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Por que me afastei das pessoas...
Nota do Editor: o texto abaixo foi originalmente publicado como resposta no site Quora.
***
[O Eremita. Do Tarôt Rider-Waite]
Porque me afastei das pessoas?
Tive tantos motivos que chega mesmo a ser difícil elencá-los. Caso tentasse, porém, ir até a gênese da coisa, buscando a primeira de todas as razões; provavelmente seria obrigado a concluir que afastei-me das gentes devido a percepção da estranhíssima e seguinte verdade:
Eu adquiria maior orientação interagindo com os livros do que interagindo com as pessoas.
Tal coisa percebi ainda na adolescência, período da vida onde a instabilidade era a regra. Se ganhava novos conhecimentos e relações, ganhava também novas angústias e frustrações. Diante do mundo religioso que me era estimulado pela família; diante do mundo cultural que avidamente consumia na forma de quadrinhos, rock, livros e cinema; diante da vida social e das paixões carnais, das quais nada entendia, e diante da vida técnico-científica que me era apresentada na escola; minha mente viu-se tomada por exuberante fauna de dúvidas e inseguranças capitais.
Sendo um filho de professora, nunca pude fugir ao didatismo. Por isso, sentia que antes de decidir qualquer coisa importante, precisaria compreender um mínimo do mundo. Esclarecer-me. Saber o que era importante e o que não era. O que era verdadeiro, o que era engano. Quando você é um jovem romântico e problemático, que está completamente perdido no mundo, orientação é o bem mais relevante que se pode conseguir.
Os livros, mesmo que também me trouxessem muitas dúvidas, ampliavam, mais do que as pessoas, meu contexto cultural e cognitivo, não apenas de forma quantitativa, mas também de forma qualitativa. Com eles eu não só aprendia mais, mas aprendia melhor. Os livros levavam as perguntas muito a sério, dedicavam páginas e páginas de análises para compreender e esclarecer problemas difíceis. Havia neles uma seriedade, um compromisso, um brio intelectual, uma racionalidade analítica, que, sentia, faltava em meu meio de origem. Isso para não mencionar também a beleza estética da linguagem empregada.
Entre os 13 e 16 anos, enquanto meus amigos mais integrados "comiam todas as menininhas da cidade", eu lia “O Último dos Moicanos” e também “As Viagens de Gulliver”. Livros que fizeram-me um estrago brutal. Deles vieram meus primeiros rudimentos de sensibilidade e consciência moral. Desvelaram a mim os absurdos, as incoerências, as injustiças e as loucuras dos homens. O primeiro de forma épica e trágica, o segundo de forma mordaz e satírica.
[Dança com Lobos.]
O bom cinema estragou-me também. Filmes que muito me influenciaram nessa faixa etária foram: “Sete Anos no Tibet”, “Dança com Lobos”, "O Conde de Monte Cristo" e “O Último Samurai”; todos envolviam homens perdidos, amargurados, em situação de distância e isolamento de seu mundo de origem. Filmes que retratavam a alienação do herói, primeiro passo para a evolução filosófica e espiritual, lugar-comum da estrutura narrativa. Fizeram-me equacionar solidão e distanciamento com aquisição de sabedoria.
Sentia falta de pessoas (adultos) extraordinários e inspiradores. Escasseavam na vida real, mas superabundavam nos livros e nos bons filmes. Na biblioteca da escola, disponíveis para me instruir, estavam: Einstein, Michiu Kaku, Jonathan Swfit, Bill Brysson, Curzio Malaparte e centenas de outros cavalheiros com a mais vasta erudição, sofisticação e experiência de vida. Todos indivíduos de espírito e distinção. Fora da biblioteca, não conhecia nenhum ser humano que trouxesse em si tanta magnitude. Via naquele local silencioso, que eu considerava um Templo da Sabedoria, o ambiente de uma comunidade de sábios, gênios e aventureiros. Era jovem, mas já intuía a existência de uma Cultura Universal, de uma Sabedoria Universal. Ali eu poderia ter acesso as palavras desses homens, saber o que pensaram, o que viveram, como viram o mundo, o que tinham a ensinar. E descobrir o porquê eram considerados tão importantes.
[ Einstein. Não basta ser inteligente, é preciso ser também irreverente.]
Sendo eles de tamanha importância histórica e cultural, pensava que deveriam ter alguma orientação, deveriam saber como o mundo funcionava; saber de coisas importantes que os outros não sabiam. Afinal, não eram eles os chamados gênios? As chamadas “grandes mentes”? Certamente não haviam chegado onde chegaram por acaso. Certamente tinham algo a ensinar. Eu aprenderia com eles. Com suas vivências, ensinamentos, opiniões, conselhos; e, possível fosse, seria tão grande quanto.
