrimos, e a quem procuramos ajudar, aceitando com zelo o autoimposto dever do amigo. Imaginávamos, é claro, ser de confiança. E ao revelarmos elevada disposição afetiva, esperávamos tudo, até que risse de nós, os românticos do afeto; o que não esperávamos nunca é o gratuito desdém, o desprezo, a falta de consideração.

Diante de tamanho descaso, que podemos fazer? Como em tudo o que não podemos mudar, deve-se aceitar o ocorrido e refletir, buscando compreender o que de fato aconteceu. E, claro, aprender a evitar esse tipo de situação no futuro.

Eu sei, nós sabemos: há instabilidade no comportamento humano. As pessoas mudam: crenças, atitudes, ideias e sentimentos. Há em cada um de nós caprichos, defeitos, idiossincrasias, preconceitos, ansiedades e sentimentos não declaráveis. Algumas pessoas são mais volúveis, outras mais estáveis.

Vale entender que é possível uma relação muito agradável sem que exista de fato uma amizade. Isso porque, via de regra, as pessoas não expressam diretamente a desimportância que podem dar a alguém que consideram divertido, agradável, inteligente e gentil. Sem expressar verbalmente, tendem a demonstrar em atitudes negativas; descumprindo acordos e não honrando as próprias palavras. Também as pessoas não se revelam por completo. Podem mostrar uma coisa e pensar outra. Ao tratá-las de forma agradável e amigável, elas tendem a responder de igual forma, o que não implica, necessariamente, em amizade.

O amigo é aquele que já conhecemos o suficiente para nele confiar. O amigo é definido pelo grau de confiança, previsibilidade, cumplicidade e experiência que temos com ele, não pelo tamanho de nossa atração ou disposição afetiva. Não importa o quão elevados sejam nossos sentimentos por uma pessoa. Por mais querida que ela seja, nosso sentimento isolado não é suficiente para compor amizade. O que importa é o modo como ela nos trata: se nos valoriza ou não. Se nos valoriza e respeita, como a valorizamos e respeitamos, então a relação vale à pena. Se nos trata com desdém, o melhor é nos afastarmos.

Esse desapego afetivo pode ser doloroso, mas exercê-lo é se livrar de uma dor ainda maior: a que viria caso tivéssemos alimentado a relação, pois estaríamos nos iludindo, e quanto maior o apego, maior a frustração. Fato é que nem todos que apreciamos podem nos conceder a atenção e estima que precisamos. Eis o mundo como ele é. Portanto, quando percebemos que alguém de quem gostamos não nos valoriza, é mais inteligente desapegar e se afastar o quanto antes. Não é apenas questão de orgulho, mas de saúde mental e moral. A regra é simples: não existe amizade sem reciprocidade.

É nas atitudes que reconhecemos quem são as pessoas confiáveis, que devemos incluir como amigos, e quem são aquelas que, embora eventualmente agradáveis, não se importam de verdade conosco. O discurso mascara, mas as atitudes revelam. Aquele que nos diz "sou teu amigo", mas não age como tal; é sempre traiçoeiro e perigoso, porque fomenta em nós expectativas que jamais se poderão concretizar. Mais leal é um verdadeiro inimigo, que deixa claro a sua indiferença e não cria conosco uma relação dupla, mostrando uma face e agindo com outra. Vale mais esse inimigo franco que um amigo aparente.

Encontramos na vida pessoas cordiais, receptivas e agradáveis que parecem amigas, mas que, na realidade, são autocentradas, desinteressadas, desdenhosas e no fundo fazem de nós pouco caso. Quando não somos maliciosos e desconfiados, caímos na armadilha das aparências e nos deixamos levar, imaginando termos ganho uma boa relação. Chega cedo a primeira frustração e vemos que fomos enganados, que não eram por dentro o que pareciam por fora. Nesse momento, é hora de sorrir, lembrar que as aparências enganam, erguer a cabeça e continuar em busca de melhores relações.

A vida afetiva é um imenso garimpo: com paciência encontra-se o precioso, mas não vem sempre e não vem fácil; há sempre percalços no caminho. Como já dizia o bardo: "nem tudo o que reluz é ouro".

30/08/23

Uma Verdade Desanimadora Sobre Debates

 Querem saber uma verdade desanimadora que aprendi? Foi sobre debates.

[Sabem o que é isso? É um circo, é um Show de Horrores, é um atentado à inteligência. É qualquer coisa, MENOS um debate]


Aprendi que, em geral, não é a pessoa mais virtuosa, melhor informada e com a razão que vence o debate. Quase sempre é o contrário: quase sempre é o vigarista, o demagogo, o manipulador e o trapaceiro, ou o lado menos informado, quem vence.

Isso acontece por vários motivos, alguns naturais, outros artificiais.

Antes de tudo, é preciso compreender que um debate real e sincero só pode acontecer em determinadas condições específicas; quando uma certa conjunção de fatores é satisfeita.

Alguns dos principais fatores necessários para um debate verdadeiro são:

  • Profundidade adequada (exigência intelectual) – Ambos os debatedores devem compreender e tratar o problema com o nível de profundidade necessário. Se estão a falar, por exemplo, de um tema que está em debate a milhares de anos, com farta literatura, fartos debates anteriores, fartas polêmicas e muitas sutilezas, eles não podem tratar o tema com leviandade ou com simplificação rasteira. Exemplo: debates sobre a existência de Deus, sobre a maldade humana, sobre a função do Estado, etc.
  • Honestidade (exigência moral) – Ambos os debatedores devem buscar: a) a verdade; b) uma conciliação entre duas opções; ou c) a opção menos danosa (o mal menor). Se um lado deseja manipular a opinião pública, defender um grupo de poder específico, defender uma agenda política, provocar desinformação, desestabilizar uma classe, acusar o outro lado... Então não haverá de fato um debate, mas apenas um pseudodebate; que será usado para manipular a opinião pública sobre determinado assunto. (95% dos “debates” televisivos são dessa natureza, e ainda acrescidos dos fabulosos recursos da edição).
  • Paridade/ nivelamento (exigência comparativa) – Ambos os debatedores devem ter um nível mínimo de conhecimento sobre o tema para poderem analisá-lo de forma satisfatória. Isso inclui, certamente, o conhecimento do que já foi dito e pensando ao longo da história sobre o assunto, especialmente nos níveis mas elevados. O requisito mais básico e primário para se discutir qualquer tema é estar bem informado a respeito. Nunca, em hipótese alguma, deve-se levantar um debate sobre ideias, fatos ou temas sobre os quais não se tem um conjunto robusto ou mínimo de informação e contexto. Se um debatedor souber muito mais que o outro, ou souber de pontos importantes que o outro não sabe, o debate é precarizado; e o tempo que seria usado para debater o ponto em questão, será usado para informar a outra parte; o que faz a coisa virar uma aula e não um debate.
  • Privacidade/ localidade adequada (exigência de meio adequado) – Em vista das três exigências acima, o debate deve ser travado num local ou meio que permita o pleno cumprimento desses requisitos. E esse local não é a TV, menos ainda o rádio, menos ainda o Youtube. Primeiro porque aqui no Brasil não há cultura do debate racional; então, para começar, as pessoas não fazem nem idéia de como debater sem xingar umas às outras ou mesmo sem partir para a agressão. Segundo porque o brasileiro não é um leitor minimamente variado e inteligente; o que significa que ele perde toda a informação contextual, histórica, científica e analítica que os livros divulgam e aprofundam. (Em geral o brasileiro lê sobre temas espirituais, auto ajuda, sexo e ficção, quando muito, lê sobre política). E terceiro porque a platéia física favorece o manipulador. De fato, o bom manipulador pode praticamente ignorar o debatedor adversário e jogar para a platéia; já que o público é bem fácil de ser manipulado. Daí que os meios adequados para certos debates acabam sendo, quase sempre, os livros e as revistas especializadas. As vezes os jornais; e em alguns casos eventos promovidos em universidades e outras entidades culturais (como o debate entre Chomsky e Foucault).