Pois quanto mais interagia com as obras originadas por essas e outras mentes ilustres, mais ampliava a percepção da futilidade e decrepitude das mentes ao meu redor. Vendo que a futilidade era a regra, a sabedoria tornava-se um bem raro; e, portanto, altamente valoroso. Percebi a futilidade das gentes, decepcionei-me com a futilidade das gentes: afastei-me da futilidade das gentes. Busquei a sabedoria. Dos sábios.
[Perder tempo com os tolos? Não eu..]
A verdade é que ninguém pode imergir na parvoíce das gentes sem tornar-se também um tanto quanto parvo. A mente não apenas é moldada pelo conteúdo com o qual a alimentamos, mas torna-se também uma reprodutora desse conteúdo. A mente é uma replicante de memes*. Daí a importância de uma cultura que eleve e nos instigue à virtude e não ao vício. Já jovem sabia muito bem disso. Como a cultura ao meu redor parecia induzir ao vício e a confusão, julguei necessário me resguardar. Busquei pessoalmente, muitas vezes isoladamente (algumas vezes socialmente, em pequenos grupos de amigos), cultivar uma outra cultura. Uma que não apenas me entretesse, mas que me inspirasse, que me ensinasse a ter alguma orientação no mundo, a responder minhas dúvidas capitais, a compreender melhor e a ser alguém melhor.
Assim o fiz. Assim o faço. Por isso o afastamento.
Fato é que nunca me tornei exatamente alguém melhor. Na maior parte das vezes, sigo sendo o mesmo traste de sempre, entretanto, ao menos alguma orientação mínima e alguma compreensão mínima (do mundo, dos homens e dos deuses) eu obtive. Não é muito, mas é já alguma coisa.
Me arrependo de me ter afastado das pessoas?
Nem por um segundo.
*O termo "meme" é usado aqui em seu sentido original, isto é: uma unidade mínima de ideia ou conteúdo mental reproduzível culturalmente.
02/08/23
Como é a vida de um vagabundo
[Novos Baianos - A face da vagabundagem artística]
Embora seja verdade que ando procurando emprego, não posso, não devo e não tenho a mínima pretensão de negar que sou, em espírito e em ideologia, um vagabundo.
"Vagabundo Intelectual", "Ocioso Profissional", "Vagabundo de Elite" são alguns dos termos que poderia usar para me descrever. O que mais gosto, no entanto, é o sonoro e retumbante "Elite da Escória" (Será, se tudo der certo, título de algum livro ou conto futuro).
A vida de um vagabundo profissional, dentro dos seus limites, é boa - provavelmente melhor que a vida de muitos de vocês. Certamente não é para qualquer um, já que exige um nível de desapego e de distanciamento social considerável; junto da permanente instabilidade financeira, é claro.
Contarei já tudo o que é necessário saber sobre esse estilo de vida. Mas antes, como me é típico, trarei alguns esclarecimentos prévios. O amigo leitor, caso queira, pode pular para a segunda parte.
[Colin Wilson - o vagabundo literato]
- De como me tornei um vagabundo profissional
Ao contrário do que se pensa, não é fácil se tornar um vagabundo. Não estou considerando aqui aqueles casos em que não houve escolha, onde o processo foi consequência de fracassos pessoais e de uma certa maré de azar. Não foi o meu caso, nem o dos meus amigos. O nosso processo foi ideológico/ filosófico: está totalmente atrelado a um sistema de crenças e valores que desafia os modelos e as imposições sociais da civilização atual.
Sofri influências diversas. Literárias, cinematográficas, filosóficas. A ideia de uma vida simples e contemplativa, do Thoreau; a sugestão de uma vida boêmia e calorosa, do Jack Keruac. Um modelo mais próximo e contemporâneo, Eduardo Marinho, outro; o Alexander Supertramp. A história do Leonardo Maceira; viajar sem dinheiro pelo Brasil tirando fotos de belas mulheres nuas em meio à natureza. Contagiante. Qual artista aventureiro não gostaria de uma experiência dessas? E a base filosófica mais profunda veio do Bertrand Russel em seu Elogio ao Ócio. Também os relatos de Orwell sobre seu tempo de vagabundo - Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios - e o ensaio de Tocqueville sobre a pobreza me cativaram. Tolstoi, com seu cristianismo anarquista naturalista, uma influência mais distante. Thomas Merton, com sua apologia da solidão, também.