[Na cena cultural/ intelectual brasileira (e mesmo mundial) tem tanta gente que merece esse selo…]


E mesmo no contexto literário e universitário, a maioria dos debatedores mais famosos são, em certo grau, falsários e manipuladores. Chomsky, por exemplo, é oposição controlada do lobby sionista, enquanto Foucault era agente do lobby pedófilo (se alguém se chocar com essas alegações é sinal de que está mal informado). Então, em questões políticas, o discurso de ambos se mistura com pontuações filosóficas válidas e estratagemas retóricos que visam sustentar interesses ocultos, jamais declarados.


Os debates honestos, rigorosos e que apresentam uma discussão profunda e pertinente, respeitando todos os critérios e exigências necessárias, na maioria das vezes são considerados chatos e enfadonhos para o público médio. Isso pode ser facilmente percebido pela ojeriza instantânea que o brasileiro médio nutre diante de Filosofia e Matemática; duas áreas que consistem basicamente em trabalhar com definições essenciais, critérios, lógica, conjuntos de possibilidades, provas e demonstrações. Ou seja: reflexão aprofundada e exigente.

Além disso, existe um outro problema, relativo à própria natureza do conhecimento e da inteligência, que implica numa realidade assombrosa: em geral, quanto mais um cientista ou pesquisador descobre um aspecto essencial e verdadeiro da realidade, mais difícil é transmitir essa descoberta, com profundidade, na linguagem comum. Quase tudo que é essencial de se saber exige uma terminologia adequada, daí que os antigos falavam de “linguagem sagrada” e nós, modernos, falamos de linguagem técnico-científica e "operacionalização".

No vídeo abaixo, Richard Feynman, um dos maiores físicos e intelectuais do século passado, dá uma ótima explicação sobre esse problema linguístico/epistemológico.


A linguagem comum raramente presta para transmitir verdades profundas. E esse é um dos motivos do porquê escritores trabalharam a linguagem, em termos estéticos e estruturais, para tentar transmitir verdades ou princípios essenciais. (Esse também é o motivo pelo qual os antigos educavam seus filhos com mitos, símbolos, ritos e alegorias.)

Então, temos um fenômeno muito interessante, que acontece com um monte de gênios: o sujeito passa a vida inteira buscando descobrir a verdade sobre um tema, e quando descobre; percebe que ou não será compreendido, ou só será compreendido por muito pouca gente. Nesse momento, muitas vezes, ele acaba se isolando, como foi o caso do Grigory Perelman, do Ludwig Wittgenstein e de tantos outros.

Em geral, é por causa disso que gente como o Olavo acaba ganhando tanto destaque. Dizem, por exemplo, que o Guru da Virgínia é o maior filósofo do Brasil, enquanto ignoram a existência de Newton da Costa ou o trabalho de gente como Vicente Ferreira da Silva e José Guilherme Merquior. Embora todos eles tenham sido filósofos de fato, na mais elevada expressão do termo, com contribuições significativas ao corpo do conhecimento humano e da história da filosofia, inclusive com reconhecimento internacional de seus pares, o trabalho deles é muito exigente, praticamente inacessível ao homem comum; que não é dado a grandes reflexões. Na verdade, o nível deles é tão elevado que mesmo a maioria dos professores universitários os desconhece.

Em suma: a razão acaba ficando com quem sabe convencer e persuadir, não com quem está certo ou com quem realmente entende o assunto. Por isso, num mundo dominado pela propaganda e pela superficialidade, o poder pertence aos charlatães, mentirosos e manipuladores.

Aprenda a mentir e manipular e o mundo será seu. Ou, ao menos, aprenda a se defender de mentirosos e manipuladores.

26/08/23

Um Apelo aos Leitores


Olá, caro leitor. Você curtiu e aprendeu com aquele meu texto? Espero que sim, porque escrever, reescrever, editar, pesquisar as imagens, pôr as imagens, pesquisar os links e pô-los aqui dá trabalho. Se você achou útil ou interessante, compartilhe com algum amigo ou conhecido que possa se interessar. Se você aprendeu algo, compartilhe, não guarde apenas com você. 
Compartilhando e trazendo leitores para o blog você incentiva a produção de textos mais elaborados.

Em outros tempos este tipo de apelo não seria necessário, porque a qualidade dos textos do blog naturalmente atrairia leitores, mas hoje a atenção das pessoas está concentrada nas redes sociais, nos aplicativos e nas plataformas de vídeos. Isso acaba obscurecendo este e outros blogs que podem ajudar jovens interessados em cultura e formação intelectual. 

Então você, leitor consciente e camarada, tenha boa alma e ajude este blogueiro em crise: inscreva-se no blog para receber novidades por e-mail e compartilhe o que considerar compartilhável. Mais que isso eu não te peço.

Breve guia de dicas e referências para começar a desenvolver habilidades na escrita



Tenho um amigo jovem que anseia melhorar suas habilidades na arte de escrever.  Por isso resolvi publicar aqui alguns conselhos, sugestões e indicações. Explico que as dicas abaixo são úteis para qualquer pessoa que esteja começando a escrever, mas são ainda mais úteis para aquelas que estão começando "na lanterna"; isto é: aqueles que ainda não possuem o núcleo básico de habilidades - clareza, coesão, gramaticidade e senso estético- que um escritor deve ter.

Recomendo que, antes de prosseguir com o texto abaixo, o leitor leia este texto, este e este também, pois explicitam noções importantes e complementares que não exploro aqui (como o nível gramatical, a eloquência e expressividade de ideias, organização do pensamento e a função da leitura literária). O raciocínio manifestado nas considerações abaixo pressupõe que o leitor já saiba o que foi dito nos textos anteriores em que tratei sobre assuntos correlatos. Por isso a sugestão é que eles sejam lidos antes deste.

Pode ir lá ler os textos.

Pois bem. Leu os textos? Não, né? Vai deixar para depois (eu sabia!). Você é mesmo um preguiçoso. Mas, tudo bem, porque eu também sou. Se você não reclamar de mim, juro que não reclamo de você. Sendo assim, talvez você considere o texto abaixo demasiado incompleto (o que só  mudará quando ler os anteriores). De qualquer modo, você é quem sabe.

Como progredir na escrita dos gêneros literários?

A minha primeira sugestão é começar escrevendo registros memorialísticos em primeira pessoa, o que em linguagem leiga é conhecido como "escrever um diário". Em verdade, a frequência da coisa não precisa ser diária, pode ser semanal ou mensal. Contudo, é preciso ter em mente o seguinte: quanto mais frequente, maior o treino, e quanto maior o treino, melhor. Eu sugiro que o meu amigo comece escrevendo semanalmente. Separe um tempo no sábado, pela manhã ou noite, para escrever um texto que inclua, de forma resumida, os principais eventos da semana, reflexões pessoais, crises, tensões, reclamações, angústias, impressões sobre as pessoas, ideias, lugares, comentários sobre mulheres, etc.

Quanto ao estilo: comece com uma forma de escrita simples, compacta, direta e elegante; assim como o estilo de Albert Camus em O Estrangeiro. Perceba que esse livro de Camus não é mais que um diário: o diário de Meursault, o protagonista. Eu até admito que a obra não me agradou como romance, mas reconheço que sua prosa é simples e clara, o que lhe torna um bom modelo de registro memorialístico para iniciantes.