Enfim, modelos não me faltaram. Fossem aristocratas, burgueses, intelectuais, drogados, monges ou pobretões.
Entendam: sou um sujeito livresco, artístico, cultural e contracultural, com certa admiração pelo que foge à regra. O que as pessoas normais acham absurdo, fora do comum, coisa de maluco, acho interessante, faz parte do meu imaginário. Então viajar de carona, levar uma vida boêmia ou ser um tanto vagabundo sempre foram ideias bastante aceitáveis para mim, pois me lembravam as experiências de pessoas que eu admirava.
No entanto, perceber que o modelo de vida vagabundo era, para mim, psicologicamente mais saudável do que uma vida integrada ao sistema foi algo que só aprendi com o tempo. Já fui um agente do sistema. Já estive em suas entranhas, vi seu funcionamento torpe e corruptor por dentro. Estive nas forças armadas, convivi com autoridades, tinha uma carreira estável. Estive numa das melhores universidades públicas do país, tive acesso à nossa elite, seja a intelectual seja a econômica. Em todos esses lugares, sempre me impressionou a mesquinharia, o imaginário débil, a preguiça intelectual, a burrice, o medo da superioridade alheia, a hipocrisia, o corporativismo tacanho, a sujeição bovina aos símbolos de status e autoridade, a burocracia kafkaniana, as leis sem sentido, o fuzuê geral que se instaura em cada instituição, em cada debate, em cada círculo do funcionalismo.
Com o tempo, foi ficando claro que eu tinha uma forma de pensar, um tipo psicológico, um certo sentimento filosófico - outsider - que não era comum. Fui percebendo que nessa sociedade, nessa cultura, as pessoas como eu acabavam enlouquecendo. Alguns dos meus amigos, iguais à mim, foram parar no hospício. Outros, no caixão. Eu iria pelo mesmo caminho, não tenho dúvidas. Já tinha até carta de suicídio pronta.
Por outro lado, minha vocação em escrever e ter uma vida contemplativa, em ser um observador da loucura do mundo, em pôr o dedo nas feridas, se fazia cada vez mais pujante. Até que uma série de tragédias - incluindo o suicídio de alguns bons amigos - me fez perceber que minha sanidade estava também indo para o ralo, e logo eu teria que - como a maioria de vocês- viver à base de psicoterapia, remédios de tarja preta, sessões de auto-hipnose na igreja evangélica e conselhos do Dráuzio Varíola e do Flavio Gikovate. Então, apreensivo, optei por um período de isolamento com a tríade: eremistismo urbano + misticismo cristão + vagabundagem filosófica.
Pôr a mente no lugar, deixar a vocação fluir. Encontrar Deus no Silêncio, nas Trevas e na música de Wagner. Foda-se o resto.
Inteligência, orientação e sanidade sempre foram importantes para mim. Se o único jeito de mantê-las era me afastando da sociedade e frustrando as expectativas dos meus pais, tudo bem; era um preço que eu podia pagar. Aceito bem a infâmia.
[Renton e sua trupe de vagabundos junkies - Trainspotting]
2. Aspectos da vida de um vagabundo.
Tempo
O vagabundo tem tempo, não tem pressa para quase nada. A únicas grandes preocupações são com o mínimo de comida, de saúde e de moradia (E, no meu caso, com o caminhar da vida intelectual e espiritual).
Se o vagabundo acorda e diz: "Declaro hoje feriado pessoal. Está proibido trabalhar." É a Lei e não se fala mais nisso.
Podemos passar horas sentados, descompromissadamente, observando o ambiente ao redor, refletindo, comparando nossa vida livre com as das outras pessoas, cheias de compromissos, presas a todo tipo de senhores, padrões, comportamentos, relações e ideias.
A noção do tempo dos vagabundos, obviamente, não é das melhores. O vagabundo pode demorar muito para fazer as coisas. Hoje é quinta? Sexta? Sábado? O vagabundo não sabe. E nem se importa.
Stress
Em decorrência dessa liberdade de ação, o vagabundo não tem stress, ou o tem em pouquíssima quantidade. Pode ficar ansioso quando se aproxima o dia de pagar o aluguel, ou temerário depois do segundo dia sem comer, mas a vida lhe ensinou que há, quase sempre, alguma resolução, que a Providência não abandona os justos, nem aqueles que tentam sê-lo. O vagabundo tem fé, tem fé em Deus, tem fé no Destino, tem fé em milagres, tem fé na bondade humana.