Uma vez dominado o básico da escrita memorialística, faz-se necessário dar um passo à frente. Agora o aspirante a escritor deverá treinar crônicas (onde ele pode aplicar elementos do gênero anteriormente aprendido). E então, finalmente, depois de algum treino, quando já se houver transmutado num hábil cronista, poderá partir para outros gêneros.

Tal ordem de estudo,  e de prática,  é didática e progressiva: caminha do mais fácil para o mais difícil. Para um sujeito sem prática  na escrita é muito mais difícil escrever um artigo, resenha ou um conto do que uma crônica. E é mais fácil escrever um texto memorialístico simples do que uma crônica. Além disso, cada gênero anterior da sequência prepara seu praticante para o gênero seguinte. Quero dizer: é mais fácil escrever uma crônica quando você já sabe escrever um registro memorialístico e é mais fácil escrever um conto, artigo ou resenha quando você já sabe escrever uma crônica.

Entendendo a Crônica

A crônica é um texto de tamanho curto¹,  maior que o poema e menor que o ensaio. Pode ter o tamanho de um artigo de jornal, mas geralmente é um pouco menor. Durante muito tempo, a crônica foi um dos gêneros literários mais lidos no Brasil, e ainda hoje ela é muito popular.

Uma crônica manifesta sempre a visão e reflexão do autor sobre alguma coisa. Dispondo de uma linguagem pessoal e artística (portanto, literária) ele compartilha com os leitores uma vivência sua e as reflexões que ela lhe inspirou. Também pode contar uma história sobre um amigo, comentar os fatos políticos ou culturais da semana, compartilhar memórias, criticar uma obra literária ou um filme. O mais importante, como traço característico da crônica, é que seja um texto leve, fácil, sem muita pretensão, algo como se fosse uma conversa escrita com o leitor. O objetivo do cronista é entreter o leitor com suas reflexões, ou seja: fazê-lo pensar, rir, lembrar,  apreciar a estética da linguagem, e, enfim, se emocionar.

De Machado de Assis à Luís Fernando Veríssimo, quase todos os nossos grandes literatos escreveram crônicas, e pelo menos dois deles - Rubem Braga e Ivan Lessa - foram majoritariamente escritores de crônicas.  Naturalmente, pela leveza e pelo caráter lúdico, a crônica é o gênero textual que tem maior e melhor recepção por parte do leitor comum. Isso a torna um excelente gênero para ser praticado por escritores iniciantes.

A Crônica na coluna de Jornal ou Revista

Alguns escritores recebem um espaço fixo - em jornais e revistas - para escreverem periodicamente sobre o que quiserem, ou, as vezes, a respeito de um determinado tema. No início esse espaço era limitado a uma coluna de texto nos jornais, e por isso recebeu nome de "coluna". Com o tempo o espaço aumentou, mas o nome permaneceu. Numa revista moderna esse espaço pode chegar a uma página inteira com duas, três ou mais colunas de texto ( esse era o caso, por exemplo, da coluna da atriz Fernanda Torres na revista VEJA).

A coluna  é o palanque do escritor. É também a vitrine onde ele expõe suas crônicas. A rigor, nem todo texto de uma coluna é uma crônica, mas é grande a intimidade entre uma coisa e a outra. Assim, o termo "colunista" e "cronista" estão quase sempre associados; afinal, antes da internet, os cronistas só escreviam em alguma coluna de jornal ou revista, e as melhores crônicas eram posteriormente publicadas em livros.

Os Escritores e as suas Crônicas

É importante conhecer os grandes cronistas, e, pelo menos no início, imitar suas virtudes e técnicas literárias. Por isso aqui vão algumas referências essenciais.

Indico especialmente três autores. O primeiro ainda vivo, o segundo muito contemporâneo (falecido ano passado) e o terceiro apenas contemporâneo (falecido nos anos noventa). Todos eles são divertidos, engraçados, polêmicos e apresentam vozes literárias mais próximas ao português do leitor moderno, o que os torna autores mais acessíveis aos iniciantes. São eles:

Diogo Mainardi.

Odiado por muitos devido à suas opiniões políticas reacionárias, Mainardi tornou-se famoso pelo estilo - satírico e mordaz - de suas crônicas publicadas na revista VEJA. Era o tempo do primeiro governo Lula e enquanto grande parte dos intelectuais estavam animados por terem um presidente de esquerda no poder, Diogo Mainardi via em Lula pouco mais do que um bebum semianalfabeto, e descia o sarrafo nele, em seus ministros, secretários e intelectuais. Muitas das crônicas dele dessa época são verdadeiras pérolas; causando grande impressão, raiva e alguns sorrisos. Uma boa coletânea, com crônicas selecionadas pelo próprio autor, você encontra no livro "À Tapas e Pontapés" (leia online pelo Scribd, baixando o aplicativo, ou compre pela Estante Virtual ou pelo aplicativo da Shopee). Ainda hoje circulam na internet alguns trechos de crônicas dessa época. 

Arnaldo Jabor

Figurão da cultura nacional, Jabor participou do Cinema Novo, ajudando a fazer história num período de grande efervescência da cultura brasileira. Como colunista, antes de se focar no mundo político, entreteve e ilustrou milhares de leitores durante décadas. Chegou a ser publicado semanalmente em 23 jornais. Com razão, pois esbanjava crônicas culturais engraçadas, inteligentes e enriquecidas com referências à dramaturgia, cinema, pintura, música, quadrinhos, literatura e história. Há em sua prosa o olhar desiludido de um ex-militante comunista, mas também a confissão cínica de quem viveu nossa história; e, para não enlouquecer, fez tragicomédia com nossos personagens e enredos quotidianos. Certo ou errado, sempre culto e opinativo, era uma mente instigante. O livro dele que eu indico é o "Sanduíches de Realidade e outros escritos" (sem e-book disponível, mas o livro está à venda na Estante Virtual e também  na Shopee, e com frete grátis se comprado pelo aplicativo).

Paulo Francis

É provável que nem Diogo Mainardi e nem Arnaldo Jabor fossem possíveis  como cronistas se antes deles não tivesse existido Paulo Francis. Isso porque Francis foi um dos maiores e mais influentes jornalistas brasileiros. Sua coluna na Folha de São Paulo, nos anos oitenta, era a mais lida do país. Francis vinha de uma família de classe alta - os Heilborn, de origem germânica - e, por meio da biblioteca da família, teve uma sólida formação literária e intelectual através dos clássicos europeus. Em cultura, era um elitista. Apesar disso, detestava o português empolado e, segundo ele, escrevia em "Português de gente"; quer dizer: um português mais próximo da linguagem falada de sua época. Era um homem muito sincero, que não escondia o que pensava. Naturalmente, incomodou muita gente de esquerda e de direita. Indico para leitura as crônicas contidas em seu livro "Diário da Corte" (baixe o e-book aqui)

Curioso é que os três autores indicados acima são de direita² e possuem um traço muito característico do intelectual brasileiro: são viciados em política.

Referências Digitais

O Portal da Crônica Brasileira, mantido pelo Instituto Moreira Salles, faz um bom trabalho resgatando e disponibilizando crônicas de autores consagrados.

O site Conto brasileiro, apesar do nome, inclui também várias crônicas de grandes escritores.

O site Digestivo Cultural é  um dos melhores e mais longevos sites brasileiros sobre Cultura e Literatura. Vários escritores possuem colunas nele, e alguns cronistas famosos já passaram por lá - como Millôr Fernandes, Paulo Polzonoff, Yuri Vieira e Alexandre Soares Silva (os textos continuam lá, acessíveis).