Ele é, a um só tempo, um homem só, abandonado, e um exército de resiliência.
Renda
O vagabundo sabe, mais do que todos, que dinheiro, por mais importante que seja, está longe de ser a coisa mais importante. Ele consegue as coisas, muitas vezes, na base da lábia, da amizade e da boa fé. Ele não teme se expor. Sabe de sua condição e não pretende negá-la. Mesmo não sendo apegado ao dinheiro, sabe que deve honrar seus compromissos financeiros quando são com pessoas. Como o vagabundo entende que pessoas jurídicas não são pessoas, ele se permite furtar algumas coisas do supermercado e dar alguns calotes institucionais aqui e ali.
Mas sempre há algo que o vagabundo sabe fazer. Eu, por exemplo, escrevo - mal, mas escrevo. Também desenho - mal, mas desenho. Eu sei hipnose - pouco, mas já impressiona. Também sei falar, dar aulas, entreter. Quando o vagabundo não é bom em obter dinheiro com seus talentos (meu caso), ele sabe ao menos onde ir e obter recursos de graça ou a preços irrisórios. Vai recorrer, evidentemente a caridade dos bem afortunados, sejam parentes, sejam amigos, sejam desconhecidos. Ou aos órgãos públicos destinados ao serviço social. Aqui em Brasília há, por exemplo, o "Rorizão", Restaurante Comunitário cujas refeições (café da manhã e almoço) custam apenas dois reais cada.
Os caridosos, por sua vez, amam o vagabundo, especialmente quando é esclarecido. A maioria das roupas que tenho, ganhei. Perfumes, ganhei. Relógios, ganhei. Livros, também.
Saúde
O vagabundo conhece os melhores métodos de sobreviver às intempéries e privações. Ele sabe o que comer para manter a imunidade elevada, sabe como se exercitar, conhece as receitas mágicas, passadas de geração em geração, para curar as moléstias. Conhece as plantas, sabe onde obtê-las. E se ele não sabe de nada disso, conhece quem sabe.
Vida interior
Não dispondo de muitos recursos externos, o vagabundo se volta para si mesmo. É um homem cuja vida interior é invejável, de imaginação aflorada, com uma memória vívida do passado. A prática da reflexão, pelo tempo, fez dele um filósofo, naquele sentido kantiano do termo, segundo a qual a maior característica do filósofo está na reflexão aprofundada e não necessariamente no conteúdo da reflexão.
O vagabundo pode conversar sobre qualquer assunto que envolva aspectos humanos. Ele desenvolveu uma capacidade incrível de separar o que é realmente importante na vida e o que não é.
Amizades
Está aí o que talvez seja a maior fonte de prazer para o vagabundo. Ele pode ficar sem comer, sem pagar o aluguel, sem atualizar seu vestuário, mas não pode ficar sem beber com seus amigos. Muitas vezes, os amigos acabam o induzindo a se entorpecer além do álcool, o que ele faz, embora vá se arrepender depois.
Há momentos em que a rabugem lhe toma conta e então ele se torna agressivo e desdenhoso. Mas logo se arrependerá e recorrerá, novamente, aos amigos. De onde sempre extraí ânimo de viver e alguma força. Por isso o vagabundo é extremamente fiel aos amigos, como um cachorro. Está disposto não só a fazer o bem, mas mesmo a fazer o mal para defender os seus.
Tragédia Existencial
O vagabundo tem muito claro para si a dimensão trágica da vida. Ele não nega suas dores, seus sofrimentos, nem os alheios. Mas nada disso o faz fraco, pelo contrário. Encara a morte de um amigo, por mais que o ame, como encara a morte de uma borboleta ou a imprevisibilidade geográfica dos raios: são fatos da vida, inevitáveis, inescapáveis.
O vagabundo é, sobretudo, um estoico. Jamais se incomoda ou se revolta com aquilo que não pode mudar. Longe de se rebelar contra a Natureza, ele a respeita profundamente.
E há, certamente, muito o que poderia ser dito. Mas creio que pude lhes dar ao menos uma breve dimensão desse estilo de vida. Não recomendo. É só para os doidos.
"As únicas pessoas que me interessam são as loucas, aquelas que são loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas; as que desejam tudo ao mesmo tempo. As que nunca bocejam ou dizem algo desinteressante, mas que queimam e brilham, brilham, brilham como luminosos fogos de artifícios cruzando o céu."
Jack Kerouac