Grandes jornais

É possível acessar as colunas dos cronistas dos maiores jornais do país (Folha, Globo, Estadão, etc. ) usando um burlador de paywall³. Recomendo este aqui. Para burlar o bloqueio é só copiar o link do texto bloqueado e colá-lo no site que desbloqueia. No site do link você pode escolher se quer ler o artigo em pdf ou em página web usual (http).

Por fim, para que se tenha uma noção vívida do poder expressivo da crônica, eu sugiro a leitura das seguintes:





- Caça-níqueis (nesse caso, se trata de ouvir, já que é uma crônica de Nelson Rodrigues lida magistralmente pelo mestre em teatro Rodrigo Mallet).


 
                                                              ***

Notas:


1- O que significa que ela raramente passa de 18 parágrafos, sendo que a crônica média fica entre 8 e 14 parágrafos.

2- Como eu não me considero uma pessoa "de direita", o fato de eu ler e gostar desses autores talvez requeira uma explicação. O que posso dizer? Apenas a verdade. E a verdade é que o único motivo pelo qual leio e indico esses autores é porque eles são, de fato, bons cronistas. Isto é: escrevem bem e conseguem ser honestos em relação às suas opiniões, mesmo quando elas parecem meros preconceitos (ou mesmo quando são). Eles escrevem com humor as vezes maligno, autoironia e uma sinceridade - uma verdade pessoal - que é muito difícil encontrar nas opiniões dos esquerdistas modernos. O esquerdista moderno é hipersensível a tudo que soe preconceituoso. Ele morre de medo do julgamento de seus colegas militantes, e estes, por sua vez, estão sempre a buscar preconceitos nos outros. O resultado é que o cronista de esquerda, muitas vezes, acaba modulando as próprias opiniões para que sejam politicamente corretas ao invés de autênticas.

O cronista de classe média, quando é de direita, se permite dizer ou sugerir ideias impopulares. Ele pode dizer ou sugerir que desdenha dos pobres, ou que os bairros pobres são feios, sujos, desorganizados e fedidos (muitos, de fato, são), e é aí onde está o interessante: ele dirá tudo isso se assim pensar, ou talvez porque queira provocar, e o fará se expressando de forma engraçada e irônica. Já o cronista de classe média, quando é ligado à esquerda moderna, jamais pode dizer uma coisa dessas, mesmo que esse pensamento lhe venha à cabeça todas as vezes em que sobe numa favela para participar de ações sociais. O esquerdista impõe a si mesmo a regra de não se permitir pensar algo assim, porque lhe ensinaram que é "errado, incorreto e preconceituoso" atribuir características negativas aos pobres. Assim, se tais características existem, o esquerdista não pode mencioná-las.

O resultado é uma vantagem literária para os cronistas da direita, que ganham maior liberdade de ideias, uma liberdade expressiva maior, mais autenticidade e menos neuroticismo. O efeito natural é que sejam mais polêmicos também. É claro que isso não é uma Lei, no sentido de que é sempre assim; trata-se apenas de uma tendência. Vale notar que essa neurose anti preconceito dos esquerdistas modernos não se aplica a esquerdistas das antigas, como Lima Barreto ou Luís Fernando Veríssimo.

Seja como for, e seja qual ideologia for, a posição política de um autor é a menor coisa com a qual o leitor deveria se preocupar. O que importa é conhecer o estilo, reconhecer o talento, apreciar e aprender com o autor. A Literatura deve estar acima de nossas preferências políticas. 

3 - Paywall, para quem não sabe, é o bloqueio que jornais e revistas fazem em alguns dos seus artigos. Teoricamente serve pra forçar os leitores a pagar uma assinatura, e, de fato, a maioria paga. Porém, alguns anarquistas, terroristas, cybercriminosos e pobretões como este autor procuram métodos escusos de leitura como usar sites que desbloqueiam paywalls ou extensões que desabilitam o JavaScript da página do jornal.


                                                                 ***

Caso você tenha gostado e aprendido com o texto acima, sugiro que leia esta importante recomendação.